Em 1980, a ditadura de Pinochet apresentou sua carta constitucional ao país e anunciou um plebiscito sobre a implantação. O texto foi redigido exclusivamente pelo advogado Jaime Guzmán, o principal ideólogo do regime militar.
Segundo Vergara, “todos os agentes da inteligência e também alguns funcionários públicos de confiança dos militares votaram várias vezes, em diferentes zonas eleitorais, não sei dizer ao certo quantos, mas éramos milhares”. Vergara diz que só entre os agentes da CNI eram mais de três mil os que saíram para votar reiteradas vezes em favor da opção “SIM”, que significava aprovar a nova carta.
O ex-agente também relatou que “os mesários e fiscais eleitorais nem nos obrigavam a fazer a fila, como os demais eleitores, embora eu tenha certeza de que eles também faziam parte da manobra, mas, em todos os locais que fui, me deixaram entrar, votar e sair em poucos minutos”. Segundo Vergara, ele votou quatro vezes naquele dia. “Foi uma fraude do tamanho de um navio”, classificou.
O plebiscito constitucional aconteceu em 11 de setembro de 1980, quando a ditadura celebrou os sete anos do golpe de Estado que levou os militares ao poder e terminou com a vida e o governo do ex-presidente Salvador Allende. Até hoje, as suspeitas sobre o processo eleitoral se resumiam a contestações à desigualdade imposta pelos repressores durante a campanha, quando proibiram todos os vídeos promocionais dos opositores nos canais do país e também negaram autorização para boa parte dos comícios, sobretudo em bairros mais humildes da capital.
Os dados oficiais do CNE (Comitê Nacional Eleitoral) da época registram que a opção “SIM” obteve 4,2 milhões de votos, o que significou 67% dos votos, enquanto o “NÃO” reuniu 1,9 milhão de votos, equivalentes a 30%. Estes resultados respaldaram a promulgação da Constituição chilena em 24 outubro de 1980 e que se mantém vigente até hoje.
As revelações de Vergara surgem poucos dias antes do primeiro aniversário das manifestações do movimento estudantil chileno, que tem na criação de uma nova assembleia legislativa no país uma das principais demandas. Os estudantes consideram a atual carta magna ilegítima por ter sido criada por uma ditadura – bandeira que compartilham com muitos outros movimentos sociais.
O camareiro da repressão
Apesar de não ter sido militar e nem figura emblemática na hierarquia da CNI, Jorgelino Vergara chegou a ser assessor pessoal do comandante-chefe do órgão, o general Manuel “El Mamo” Contreras, que hoje cumpre cadeia perpétua por sua responsabilidade nas violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura.
O trabalho de Vergara constava, basicamente, em levar água e comida para os agentes da CNI, e limpar os porões usados para tortura – o agente foi recrutado em 1974, aos 15 anos, quando foi pedir emprego numa casa suburbana que na verdade funcionava como quartel da organização. Sua figura ganhou notoriedade no Chile em 2011, quando foi lançado o documentário O Camareiro (cujo título original é El Mocito), que mostra sua visão particular da repressão no país.
Apesar de ter recebido treinamento militar nos anos 1980 após ganhar a simpatia dos chefes da CNI, Vergara afirma nunca ter participado pessoalmente de sessões de tortura. Por outro lado, reconhece que chegou a trabalhar, desde 1982, no chamado Quartel Simón Bolívar, a principal sede operativa da inteligência chilena durante a ditadura, “de onde nenhum prisioneiro saiu vivo”, assegurou.
A localização exata do Quartel Simón Bolívar era desconhecida até 2007, quando o próprio Vergara, em testemunho entregue voluntariamente à Justiça chilena, desvendou o segredo.
Fonte – Opera Mundi