A criação da CNV é uma oportunidade significativa para consolidar a democracia brasileira, esclarecendo os fatos mais dolorosos de seu recente passado histórico. Ao mesmo tempo, considerando-se o protagonismo do Brasil no cenário mundial, a CNV significa um gigantesco passo para afirmar o crescente consenso internacional sobre a importância do direito à verdade sobre as mais graves violações dos direitos humanos.
O Centro Internacional para a Justiça de Transição (ICTJ, em sua abreviatura em inglês) seguiu com atenção o processo de criação da CNV e compartilhou sua experiência com diversas instituições do governo e da sociedade civil brasileira. O ICTJ considera que a abundante experiência comparativa e as boas práticas identificadas durante a operação de cerca de 40 comissões da verdade em todos os continentes, apresentam um caudal de conhecimento que a CNV deve aproveitar2.
Neste documento, o ICTJ examina a Lei no. 12.528/11 com uma orientação eminentemente prática: quais oportunidades específicas a lei apresenta para criar uma comissão da verdade exemplar, que esclareça os fatos, assegure o cumprimento dos direitos das vítimas e contribua decisivamente para a democracia brasileira? As observações e propostas desse texto oferecem aos membros da CNV, às organizações da sociedade civil e aos funcionários públicos brasileiros ideias para fazer dos dois anos de trabalho da comissão um espaço de encontro construtivo e efetivo.
1. Observações Gerais: A CNV em Perspectiva Comparativa
A CNV se enquadra na boa prática latino-americana de fornecer rotas efetivas para a implementação do direito à verdade. As primeiras comissões da verdade surgiram no Cone Sul e várias das comissões mais exitosas, assim como as iniciativas mais criativas de busca da verdade, surgiram na região. Para identificar oportunidades específicas, é de utilidade assinalar os elementos que fazem da CNV um tipo particular, assim como suas semelhanças com a prática regional.
1.1. Particularidades da CNV Brasileira
Em primeiro lugar, a CNV foi estabelecida por ação do poder legislativo brasileiro. Esta é uma significativa diferença de várias experiências latino-americanas anteriores, onde as comissões foram criadas por decreto do poder executivo3, às vezes implementando um acordo de paz. Esta particularidade é importante porque nos sistemas constitucionais da região as instituições estabelecidas com força de lei desfrutam de maiores poderes operativos para implementar seu mandato. Diferentemente das comissões da verdade no Chile, na Guatemala ou no Peru, por exemplo, que só podiam solicitar colaboração das distintas instâncias estatais, a Lei no. 12.528/11 ordena taxativamente aos servidores públicos civis e militares a colaborar com a CNV4.
A CNV, assim, surge legalmente dotada de poderes de investigação, dos quais careceram outras comissões; supõe-se que esta situação seja uma oportunidade. De acordo com a análise realizada por técnicos brasileiros5, os poderes assinalados pela lei são semelhantes àqueles do Ministério Público Federal ao realizar “investigações civis”, e qualquer limitação dos poderes de requisição de informação e documentos, citação de testemunhas, inspeção de lugares e outras diligências, entra em conflito com a própria natureza da comissão.
Em segundo lugar, a CNV surge depois do trabalho de esclarecimento já realizado por duas comissões oficiais prévias, cujo trabalho de reconhecimento e reparação continua vigente: a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos6 e a Comissão de Anistia7. Ambas comissões investigaram um amplo espectro de violações de direitos humanos, dando respaldo oficial às informações fornecidas por vítimas diretas da ditadura militar de 1964- 1985 e seus familiares.
Devemos agregar a isto à existência no Brasil do trabalho prévio do Arquivo Nacional, o qual coloca à disposição da sociedade um amplo repertório documental através do centro de referência “Memórias Reveladas”8. Ao mesmo tempo, a entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação9 permite à comissão e aos cidadãos brasileiros a obtenção de arquivos estataisrelacionados com as violações de direitos humanos, que não podem permanecer em sigilo. Nenhuma comissão latino-americana anterior teve a vantagem de tal compilação de evidências documentais. Ou seja: a CNV terá à sua disposição um enorme acervo informativo e um instrumento legal adequado para possibilitar seu trabalho.
1.2 Semelhança da CNV Brasileira com Outras Comissões Latino-americanas
Vale a pena indicar em que a CNV se parece com outras experiências latino-americanas e como essas semelhanças podem também apresentar desafios e oportunidades concretas:
Como muitas comissões latino-americanas anteriores, a CNV surge em um contexto de impunidade. A CNV coexiste com um mecanismo de jure que garante a impunidade dos perpetradores das mais graves violações de direitos humanos: a atual interpretação da Lei de Anistia de 197910; interpretação segundo a qual os agentes do Estado que cometeram delitos estão protegidos de consequências penais. Porém, a existência dessa anistia não impede a investigação não jurisdicional dos fatos que está inserida na lei da CNV.
A Comissão Rettig, estabelecida imediatamente após a transição democrática no Chile11, foi criada durante a vigência da lei de anistia decretada pela ditadura militar12; a Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru, foi criada imediatamente depois da queda do regime encabeçado por Alberto Fujimori13, iniciando suas operações durante a vigência das leis de anistia ditadas pelo fujimorismo14 e que só perderam a vigência com o caso “Barrios Altos”, litigado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos15.
Nenhuma dessas comissões tinha poderes jurisdicionais, nem consequências penais. Em ambos os casos, foram criadas sob a premissa de que o esclarecimento não jurisdicional dos fatos não contradiz de forma alguma o impedimento dado pelas anistias à persecução penal. Qualquer outra interpretação teria conduzido imediatamente à efetiva inutilização das comissões da verdade em ambos os países.
O caso brasileiro é semelhante: a CNV tem o mandato taxativo de esclarecer as mais graves violações dos direitos humanos, considerando os fatos, as circunstâncias e as responsabilidades institucionais e sociais dessas violações, e – para um certo tipo de casos – sua autoria16. Tal tarefa de esclarecimento em profundidade, na medida em que não temcaráter jurisdicional17, é neutra quanto à atual interpretação da Lei de Anistia de 1979: não apresenta nem obstáculos à sua aplicação, tampouco obstáculos à sua eventual não-aplicação.
Em perspectiva comparativa, dentro da região latino-americana, a CNV nasce dotada de amplos poderes, com uma excelente base documental e com um mandato de esclarecimento protegido do alcance dos atuais obstáculos de jure à ação jurisdicional.
2. O Direito à Verdade e à Promoção da Reconciliação como Pilares Normativos da CNV
O mandato legal da CNV afirma, em primeiro lugar, como orientação fundamental, a necessidade de tornar efetivo “o direito à memória e à verdade histórica” e de promover “a reconciliação nacional”18. Ambas expressões requerem interpretação à luz da prática internacional e de precedentes no Brasil, com o fim de esclarecer o sentido fundamental das tarefas da CNV.
2.1. O Direito à Verdade
A comunidade internacional expressou, por meio de distintos organismos das Nações Unidas, que o direito à verdade pertence às vítimas das mais graves violações dos direitos humanos, a suas famílias e à sociedade em seu conjunto, para conhecerem as circunstâncias dos fatos violatórios, inclusive a identidade de seus autores19.
O direito à verdade tem suas raízes no direito internacional humanitário que no Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra20 reconhece o direito dos familiares de pessoas desaparecidas a conhecer seu paradeiro e à consequente obrigação estatal de levar a frente sua busca. Esta noção inicial se ampliou com o tempo para responder ao doloroso caso dos desaparecimentos forçados e foi adotada progressivamente pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, pelo Grupo de Trabalho da ONU sobre o Desaparecimento Forçado ou Involuntário e pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU. A crescente compreensão e aceitação desse direito superou seu foco inicial nas pessoa desaparecidas e agora permite reconhecer sua aplicabilidade em geral para toda grave violação dos direitos humanos.
A criação de dezenas de comissões da verdade e outros organismos semelhantes no mundo21 é um forte indicativo de práticas nacionais que fortalecem a convicção de que o direito à verdade emerge como uma norma consuetudinária de direitos humanos. Entre todas as comissões da verdade, porém, só poucas fizeram menção explícita do direito à verdade como sua base legal e as que o fizeram (Guatemala22 e Peru23) limitaram-na a suas consideraçõespreliminares. A CNV do Brasil é, neste sentido, precursora ao incorporar claramente o direito à verdade no art. 1o da lei.
A concepção do direito à verdade já tem uma marca significativa no Brasil. A criação anterior das duas comissões de reparação pressupôs o reconhecimento histórico do Estado brasileiro de sua responsabilidade em relação às graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura e seu explícito rechaço a versões negacionistas, que minimizavam ou justificavam os crimes. A expressão “direito à memória e à verdade” deu seu nome ao Informe da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos24 lançado em 29 de agosto de 2007 e sua importância é reconhecida no Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos25, no qual o direito à memória e à verdade é um “eixo orientador”, com diretrizes específicas para o Estado brasileiro.
A afirmação explícita do direito à verdade no mandato da CNV é uma orientação inequívoca para os comissionados, para as distintas comissões que se estabeleceram com o propósito de auxiliá-la26 e para a sociedade civil: a CNV deve produzir o esclarecimento circunstanciado dos fatos, causas, responsabilidades e autoria das graves violações dos direitos humanos.
2.2. Reconciliação
A Lei no.12.528/11 alude também à busca da reconciliação, no entanto –diferentemente de muitos outros países27 e diferentemente de sua ênfase no conceito de “verdade”– a atenção a este conceito não chega ao nível de consagrá-la no nome da CNV.
O conceito de reconciliação requer cuidadosa discussão, pois admite muitas e divergentes interpretações, e pode levantar dúvidas e temores entre distintos setores sociais, cuja participação é fundamental para uma comissão da verdade.
Em alguns países, as vítimas se opuseram à utilização do conceito de “reconciliação” temendo que fosse usado como um instrumento de perdão forçado com relação aos perpetradores, lhes permitindo consagrar uma situação de impunidade. De fato, algumas comissões da verdade incluíram em seu mandato noções de reconciliação como perdão interpessoal, resultando em experiências fracassadas28 devido à firme oposição das vítimas.
A conceitualização da reconciliação requer acordos em duas dimensões: a identidade dos atores da reconciliação e a profundidade que se almeja alcançar com a reconciliação.
No primeiro aspecto, no que tange aos atores da reconciliação, parece ser errôneo pensar que uma comissão da verdade possa ter o objetivo da reconciliação interpessoal, em particular entre vítima e agressor. O perdão pessoal é uma decisão livre, que não pode ser jamais imposta e sobre a qual não cabem pressões, nem expectativas. Da mesma forma, não é desejável assumir um sentido político-partidário da reconciliação: uma comissão da verdade não é um instrumento de mediação, nem de negociação entre líderes políticos em busca de um pacto, como, por exemplo, um processo de paz ou um pacto constitucional.
Uma identificação correta dos atores da reconciliação requer que a entendamos como um processo de refundação dos laços de confiança que estão na base da vida da cidadania29. Longos períodos de violência oficial e de impunidade destroem a confiança na função protetora do Estado e estimulam a perpetuação de mais comportamentos abusivos, confirmando a desconfiança.
Distintas comissões da verdade, como as da África do Sul30, Guatemala31 e Peru32, enfocaram seus esforços na reconciliação como um processo “nacional”, ou seja, não limitado a atores individuais e sim institucionais: o reencontro entre cidadania e Estado; a superação de formas institucionalizadas de violência como o racismo; a profunda reforma do aparelho estatal. Esta é a direção mais proveitosa para identificar os atores da reconciliação.
Quanto ao segundo aspecto, importantes protagonistas de comissões da verdade alertam contra um entendimento superficial da reconciliação: a redução da reconciliação a um ritual vazio de conteúdo, que proclama um perdão forçado e busca manter a situação de impunidade intocada, sem revelar a verdade, e em troca de benefícios33. Nos últimos anos, algumas comissões da verdade foram concebidas como instrumentos de reconciliação “administrativa”, exigindo das vítimas a renúncia de seus direitos e o perdão do perpetrador em troca de compensação monetária34.
Ao mesmo tempo em que tal “pseudo-reconciliação” deve ser rechaçada, a busca de um processo de reconciliação profundo, que mude radicalmente as atitudes entre grupos sociais da noite para o dia, parece uma ilusão ingênua ou interessada35. A transformação de profundos desencontros sociais não pode deixar de ser um processo longo e complexo, do qual uma comissão da verdade é apenas um entre muitos passos. Parece mais realista aspirara um processo que produza resultados específicos e mensuráveis em instituições concretas: reformas institucionais que dificultem a repetição de violações massivas dos direitos humanos.
3. A Ampla Competência Investigativa da CNV
A função de esclarecimento da CNV lhe concede uma amplíssima competência investigativa. Poucas comissões da verdade no mundo tiveram um mandato tão ambicioso, o que apresenta desafios fundamentais, mas também grandes oportunidades.
A Lei no. 12.528/11 define a competência da CNV no terreno das “graves violações dos direitos humanos”36 praticadas no período 1946-198837. Para algumas dessas graves violações –que se enumeram em um parágrafo especial38– a CNV deve praticar o esclarecimento circunstanciado dos fatos, inclusive se ocorridos no exterior. Portanto, a competência material, temporal e territorial da CNV é amplíssima, pois se refere a graves violações cometidas ao longo de um período histórico de mais de quatro décadas e a fatos ocorridos em qualquer parte do mundo onde tenham sido vitimizados cidadãos brasileiros, como resultado do processo político que abrange este período.
3.1. A Competência Material: Graves Violações de Direitos Humanos
O conceito de “graves” violações das normas de direitos humanos sofreu transformações ao longo do tempo e tem se expressado de diversas formas. Porém, podemos afirmar com segurança que há um consenso ao determinar que as “graves” violações de direitos humanos são aquelas que violam direitos inderrogáveis de forma massiva ou sistemática39.
A lista das “graves violações” de acordo com a jurisprudência dos tribunais penais internacionais ou nacionais, e de órgãos criados em virtude de tratados de direitos humanos, tem –portanto– evoluído. Desde os primeiros estudos nos anos 90 até os princípios aceitos atualmente, a lista se ampliou para incluir as diversas condutas constitutivas do genocídio, dos crimes de lesa humanidade e dos crimes de guerra.
O uso do conceito de violações “graves” não relativiza outras violações, nem indica de forma alguma um descuido de dever do Estado de prover remédio efetivo, inclusive investigações, para as vítimas de todas las violações dos direitos humanos, inclusive das violações dos direitos econômicos, sociais e culturais.
A evolução histórica das comissões da verdade testemunha essa expansão: a comissão Sábato, de 1983, enfocava somente no desaparecimento forçado, o que na atualidade seria uma limitação inaceitável. A incapacidade da Comissão de Verdade e Reconciliação sul- africana de 1995 de investigar as violações de direitos econômicos, sociais e culturais causadas pelo Apartheid tem sido duramente criticada40. A falta de inclusão explícita da violência sexual no decreto que cria a Comissão de Verdade e Reconciliação peruana de 200141, teve que ser corrigida pelos próprios comissionados.
O mandato da CNV apresenta uma lista de quatro condutas para as quais a lei requer atenção especial, mas que não são o foco exclusivo de sua atuação: nos casos de tortura, “mortes”, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres a CNV deverá produzir um esclarecimento dos fatos que inclua a autoria. Como foi indicado, a lei não limita o mandato da comissão a essas quatro condutas; só as indica para um tratamento especial. Seria excessivamente restritivo concluir que o legislador criou uma comissão da verdade meramente para redundar no trabalho já realizado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, com o acréscimo da tortura.
A única restrição apresentada pela lei no espectro de graves violações cobertas por sua investigação é que hajam ocorrido entre 1946 e 1988. A CNV tem, portanto, uma responsabilidade fundamental e uma oportunidade significativa: a de assegurar que todos os setores da sociedade brasileira gravemente vitimizados nesse período tenham a possibilidade de apresentar seus depoimentos.
Para que esta oportunidade seja aproveitada adequadamente, a CNV deveria implementar um processo de consulta social e uma revisão da documentação existente sobre graves violações dos direitos humanos mencionada no período do mandato. De acordo com tal consulta e revisão, a CNV deveria tomar uma decisão formal e pública sobre as violações que investigará, o que poderia incluir diversas condutas, como, por exemplo:
- A violência sexual em todas as suas formas, inclusive condutas como a violação, a escravidão sexual, os abortos forçados, a gravidez forçada;
- A violação de direitos dos povos indígenas por condutas como o extermínio, o deslocamento forçado, a perseguição, a grilagem de terras;
- A violação dos direitos de crianças e adolescentes, por condutas como o sequestro, a prisão arbitrária e outras violações resultantes dos abusos sofridos por seus pais, familiares ou tutores;
- A violência sistemática contra pessoas de setores sociais marginalizados na forma de “limpeza social” e brutalidade policial;
- A imposição do exílio e outras violações análogas que hajam causado a perda da proteção legal dos direitos do cidadão, etc.
3.2. A Competência Temporal: 1946-1988
A Lei no. 12.528/11 não se refere diretamente à competência temporal da comissão, mas faz referência ao “período fixado no art. 8o do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias”. O aludido artigo se refere ao período entre 1946 e 198842. Tal competência situa a CNV entre as comissões com a competência temporal mais ampla, comparável, por exemplo, com a Comissão de Esclarecimento Histórico da Guatemala que investigou violações cometidas durante o conflito armado interno de 1962-1996; ou com a atual Comissão da Verdade e Reconciliação do Quênia, que deve investigar as violações ocorridas entre a data da independência do país no ano de 1961 e os graves acontecimentos de 200843.
Uma competência temporal tão ampla apresenta dificuldades práticas, pois a CNV terá sérias dificuldades para investigar com profundidade violações de direitos humanos muito antigas, para as quais restam poucas testemunhas e documentos. Entretanto, a amplitude é também uma oportunidade, pois permite articular um argumento histórico sólido que situa num contexto correto o período mais intenso e traumático da violência.
Outras comissões —Guatemala44, Marrocos45, Paraguai46, para mencionar somente três exemplos— receberam igualmente mandatos de grande extensão temporal, tendo respondido exitosamente ao desafio. A melhor prática parece ser a de identificar com clareza uma linha de tempo descritiva e explicativa, que determine as causas e os contextos políticos dos piores momentos de violência. No caso do Brasil, existe uma ampla expectativa das vítimas e da sociedade civil de que a CNV esclarecerá as massivas violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura, mas que ao mesmo tempo seja capaz de situar esse fenômeno político em um contexto histórico adequado, que faça justiça, por exemplo, às vítimas de graves impactos sociais anteriores à ditadura.
3.3. A Competência Territorial: Brasil e Exterior
As graves violações contempladas pela lei ocorreram fundamentalmente no território brasileiro; entretanto, para os casos de tortura, “mortes”, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, a lei dispõe que o esclarecimento dos fatos e sua autoria se busquem estabelecer inclusive em casos ocorridos no exterior47.
A inclusão de violações cometidas no exterior permite assegurar que não se perca a experiência de brasileiros que tenham sido vítimas da cooperação repressora entre regimes ditatoriais. Ao mesmo tempo, já que a lei menciona “mortes” e não “assassinatos” ou “execuções”, levanta-se a questão da inclusão potencial de mortes que não tenham sido o resultado direto de uma ação homicida, mas o resultado indireto de outros abusos, como o exílio.
A adequada implementação do mandato da CNV irá requerer, neste sentido, o estabelecimento de formas eficientes de cooperação com instituições defensoras dos direitos humanos e de busca de informação arquivística em outros países, em particular na Américado Sul. Uma das tarefas mais importantes para a CNV durante seu período inicial será estabelecer convênios de cooperação que lhe permitam levar adiante sua função investigativa fora do Brasil.
4. Função de Esclarecimento
A Lei no. 12.528/11 exige da CNV um esclarecimento profundo das graves violações de direitos humanos sob sua competência; indicando quatro condutas para um tratamento especial. Ao mesmo tempo, a lei apresenta algumas limitações para a publicidade dos trabalhos da comissão, que não devem afetar o desenvolvimento de suas funções.
4.1. Esclarecer Fatos e Circunstâncias
A lei exige o esclarecimento “dos fatos e circunstâncias dos casos” de graves violações dos direitos humanos e agrega que a CNV deverá “identificar e fazer públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias” das violações, inclusive suas “ramificações nos diversos aparelhos estatais e da sociedade48”.
O esclarecimento dos fatos indica que a CNV deve investigar, reconstruir e expor publicamente condutas violatórias dos direitos humanos. Essa tarefa é fundamentalmente descritiva, e responde às perguntas “Que classe de abuso ocorreu? Quem o levou a cabo e quem foi afetado? Quando e onde ocorreu?
Ao longo de sua história, as comissões da verdade desenvolveram instrumentos cada vez mais sofisticados para identificar e descrever os fatos, mesmo quando tiveram que enfrentar um amplíssimo número de casos. Em El Salvador49, Guatemala50 e Peru51, por exemplo, onde conflitos armados causaram dezenas de milhares de vítimas fatais, as comissões combinaram a análise legal e estatística para descrever “padrões” ou regularidades de cada tipo de violação. Porém, ao mesmo tempo em que construíram tais “padrões”, os informes incluíram seções nas quais descreveram com detalhe, de forma individual, alguns desses casos, devido a sua capacidade de exemplificar os padrões antes reconstruídos.
O esclarecimento das circunstâncias, porém, vai mais além de um exercício descritivo e requer um esforço explicativo e normativo: Por que aconteceu este fato? Por que se trata de um abuso que viola direitos fundamentais?
Este tipo de exercício requer o encontro de diversas disciplinas, tais como as ciências histórico-sociais, o direito, a psicologia e a filosofia. Trata-se de situar a violação enquanto conduta de seres humanos, no marco de ideologias, estruturas sociais e políticas que criaram as condições para que agissem perpetradores e agressores. Trata-se, ao mesmo tempo, de identificar com precisão os efeitos das violações dos direitos humanos na vida dos indivíduose das coletividades. A CVR sul-africana52, por exemplo, reconstruiu em detalhe as estratégias de repressão e resistência durante o Apartheid, a forma específica em que se desenvolveu a violência em cada uma das regiões do país e as condutas e responsabilidades institucionais de diversos atores sociais, inclusive nas áreas empresarial, jurídica, média e sindical, nas comunidades religiosas, na imprensa e nas prisões.
4.2. Alguns Casos Particulares
Como comentado anteriormente, a lei menciona explicitamente quatro tipos de violações para um tratamento especial: torturas, mortes53, desaparecimentos forçados e a ocultação de cadáveres. Nesses casos, a lei fixa como objetivo da CNV o “esclarecimento circunstanciado” e “sua autoria”, “ainda que ocorridos no exterior”.
O “esclarecimento circunstanciado” se refere ao conhecimento das circunstâncias de modo, lugar e tempo das violações, e não pode ser menos ambicioso que o tratamento que se dá ao grande universo das “graves violações” de forma geral; de outro modo é inexplicável que se mencione esses quatro tipos de violações especificamente. Agrega-se, com ênfase importante, o esclarecimento da “autoria”, quer dizer, a realização por determinados indivíduos das ações de violação as quais se busca esclarecer.
Outras comissões, em vez da “autoria” estabeleceram a “responsabilidade” dos abusos. A Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru distinguiu entre a responsabilidade penal, onde a comissão podia apenas assinalar de forma circunstancial, remetendo o caso ao sistema judiciário para seu efetivo esclarecimento, e outras formas de responsabilidade, como a política ou a moral54.
Porém, a Lei no.12.528/11 é muito mais precisa: traz em seu bojo a “autoria”. Já que o conceito de autoria é tão complexo e variado como as diversas teorias do direito penal e do pensamento sociológico, corresponderá aos membros da comissão chegar a uma definição prática.
As quatro condutas para as quais a lei indica o objetivo de estabelecer a autoria são complexas e frequentemente levadas a cabo com a participação de muitos agentes, atuando em conjunto; consequentemente, torna-se imperativo que a CNV seja capaz de identificar não somente a autoria de quem cometeu os abusos pessoalmente, mas também aqueles que foram partícipes, mandantes ou cúmplices nas violências.
Como argumentado no capítulo 1 dessas observações, o esclarecimento da autoria não entraem conflito com a atual interpretação da lei de anistia de 1979, pois essa somente obstaculiza na atualidade o processo penal, mas não o esclarecimento sem “caráter jurisdicional ou persecutório”55, objetivo principal das comissões da verdade e descrito no mandato da CNV brasileira.
O esclarecimento da autoria para a CNV impõe uma importante responsabilidade para a comissão: a necessidade de estabelecer com clareza seu critério de convicção e respeitar os princípios básicos da equidade.
A CNV deverá determinar quais critérios utilizará para chegar a decidir sobre a autoria com base na informação disponível. Já que se trata de um instrumento não jurisdicional, sem consequências penais, seria inapropriado exigir-se um elevado padrão de certeza como o que se utiliza em um tribunal, o que, em algumas tradições jurídicas, se denomina a certeza “além de toda dúvida razoável”.
Nesta tarefa, a CNV deve apoiar-se na experiência de outras comissões da verdade que – no exercício de suas competências – nomearam autores de violações de direitos humanos. Assim, por exemplo, a Comissão da Verdade e Reconciliação de Serra Leoa utilizou um padrão de certeza baseada na “preponderância” da informação ou no “equilíbrio de probabilidades”56. A Comissão da Verdade de El Salvador, estabeleceu três graus de certeza possíveis para suas afirmações, baseados na informação recebida: provas impressionantes, provas substanciais e provas suficientes57.
No caso de chegar a conclusões relativas à autoria em um determinado caso, a CNV deverá dar às pessoas afetadas por tal informação a oportunidade de se defenderem.
4.3. Limitações ao Esclarecimento
A Lei no.12.528/11 é clara quanto ao dever da CNV de respeitar o caráter reservado (sigiloso) de certas informações obtidas no curso de suas investigações58. Ao mesmo tempo, a CNV deverá —a seu critério— tomar medidas de proteção de informações que possam afetar ao direito das pessoas “à intimidade, à vida privada, à honra ou à imagem” 59.
O caráter reservado de certos dados deve ser avaliado de acordo com os instrumentos legais existentes no Brasil sobre o acesso dos cidadãos à informação. A Lei no.12.527/11 promulgada pela Presidenta Rousseff ao mesmo tempo que a lei que criou a CNV é o principal instrumento neste sentido. Saliente-se que esse instrumento legal não permite a confidencialidade de informações que sobre casos de violações dos direitos humanos, que são –presumivelmente– as informações que a CNV obterá60. Considerando-se, portanto, a estrita aplicação da lei de acesso à informação, a garantia de confidencialidade que se exige da CNV não deveria constituir um risco para a integridade e efetividade de sua investigação.
Ao mesmo tempo, a lei, corretamente, fixa mecanismos de proteção para os direitos das pessoas a sua intimidade, privacidade, honra e imagem: estas proteções devem ser aplicadas “segundo o critério” da CNV. Esta é uma boa prática amplamente reconhecida entre as comissões da verdade ao redor do mundo, que aplicaram esses mecanismos protetivos para assegurar que as vítimas que dão seu depoimento não sofressem estigmatização e represálias, por suas circunstâncias ou pelo tipo de abusos aos quais foram submetidas. Assim, por exemplo, todas as comissões que trataram da violência sexual foram cuidadosas em assegurar que as vítimas tenham sempre a opção de proteger sua identidade, prestando sua participação testemunhal em um espaço reservado e respeitoso, e que sua identidade seja protegida no informe final, a não ser que a própria vítima decida revelá-la61. Comissões que estudam a violência cometida contra menores de idade62 também tomaram medidas para proteger a identidade deste tipo de vítimas.
5. Oportunidades Mobilizadoras, Educativas e Preventivas
A construção de parcerias e de um trabalho de comunicação eficaz para com a opinião pública são fatores fundamentais para o êxito de uma comissão da verdade. A Lei no. 12.528/11 dota a CNV com a mais ampla capacidade de estabelecer tais parcerias com instituições públicas ou privadas, nacionais ou internacionais, com o fim de atingir seus objetivos63.
Esta é uma significativa oportunidade no contexto brasileiro, pois no Brasil existe uma densa organização da sociedade civil, diversas instâncias estaduais e locais estão gerando órgãos complementares à CNV. Além disso, importantes instituições estatais têm experiência na investigação em graves violações dos direitos humanos.
A CNV tem a oportunidade de se colocar no topo de um amplo processo nacional de diálogo sobre o passado autoritário, suas consequências, a necessidade de superar a impunidade e evitar a perpetuação das graves violações dos direitos humanos. As organizações não-governamentais, a imprensa, as escolas, as comunidades religiosas, as associações profissionais e econômicas têm a possibilidade de contribuir para este processo através de convênios de cooperação.
Entretanto, a ambiciosa meta de gerar um diálogo de escala nacional requer uma correta política de comunicação: uma comissão da verdade que almeje ganhar a confiança dos cidadãos deve ser exemplar em sua transparência, clareza e honestidade.
Merece especial atenção o crescente interesse dos cidadãos, particularmente entre a juventude brasileira, em relação à impunidade dos crimes de Estado cuja investigação jurisdicional está obstaculizada pela atual interpretação da Lei de Anistia. Tal assunto é do mais alto interesse nacional, e ultrapassa os estreitos âmbitos do meio jurídico: a CNV pode converter-se no espaço democrático por excelência para escutar as vozes das vítimas e de toda a sociedade sobre a impunidade.
Uma oportunidade especial é a criação das comissões da verdade locais e regionais, tais como as criadas pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e pela Câmara Municipal de São Paulo64, como já mencionado. Na medida em que comissões locais semelhantes sejam criadas, a CNV poderá contar com efetivos aliados para garantir a cobertura do amplo território brasileiro, reconstruir os contextos locais das violações, disseminar efetivamente a informação e obter a participação mais ampla da sociedade.
Na medida em que a comissão deve tornar públicas “as estruturas, locais, instituições e circunstâncias” que possibilitaram as violações dos direitos humanos, apresenta-se uma valiosa oportunidade. A CNV poderia criar convênios com entes estatais, como o Ministério da Educação, com associações de professores, com faculdades de história das universidades brasileiras, para elaborar e aplicar instrumentos educativos que permitam o conhecimento objetivo dos fatos pela juventude brasileira.
A menção especial que a lei faz aos “locais” relacionados com as violações de direitos humanos apresenta a oportunidade de levar adiante um importante trabalho de restauração da nemória. Como os padrões de violação dos direitos humanos como a tortura, necessitaram de uma ampla infraestrutura estatal, a CNV pode identificar estes lugares e contribuir para sua recuperação e valorização como lugares de consciência, museus ou centros de referência. Igualmente, a CNV pode chamar a atenção sobre o fato de que o período ditatorial marcou o espaço físico —ruas, praças, edifícios— com referências ofensivas para com as vítimas, como a celebração de líderes anti-democráticos e perpetradores de abusos. A CNV pode trazer ao diálogo social formas de purificar o espaço coletivo dos cidadãos de tais referências re-vitimizadoras.
Por último, através das recomendações de políticas que apresentará como consequência de seu trabalho, a CNV tem um papel importante na prevenção de contínuas e futuras violações. A identificação de padrões de violações e das estruturas e instituições que possibilitaram esses abusos, permitirá a elaboração de recomendações eficazes, que poderá refletir na relação entre civis e militares, na doutrina e treinamento das forças armadas e policiais, na efetividade da administração da justiça, entre outras. Neste sentido, a CNV dificilmente poderá abster-se em seu informe final de apresentar uma opinião ética sobre a persistente situação de impunidade que afeta os direitos das vítimas e incentiva a persistência de condutas abusivas.
6. Conclusões
A CNV nasce apartir de um marco legal que lhe permite enfrentar a ambiciosa tarefa de trazer luz sobre o passado autoritário do Brasil e de contribuir para a consolidação dademocracia. A utilização adequada desse instrumento legal requer que os comissionados aproveitem todas as oportunidades possíveis para tornar efetivos os direitos das vítimas, dentro de um trabalho transparente, caracterizado pela consulta permanente da sociedade civil.
Em particular, o instrumento legal da CNV permite uma nova oportunidade para mobilizar todos os recursos do Estado para efetivamente elucidar os fatos, as circunstâncias e a autoria dos delitos cometidos contra militantes de organizações opositoras da ditadura militar de 1964-1985. Em virtude da falta de cooperação das agências estatais, as investigações anteriores sobre este tema se apoiaram quase exclusivamente nos depoimentos dos familiares das vítimas: esta situação deve mudar radicalmente em consequência do poder, dado a CNV, de requerer testemunhos, bem como o novo instrumento jurídico sobre o acesso à informação.
As investigações da CNV abrem também a possibilidade de uma ampla investigação sobre violações pouco conhecidas ou investigadas até hoje: os massivos abusos sofridos pela população independentemente de sua militância política, como parte do modelo social, político e econômico imposto pela ditadura e ao longo do processo histórico que levou a ela. A comissão deverá prestar particular atenção à violência sistemática – a partir do Estado ou a partir de atores que contavam com a anuência estatal – contra setores marginalizados da sociedade: mulheres, pobres, camponeses, povos indígenas, crianças e adolescentes.
A atual interpretação da lei de anistia de 1979 não deve constituir um obstáculo para o trabalho eficaz da CNV. Tal norma está severamente questionada pelo avanço do direito internacional dos direitos humanos, como uma violação das obrigações internacionais do Brasil e deveria ser revogada. Porém, inclusive no extremo de uma aplicação continuada, a atual interpretação da lei de anistia só constitui um obstáculo para a investigação penal, não para a investigação não-jurisdicional de que trata uma comissão da verdade.
Em particular, a CNV deve cumprir de forma estrita seu mandato legal de esclarecer a autoria de assassinatos, torturas, desaparecimentos e ocultações de cadáveres. Isto implica em que a CNV deverá dar nome aquelas pessoas e instituições cuja autoria alcance convicção plena, seguindo os mais estritos padrões de objetividade e assegurando o direito de resposta aos implicados.
A CNV deve executar seu trabalho de forma aberta e transparente, estabelecendo amplas parcerias com a sociedade civil, a fim de assegurar que a população entenda e apóie seu mandato. Só uma eficaz política de parcerias garantirá à CNV o adequado cumprimento de seu mandato e o melhor marco político e social para a implementação de suas recomendações.
Em particular, a CNV deve aproveitar a oportunidade para a cooperação aberta para a criação de comissões da verdade estaduais e locais em diversas áreas do país. A busca da verdade a nível local e setorial permitirá mobilizar o país em torno da tarefa de recuperar a memória histórica, assegurar os direitos das vítimas e fortalecer a democracia.
Fonte – Centro Internacional para a Justiça de Transição