O que chama a atenção nesse fraquíssimo e esquizofrênico texto é que o autor, com o título de mestre em Ciência Política pela USP, maneja os conceitos corretos e imediatamente induz o leitor a deturpá-los. Mas, embora seja um texto insustentável à luz das suas próprias premissas, a falácia precisa ser notada e denunciada. Não podemos perder a disputa pela opinião pública.
O autor afirma que “ao se debruçar sobre ‘as graves violações de direitos humanos’, a comissão terá também de especificar o que ela julga ser ‘grave’ “.
Óbvio.
E prossegue: “um parâmetro possível é considerar grave violação aquilo que é crime no Direito Internacional”.
Por ora, nenhum problema. Penso que é isso mesmo. O enorme lapso de tempo que a lei colocou como objeto de apuração, 46 a 88, impõe a necessidade de estabelecer critérios e focos. Este é um: o que é crime no Direito Internacional?
De plano, posto este foco, é imediato e intuitivo que praticamente desaparece do período de apuração o tempo decorrido de 46 a 64, sob uma Consituição democrática.
Porque ao dizer crime perante o Direito Internacional estamos dizendo CRIMES CONTRA A HUMANIDADE.
O conceito de crime contra a Humanidade é este (aproximadamente como definido pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional) :condutas praticadas pelo Estado que visem eliminar ou impor graves danos a grupos de pessoas (etnias, minorias, opositores políticos, etc) praticadas de modo INTENSO ou SISTEMÁTICO.
O conceito também admite, em vez de Estado, “organização”. Seria o caso – comum na África, por exemplo – de facções ou exércitos que não controlam aparelho do Estado ou não são reconhecidos como tal, mas que equivalem ao Estado pelo potencial ofensivo que detém.
Postas as coisas neste perspectiva (até agora estou de acordo com o texto) a manipulação grosseira aparece apenas no seu final: diz o autor que deverá a Comissão verificar se os grupos não estatais cometeram crimes contra a humanidade.
As próprias premissas do autor tornam logicamente desnecessárias essa afirmação!
Ou teríamos que, digamos, Marighella, dedicou-se a uma luta com o objetivo aniquilar ou impor graves danos a uma parte do povo brasileiro? Porque somente assim se poderia cogitar de crime contra a humanidade. O jovem autor, com o cinismo do fascismo, quer convencer hoje a opinião pública de que há alguma possibilidade teórica, conceitual, de comparar Ustra com Marighella, ou Mário Alves, ou Lamarca, que exerciam o direito – filsoficamente consolidado há séculos – de resisitir contra a tirania, de opor-se a uma ditadura que havia derrubado um governo democrático, legitimamente eleito.
É isso que, sutilmente, deixa aberto o final do texto, mesmo contrariando o próprio conceito de crime contra a humanidade que o autor corretamente menciona antes.
Claro que, colocado como foco da comissão crimes contra a humanidade, somente resta como objeto de apuração a conduta do Estado na ditadura: havia uma diretriz do Estado de aniquilar, utilizar tortura, praticar violações, liberdade aos seus agentes para estuprar, etc. Isso é crime contra a Humanidade: conduta do Estado voltada contra parte de sua população, COM O DOLO de aniquilar seres humanos. COM O DOLO de torturar. COM O DOLO de impor graves sofrimentos. De modo intenso ou sistemático, mas com potencial ofensivo.
Este conceito tem uma base histórica. Não é uma criatura intelectual: foi construído a partir do Estado nazista, do holocausto e da experiência histórica de Estados que se dedicaram, como meta política, ao extermínio de parte de seu próprio povo.
Expor o conceito e ao mesmo tempo buscar enquadrá-lo em algo que é tão grosseiramente distinto do seu âmbito de abrangência poderia ser apenas pueril. Mas neste caso é um tentativa de manipulação grosseira da opinião pública. E ainda que grosseira e insustentável, joga um papel. Deve ser rigorosa e duramente repelida.
Marcio Sotelo Felippe (membro do Comitê Paulista Memória Verdade Justiça)