Quando Dilma chorou

Lembrar o drama de uma hemorragia no útero de tanto apanhar. Esse foi o momento crítico do depoimento de Dilma Rousseff ao Conselho de Defesa dos Direitos Humanos de Minas Gerais, em 2001. Ela já havia se emocionado ao contar que foi colocada no pau de arara e levou socos e choques elétricos. Mas agora integrantes da comissão que ouviram a então futura presidente revelam que ela desabou mesmo quando falou do desespero do sangramento e do medo de ficar estéril.

É o que informa mais uma reportagem da série publicada desde domingo pelo Estado de Minas, que escancara a face mais cruel da ditadura militar.

 

Dor da lembrança

Relato de integrantes da comissão mineira que ouviram o depoimento da ex-militante em 2001 ilustra a emoção que tomou conta da presidente ao relembrar o sofrimento vivido no cárcere

Para ter direito à indenização às vítimas de tortura oferecida pelo Conselho de Defesa de Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), não bastava ter sido perseguido político durante o regime militar. Era necessário denunciar a tortura sofrida em território mineiro, revelando as técnicas usadas pelos algozes, pormenores do ambiente das celas e, se possível, a identidade dos torturadores. “A pessoa precisava dizer como foi torturada. É por isso que o depoimento da Dilma conta a violência que ela sofreu em Minas”, pontua Caroline Bastos Dantas, que tinha 25 anos em 25 de outubro de 2001. Ela havia sido contratada como secretária-executiva da comissão mineira, encarregada de digitar os depoimentos pessoais. Trechos do testemunho de Dilma abriram a série de reportagens que o Estado de Minas publica desde domingo passado sobre a tortura a que a presidente foi submetida nos porões da ditadura em Juiz de Fora.

Caroline não sabia que estava sendo testemunha ocular de um momento histórico, quando a então secretária das Minas e Energia do Rio Grande do Sul e futura presidente, conhecida por sua postura firme e decidida, deixou a emoção aflorar e chorou. Dilma já havia se emocionado em outros momentos da conversa, quando revelou ter sido colocada no pau de arara, levado choque elétrico e um soco no maxilar que fez o dente se deslocar e apodrecer. Mas desabou ao falar sobre o tratamento feito para conter a hemorragia no útero. “Não sei se foi pelo fato de ser mulher, mas nessa passagem ela não conseguiu se segurar”, diz o filósofo Robson Sávio, então com 31 anos e presidente da Comissão Especial de Indenização às Vítimas de Tortura de Minas Gerais (Ceivit-MG).

Diante do rigor nos trabalhos da comissão mineira, a arredia Dilma Rousseff não teve saída. Contou, pela primeira vez, ter sido torturada nos cárceres de Minas, e não só em São Paulo e no Rio de Janeiro, como se pensava antes. E mais. Depois de tirar o nó preso na garganta por 30 anos (ela havia sido torturada em Juiz de Fora, em 1971), Dilma emocionou-se ao revelar ter sofrido uma hemorragia de útero, de tanto apanhar. “Na primeira vez, foi na Oban (Operação Bandeirantes). Me deram uma injeção e disseram para não me bater naquele dia”, descreveu aquela que, nove anos mais tarde, seria a primeira mulher eleita presidente do Brasil.

Dilma contou também ter feito tratamento para conter a hemorragia no Hospital das Clínicas. “Em Minas, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso no fim da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital das Clínicas” , revelou a ex-militante política de codinome Estela, que, apesar do medo de se tornar infértil, não teria problemas para engravidar. A presidente é mãe de Paula, 36 anos, única filha com o companheiro de militância Carlos Franklin Paixão de Araújo. Em setembro de 2010, tornou-se avó de Gabriel, que nasceu durante a campanha presidencial. O Hospital das Clínicas confirma a existência dos arquivos, mas informa que o acesso a eles é permitido apenas com autorização da paciente.

Caroline ajudou a tomar o depoimento de Dilma em Porto Alegre, que foi prestado na sala da Secretaria de Estado de Justiça do governo gaúcho. O testemunho durou em torno de 40 minutos e não foi gravado em áudio nem em vídeo, para não intimidar a vítima e impedir que o material tivesse um uso inadequado no futuro. Durante a madrugada, no computador emprestado do hotel, Caroline repassou o que havia digitado. Sem laptops (caros demais há 11 anos), o depoimento de Dilma foi transferido em antigos disquetes quadrados, depois reutilizados.

Sagitariana convicta, Dilma sempre evitou expor o lado pessoal. Soube separar o privado do público, à frente de movimentos sociais e cargos de governo. Com isso, evitou reviver a tortura, mesmo antes de chegar à Presidência da República e de se empenhar pessoalmente pela instalação da Comissão Nacional da Verdade, em maio. Não consta o depoimento dela no livro Brasil: tortura nunca mais, volumoso estudo sobre a repressão exercida pelo regime militar.

Novamente, Dilma sairia ilesa no livro Mulheres que foram à luta armada, de Luiz Maklouf, de 1998. O repórter só conseguiria que ela lhe desse declarações sobre a tortura em 2003, ao ser convidada para ocupar um ministério no governo Lula. Num dos trechos de maior destaque Dilma fala sobre sangramentos de útero: “Hemorragia mesmo, que nem menstruação. Eles tiveram que me levar para o Hospital Central do Exército. Encontrei uma menina da ALN (Ação Libertadora Nacional). Ela disse: ‘Pula um pouco no quarto para a hemorragia não parar e você não ter de voltar’”.

Revelações Mas não só Dilma se abalou no depoimento à comissão mineira quando toca no assunto. Os jovens contratados para ouvi-la também se renderam à emoção. Outras cinco vítimas de tortura política de Minas, que haviam se refugiado em Porto Alegre para escapar da ditadura, foram ouvidas. “Praticamente obrigávamos a pessoa a revelar, no intervalo de meia hora, uma hora, momentos da vida que ela tinha levado 30, 40 anos tentando esquecer. Não era fácil”, lembra a ex-secretária-executiva da comissão, Caroline, que só concordou em participar da reportagem depois de muita insistência. “Eu tinha 25 anos e estava muitas vezes diante de um homem de 70 anos que, em determinado momento, pedia ao filho que o acompanhava para sair da sala. Ele então contava ter sofrido violência sexual durante sua juventude política. Não se tratava de relembrar um passado heroico de militância, mas uma fase ruim”, conta a hoje advogada e professora em duas faculdades de direito.

 

Por Sandra Kiefer?

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