O escopo inicial da comissão é trazer à luz todos os atentados aos direitos humanos ocorridos durante a assim chamada ditadura. Só por aí já se prevê uma discussão interminável: serão investigados também os crimes cometidos pela guerrilha de esquerda ou a intenção é considerar hediondos só os que foram praticados pelo aparato repressivo da direita? Esta teria sido responsável pela morte ou pelo desaparecimento de 379 militantes das organizações marxistas (números oficiais). Bastaria isso para que todos os repressores fossem condenados ao inferno. Acontece que o problema não é tão simples assim. As esquerdas, no período, também trucidaram muita gente. Foram mais de 130 pessoas, grande parte desavisados e inocentes transeuntes que estavam no lugar errado quando as bombas explodiram. As esquerdas nem sequer os reconhecem como “baixas de guerra”. Preferem denominá-los como meros “acidentes de percurso”. D e qualquer forma, o fato é que eles morreram. Quem haverá de responder por isso?
O dilema poderá ser resolvido com a fórmula simplista de sempre: tudo o que a esquerda faz é para o bem; tudo o que a direita faz é para o mal. Esse tipo de discurso podia ser atraente décadas atrás, no alvorecer de nossa democracia. Agora, após uma década de PT no poder, não só não faz mais sentido, como ofende a inteligência das pessoas. Esse relativismo poderá levar os membros da comissão a um impasse existencial: afinal, neste mundo em que vivemos, quem é de fato mocinho e quem é bandido?
Para ilustrar este texto, vale a pena registrar a surpresa de Hannah Arendt quando, na condição de jornalista, cobriu o julgamento de Adolf Eichmann, em Israel. Ben Gurion, então primeiro-ministro da nação judaica, chamou a imprensa do mundo inteiro e tratou de preparar um espetáculo irretocável. Chegou ao requinte de enjaular Eichmann numa gaiola de vidro blindado, como se a “fera alemã” oferecesse algum perigo aos espectadores.
Arendt escreveria depois suas impressões sobre o réu (A Banalidade do Mal). Ele fora o principal responsável pela solução final, o morticínio em massa dos judeus, e para isso, obviamente, não havia desculpa. Mas durante todo o julgamento em momento algum demonstrou arrependimento pelo que fizera. Ao contrário, demonstrava até certo orgulho por ter conseguido realizá-la da forma mais racional e inteligente possível. Eichmann surpreendentemente não era cruel. Era apenas um burocrata engenhoso que se desincumbira bem da tarefa que lhe fora ordenada. O mérito da decisão, a seu ver, não lhe cabia questionar. Ordens não se discutem, cumprem-se.
Outra passagem expressiva no seio do nazismo foi o discurso proferido em Posen por Heinrich Himmler, comandante-chefe das temidas SS e designado responsável pela execução da solução final. Após vangloriar-se por nenhum soldado de suas tropas jamais se ter apropriado de qualquer bem de valor daqueles judeus marcados para morrer, conclui: “Ter presenciado as filas de cadáveres – 500, 1.000 amontoados – e mesmo assim termos permanecido firmes, só podemos concluir que realizamos essa tarefa por amor ao nosso povo. E nós fizemos tudo isso sem causar danos ao nosso interior, à nossa alma, ao nosso caráter”.
Crueldades desse naipe só se dão em regimes de direita? Não. Alguns anos antes, na União Soviética – que nascera com o objetivo de acabar de vez com a exploração do homem pelo homem -, ocorreu um massacre na Ucrânia de dimensões equivalentes ao Holocausto. Foi o Kolomodor. Determinado a acabar com o campesinato soviético, Stalin tomou uma série de medidas para exterminá-lo. Em novembro de 1932 o ditador impôs aos kolkhozes uma série de multas no caso de “descumprimento” do plano de coleta.
Após recolher as multas, em gêneros alimentícios, os camponeses ficam sem ter o que comer. Logo a seguir, foi proibida a importação de alimentos. Os camponeses ficaram também proibidos de sair da Ucrânia. A fome foi tal que se registraram inúmeros casos de canibalismo. De 1931 a 1933, calcula-se que de 3 a 5 milhões de ucranianos tenham morrido em razão do Kolomodor. Se os burocratas soviéticos da época fossem questionados s obre o episódio, é quase certo que responderiam que só estavam cumprindo ordens superiores, não sem uma pontinha de satisfação. Afinal, cumpriram bem a tarefa que lhes fora designada.
Agora se fala por aqui numa tal de Comissão da Verdade. Cabe questionar: verdade de quê e de quem? Baseada em quê? O que é que essa comissão pretende realmente fazer?
Quem participou com alguma voz de comando dos fatos relativos aos tais “anos de chumbo” está hoje com pelo menos 80 anos de idade, dificilmente estará arrependido do que fez e juridicamente é inimputável. Mesmo que a Lei da Anistia viesse a ser revogada, o que faria com toda essa gente? Interná-la numa clínica geriátrica, submeter seus descendentes à execração pública?
Então, ficam no ar as perguntas: para que, afinal, a comissão? E se os octogenários responsabilizados por eventuais violações dos direitos humanos forem condenados, qual será o castigo reservado a eles? Ficarão proibidos de jogar cartas no Clube Militar? Serão obrigados a ouvir diariamente o repertório completo de Lady Gaga? Ou terão suspensa a sua medicação diuturna para hipertensão?
De qualquer forma, nada disso serve para nada. A não ser que a intenção por trás de tudo isso seja reescrever a História do Brasil. Agora pelo prisma da esquerda.
Fonte – O Estado de S.Paulo