‘O Araguaia é uma ferida ainda não cicatrizada’

Com acesso ao arquivo pessoal do major Curió, jornalista Leonencio Nossa resgata história de guerrilheiros torturados e mortos

Uma nota de jornal com a notícia da morte da guerrilheira Áurea Elisa Pereira Valadão, aos 24 anos, no Araguaia, na década de 1970, encontrada pelo então estudante universitário Leonencio Nossa em 1997, foi a motivação para que, cinco anos depois e já formado em jornalismo, ele iniciasse uma pesquisa que duraria 10 anos. O resultado é o livro “Mata! O major Curió e as guerrilhas no Araguaia” (Companhia das Letras, 512 páginas, R$ 45).

Foram mais de 150 entrevistas, além da pesquisa de documentos em arquivos públicos e privados, para traçar o perfil e reconstituir a vida e a morte de 30 militantes do PCdoB e de moradores que se ligaram a eles durante os confrontos na região da floresta Amazônica conhecida como Bico do Papagaio.

O autor, que depois de sete anos de persistência, teve acesso exclusivo ao arquivo de Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, explica que os documentos e o testemunho do militar são uma das versões da história.

Curió não assume ter torturado e matado Áurea, a estudante mineira de Física da UFRJ, que se entregou sem apresentar resistência. No entanto, a apuração de Leonencio indica que a jovem foi executada, depois de ter sido submetida a sessões de tortura.

– O livro é a voz de Curió e de mais 150 pessoas. O Araguaia, como outras guerras, não é uma história que vai ser explicada por um único arquivo, uma única testemunha. Para contá-la, será preciso confrontar inúmeras versões – diz o jornalista, explicando que Áurea, a personagem que mais o intrigou, revela a face da brasileira comum que um dia esteve na luta armada. Áurea está na lista oficial dos desaparecidos políticos.

– É possível fazer leituras humanas. Áurea é o símbolo disso. É muito simplório dizer que a Guerrilha do Araguaia queria derrubar a ditadura, implantar o comunismo. Eram 70 pessoas, cada uma com objetivos e visões de vida diferentes. A partir de 1968, depois do AI-5, jovens ligados ao movimento estudantil eram perseguidos e presos nas cidades. Muitos foram para o Araguaia para sobreviver e continuar a resistir à ditadura.

Ao traçar um panorama histórico da violência na região, chegando a conflitos recentes como o Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, o jornalista contesta a tese de que a Guerrilha do Araguaia é só mais um episódio da Guerra Fria. Para ele, é possível contar a história do Brasil por meio do Araguaia.

– O Araguaia é uma ferida não cicatrizada e nos ajuda a entender o cotidiano de tortura nas delegacias, de execuções por parte de policiais. A barbárie pode não ter nascido naquele período, mas certamente piorou por causa dele e continua presente – acredita o escritor.

Os documentos guardados por Curió – que foi prefeito de Curionópolis, cidade do Pará batizada em sua homenagem, e se manteve no poder até ser cassado em 2008 por compra de votos – contrariam o discurso dos militares de que os arquivos da ditadura foram destruídos e, portanto, seria impossível reconstituir os acontecimentos da ditadura militar.

– Estamos num momento em que essa história precisa ser contada e os relatos têm de ser confrontados por diferentes versões – diz, explicando que optou por excluir do livro depoimentos de Curió sobre os quais não tivesse outros testemunhos ou documentos para checá-los ou confrontá-los.

O jornalista diz não esperar que seu livro sirva de referência para a Comissão da Verdade.

– Sou cético em relação a uma comissão de governo, até porque há uma sentença judicial de 2003 para a abertura dos arquivos militares que até hoje não foi cumprida. A política e a Justiça decidiram pela anistia, mas o jornalismo não precisa acatar esta decisão. Não devemos julgar, mas podemos contar essa história.

 

Fonte – O Globo

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