Como as multinacionais e os conglomerados de comunicação atuaram coordenados na derrubada do presidente Fernando Lugo
“A situação de expectativa gerada pela decisão dos legisladores de submeter o presidente Fernando Lugo a juízo político foi, finalmente, resolvida de um modo ordenado, pacífico e respeitoso da legalidade, da institucionalidade e dos critérios essenciais de equidade que devem presidir processos tão delicados como o que acaba de ser levado a bom termo. A destituição do presidente abre fundadas esperanças num futuro melhor”Editorial do jornal ABC Color
“Um presidente sem respaldo, que se mostra negligente e incapaz, não pode seguir governando. Sem lugar a dúvidas, o erro mais grave de Fernando Lugo foi o respaldo outorgado a dirigentes de supostos camponeses que receberam carta branca do governo para invadir terras, ameaçar e desafiar o Estado de Direito. Lugo decepcionou a grande maioria da cidadania paraguaia com suas decisões errôneas, seu sarcasmo, sua desastrosa vida pessoal, sua ambiguidade e sua crescente amizade com inimigos declarados da democracia, como Hugo Chávez e os irmãos Castro”
Editorial do jornal Vanguardia
“Lugo tem princípios populistas (não necessariamente incendiários). A reputação de honestidade lhe ajudou a ganhar, porém necessitará um pouco da ajuda do céu para exercer a Presidência”
Informação da Embaixada dos EUA, datada de junho de 2008, vazada pelo WikiLeaks, antes da posse de Lugo
Uma grotesca farsa caiu como raio em céu claro sobre o presidente constitucional do Paraguai, Fernando Lugo. Em questão de horas o mandatário teve o seu “impeachment” proposto, analisado e votado pelo Congresso, mediante um processo metodicamente orquestrado pelas multinacionais Monsanto e Cargill, a oligarquia latifundiária, as elites empresariais e sua mídia.
As comemorações estampadas nas capas dos principais jornais paraguaios dão a dimensão do ódio de classe, com as desclassificadas mentiras destiladas contra quem se dispôs – ainda que com vacilos e limitações – a virar a página de abusos e subserviência aos ditames de Washington e suas empresas.
O cerco midiático contra Lugo vinha se fechando, num país em que 85% das terras encontram-se nas mãos de 2% da população e onde os mesmos donos dos três principais jornais, umbilicalmente vinculados às transnacionais e ao sistema financeiro, também controlam as emissoras de rádio e televisão. Assim, de forma suja e monocórdica, foram convocadas manifestações, com bloqueio de estradas, para o próximo dia 25 de junho. Grandes “tratoraços” em protesto contra a decisão do governo em favor da saúde da população e da soberania alimentar – de não liberar a semente de algodão transgênico Bollgard BT, da Monsanto, cuja sequência genética está mesclada ao gene do Bacillus Thurigensis, bactéria tóxica que mata algumas pragas de algodão. A decisão, que afetava milionários interesses da multinacional estadunidense, havia sido comunicada pelo Serviço Nacional de Qualidade e Saúde Vegetal e de Sementes (Senave), uma vez que a liberação não tinha o parecer do Ministério da Saúde e da Secretaria do Meio Ambiente.
“A Monsanto, através da UGP, estreitamente ligada ao Grupo Zuccolillo, que publica o diário ABC Color, se lançou contra a Senave e seu presidente Miguel Lovera por não ter inscrito a sua semente transgênica para uso comercial no país”, denuncia o jornalista e pesquisador paraguaio Idilio Méndez Grimaldi.
Para tirar o Senave do caminho foi alegado o surrado argumento da “corrupção” no órgão, o mesmo estratagema da máfia de Carlinhos Cachoeira para tomar de assalto o DNIT e alavancar negociatas, via utilização de seus vínculos com a revista Veja para denunciar desvios no órgão – conseguindo inclusive a queda do ministro dos Transportes. Desta forma, “denúncias” por parte de uma pseudo-sindicalista do Senave, Silvia Martínez, ganharam manchetes na mídia canalha. O jornal ABC Color do dia 7 de junho último acusou o chefe do Senave, Miguel Lovera, de “corrupção e nepotismo na instituição que dirige”. Mas o fato é que a pretensa sindicalista advogava em causa própria, do marido e de seus patrocinadores. Conforme revelou Grimaldi, “Silvia Martínez é esposa de Roberto Cáceres, representante técnico de várias empresas agrícolas – todas sócias da UGP (Unión de Grêmios de la Producción) – entre elas Agrosán, recentemente adquirida pela Syngenta, outra transnacional, por 120 milhões de dólares”.
Algo similar à UDR (União Democrática Ruralista) de Ronaldo Caiado, e aos ruralistas da senadora Kátia Abreu, a UGP é comandada por Héctor Cristaldo, sustentado por figuras como Ramón Sánchez – vinculado ao setor agroquímico – entre outros agentes das transnacionais do agronegócio. “Cristaldo integra o staff de várias empresas do Grupo Zuccolillo, cujo principal acionista é Aldo Zuccolillo, diretor proprietário do jornal ABC Color desde sua fundação sob o regime de Stroessner, em 1967. Zuccolillo é dirigente da Sociedade Interamericana de Prensa (SIP)”, esclarece Idílio Grimaldi. O jornalista lembra que o Grupo Zuccolillo é o principal sócio no Paraguai da Cargill, uma das maiores transnacionais do agronegócio do mundo. “Tal sociedade” construiu um dos portos graneleiros mais importantes do Paraguai, o Porto União, a 500 metros da absorção de água da Companhia de Saneamento do Estado, sobre o rio Paraguai, sem qualquer restrição”, esclarece.
Com a proteção do apodrecido Congresso que condenou Lugo, as transnacionais do agronegócio no Paraguai praticamente não pagam impostos, com uma carga tributária de 13% do PIB, tão insignificante que acaba inviabilizando os serviços públicos. Vale lembrar que a saúde e a educação eram totalmente privadas antes da ascensão de Lugo à Presidência, num país em que os latifundiários não pagam impostos. O imposto imobiliário representa apenas 0,04% da carga tributária, uns 5 milhões de dólares – segundo estudo do Banco Mundial – ainda quando a renda do agronegócio alcance cerca de 6 bilhões de dólares anuais, em torno de 30% do PIB.
Na sexta-feira, 8 de junho, a UGP publicou no ABC Color seus “12 argumentos para destituir Lovera” (http://www.abc.com.py/edicion-impresa/economia/presentan-12-argumentos-para–destituir-a–lovera-411495.html. Tais “argumentos” foram apresentados ao então vice-presidente da República, Federico Franco, correligionário do ministro da Agricultura e pró-Monsanto, recém nomeado “presidente”.
Na sexta-feira, 15, descreve Grimaldi, “em função de uma exposição anual organizada pelo Ministério de Agricultura e Pecuária, o ministro Enzo Cardozo deixou escapar um comentário à imprensa: um suposto grupo de investidores da Índia, do sector agroquímico, cancelou um projeto de investimentos no Paraguai pela alegada corrupção no Senave. Nunca esclareceu de que grupo se tratava. Nas mesmas horas daquele dia ocorriam os trágicos acontecimentos de Curuguaty, onde morreram onze camponeses e seis policiais”. O sangue derramado foi o pretexto utilizado pela direita para o impeachment.
COMO NA VENEZUELA, USO DE FRANCO-ATIRADORES
O que se sabe é que a exemplo da tentativa de golpe de Estado na Venezuela, onde a CIA utilizou franco-atiradores para assassinar os manifestantes contrários ao governo para jogar a culpa do massacre sob os ombros de Hugo Chávez, também em Curuguaty agiram franco-atiradores. E dos bem profissionais. E movidos pelos mesmos propósitos.
Na região de Curuguaty está localizada a estância de Morombí, propriedade do latifundiário e grileiro Blas Riquelme, dono de mais de 70 mil hectares. O “terrateniente” é uma das viúvas da ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-1989), um dos principais beneficiados pela tristemente célebre Operação Condor, desenvolvida pela CIA no Cone Sul para torturar, assassinar e desaparecer com todo aquele que ousasse contrariar os interesses estadunidenses na região. Ele também foi presidente do Partido Colorado por longos anos e senador da República, sendo igualmente dono de uma rede de supermercados e estabelecimentos pecuários.
Como Riquelme havia se apropriado mediante subterfúgios legais de aproximadamente dois mil hectares pertencentes ao Estado paraguaio, camponeses sem terra ocuparam o local e solicitaram do governo Lugo a sua desapropriação para fins de reforma agrária. Um juiz e uma promotora ordenaram a retirada das famílias por meio do Grupo Especial de Operaciones (GEO) da Polícia Nacional, esquadrão de elite que, em sua maioria, foi treinado por militares dos EUA na Colômbia, durante o governo fascista de Álvaro Uribe.
Na avaliação de Grimaldi, que também é membro da Sociedade de Economia Política do Paraguai (SEPPY), somente uma sabotagem interna dentro dos quadros da própria inteligência da Polícia, com a cumplicidade da Promotoria, explicaria a emboscada na qual morreram seis policiais. Uma ação estrategicamente planejada com um objetivo bem definido. “Não se compreende como policiais altamente treinados, no marco do Plano Colômbia, pudessem cair tão facilmente numa suposta armadilha feita por camponeses, como quer fazer crer a imprensa dominada pela oligarquia. A tropa reagiu, matando 11 camponeses e deixando cerca de 50 feridos”. Entre os policiais mortos, ressalta, estava o chefe da GEO, Erven Lovera, irmão do tenente-coronel Alcides Lovera, chefe da segurança do presidente. Um recado claro e preciso para Lugo.
A SERVIÇO DA MONSANTO
Conforme o jornalista, no marco da apresentação preparada pelo Ministério da Agricultura – a serviço dos EUA -, a transnacional Monsanto anunciou outra variedade de algodão, duplamente transgênico: BT e RR ou Resistente ao Roundup, herbicida fabricado e patenteado pela multinacional, que quer a liberação da semente no país.
Para afastar incômodos obstáculos, antes disso o diário ABC Color vinha denunciando “presumíveis” fatos de corrupção dos ministros do Meio Ambiente e da Saúde, Oscar Rivas e Esperança Martínez, que também haviam negado posição favorável à Monsanto. A multinacional faturou no ano passado, somente com os royalties pelo uso de sementes transgênicas de soja no Paraguai, 30 milhões de dólares, livre de impostos, (porque não declara esta parte de sua renda). “Independente disso, a multinacional também fatura pela venda das sementes transgênicas. Toda a soja cultivada é transgênica numa extensão próxima aos três milhões de hectares, numa produção em torno de sete milhões de toneladas em 2010”, revela Grimaldi.
Por outro lado, acrescenta o jornalista, a Câmara de Deputados já aprovou projeto de Lei de Biosseguridade, que contempla criar uma direção de Biosegurança com amplos poderes para a aprovação do cultivo comercial de todas as sementes transgênicas, sejam elas de soja, milho, arroz, algodão… Este projeto de lei elimina a atual Comissão de Biosseguridade, ente colegiado de funcionários técnicos do Estado paraguaio, visto como entrave aos desígnios da Monsanto.
“Enquanto transcorriam todos esses acontecimentos, a UGP vinha preparando um ato de protesto nacional contra o governo de Fernando Lugo para o dia 25 de junho, com máquinas agrícolas fechando parte das estradas em diferentes pontos do país. Uma das reivindicações do denominado ‘tratoraço’: a destituição de Miguel Lovera do Senave, assim como a liberação de todas as sementes transgênicas para cultivo comercial”.
Dado o golpe, como estamparam os grandes conglomerados de mídia no Paraguai neste sábado, “a manifestação da UGP foi suspensa”. Afinal, “há um novo governo, mais sensível ao mercado”.
sexta-feira, 22 de junho de 2012 | 14:52
A crise no Paraguai e a estabilidade continental
Mauro Santayana
Toda unanimidade é burra, dizia o filósofo nacional Nelson Rodrigues. Toda unanimidade é suspeita, recomenda a lucidez política. A unanimidade da Câmara dos Deputados do Paraguai, em promover o processo de impeachment contra o presidente Lugo, seria fenômeno político surpreendente, mas não preocupador se não estivesse relacionado com os últimos fatos no continente.
Na Argentina, a presidente Cristina Kirchner enfrenta uma greve de caminhoneiros, em tudo por tudo semelhante à que, em 1973, iniciou o processo que levaria o presidente Salvador Allende à morte e ao regime nauseabundo de Augusto Pinochet. Hoje, todos nós sabemos de onde partiu o movimento. Não partiu das estradas chilenas, mas das maquinações do Pentágono e da CIA. Uma greve de caminhoneiros paralisa o país, leva à escassez de alimentos e de combustíveis, enfim, ao caos e à anarquia. A História demonstra que as grandes tragédias políticas e militares nascem da ação de provocadores.
“ As grandes tragédias políticas e militares nascem da ação de provocadores ”
O Paraguai, neste momento, faz o papel do jabuti da fábula maranhense de Vitorino Freire. Ele é um bicho sem garras e sem mobilidade das patas que o faça um animal arbóreo. Não dispõe de unhas poderosas, como a preguiça, nem de habilidades acrobáticas, como os macacos. Quando encontrarmos um quelônio na forquilha é porque alguém o colocou ali.
No caso, foram o latifúndio paraguaio — não importa quem disparou as armas — e os interesses norte-americanos. Com o golpe, os ianques pretendem puxar o Paraguai para a costa do Pacífico, incluí-lo no arco que se fecha, de Washington a Santiago, sobre o Brasil. Repete-se, no Paraguai, o que já conhecemos, com a aliança dos interesses externos com o que de pior há no interior dos países que buscam a igualdade social. Isso ocorreu em 1954, contra Vargas, e, dez anos depois, com o golpe militar.
Não podemos, nem devemos, nos meter nos assuntos internos do Paraguai, mas não podemos admitir que o que ali ocorra venha a perturbar os nossos atos soberanos, entre eles os compromissos com o Mercosul e com a Unasul. Mais ainda: em consequência de uma decisão estratégica equivocada do regime militar, estamos unidos ao Paraguai pela Hidrelétrica de Itaipu. O lago e a usina, sendo de propriedade binacional, se encontram sob uma soberania compartida, o que nos autoriza e nos obriga a defender sua incolumidade e o seu funcionamento, com todos os recursos de que dispusermos.
Esse é um aspecto do problema. O outro, tão grave quanto esse, é o da miséria, naquele país e em outros, bem como em bolsões no próprio território brasileiro. Lugo pode ter, e tem, todos os defeitos, mas foi eleito pela maioria do povo paraguaio. Como costuma ocorrer na América Latina, o povo concentrou seu interesse na eleição do presidente, enquanto as oligarquias cuidaram de construir um Parlamento reacionário. Assim, ele nunca dispôs de maioria no Congresso, e não conseguiu realizar as reformas prometidas em campanha.
Lugo tem procurado, sem êxito, resolver os graves problemas da desigualdade, da qual se nutriram líderes como Morínigo e ditadores como Stroessner. Por outro lado, o Parlamento está claramente alinhado aos Estados Unidos — de tal forma que, até agora, não admitiu a entrada da Venezuela no Tratado do Mercosul.
O problema paraguaio é um teste político para a Unasul e o conjunto de nações do continente. As primeiras manifestações — entre elas, a da OEA — são as de que não devemos admitir golpes de Estado em nossos países. Estamos, a duras penas, construindo sistemas democráticos, de acordo com constituições republicanas, e eleições livres e periódicas.
Não podemos, mais uma vez, interromper esse processo a fim de satisfazer aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos, associados à ganância do sistema financeiro internacional e das corporações multinacionais, sob a bandeira do neoliberalismo.
Os incidentes na fronteira do Paraguai com o Brasil, no choque entre a polícia e os camponeses que ocupavam uma fazenda de um dos homens mais ricos do Paraguai, Blas Riquelme, são o resultado da brutal desigualdade social naquele país. Como outros privilegiados paraguaios, ele recebeu terras quase de graça, durante o governo corrupto e ditatorial de Stroessner e de seus sucessores.
Entre os sem-terra paraguaios, que entraram na gleba, estavam antigos moradores na área, que buscavam recuperar seus lotes. Muitos deles pertencem a famílias que ali viviam há mais de cem anos, e foram desalojados depois da transferência ilegítima da propriedade para o político liberal. E há, ainda, uma ardilosa inversão da verdade.
A ação policial contra os camponeses era, e é, de interesse dos oligarcas da oposição a Lugo, mas eles dela se servem para acusar o presidente de responsável direto pelos incidentes e iniciar o processo de impeachment. É o cinismo dos tartufos, semelhante ao dos moralistas do Congresso brasileiro, de que é caso exemplar um senador de Goiás.
“ Tudo pode ocorrer no Paraguai — e o que ali ocorrer nos afeta ”
Quando encerrávamos estas notas, a comissão de chanceleres da Unasul, chefiada pelo brasileiro Antonio Patriota, estava embarcando para Assunção a fim de acompanhar os fatos. Notícias do Paraguai davam conta de que os chanceleres não serão bem recebidos pelos que armaram o golpe parlamentar contra Lugo, e que se apressam para tornar o fato consumado — enquanto colunas do povo afluem do interior para Assunção a fim de defenderem o que resta do mandato de Lugo.
Tudo pode ocorrer no Paraguai — e o que ali ocorrer nos afeta; obriga-nos a tomar todas as providências necessárias a fim de preservar a nossa soberania, e assegurar o respeito à democracia republicana no continente.
Fonte – JB Online