Projeto revela visão da ditadura sobre filmes nacionais produzidos antes de 1964

As avaliações podiam tratar tanto de qualidade quanto da relevância de um filme para aquele Brasil do “ame-o ou deixe-o”. Num documento sobre “O homem do Sputnik” (1959), aparece: “Oscarito no ponto alto de sua carreira, se é que a mesma tem ponto alto”. Era uma afirmação séria, nada a ver com as piadas da produção de Carlos Manga. Em outro texto, este sobre “O cangaceiro” (1953), de Lima Barreto, tachou-se de “relativo” o “valor educativo” de um dos maiores sucessos do cinema brasileiro: “para público que tenha a capacidade de compreender o transviamento social e as sanções subjetivas da criminalidade”. Já sobre “Maior que o ódio”, longa-metragem de 1951 de José Carlos Burle, com Anselmo Duarte e Ilka Soares, alguém escreveu: “filme antigo e bastante monótono”.

Esses são exemplos de produções anteriores a 1964, realizadas pelos grandes estúdios brasileiros de meados do século XX, mas que também passaram pelo crivo da ditadura. Elas estão entre os 283 filmes catalogados na terceira fase do projeto Memória da Censura no Cinema Brasileiro, que será lançada nesta quarta-feira, reunindo mais de 6 mil pareceres, certificados, reportagens na imprensa e outros documentos encontrados nas fichas dos filmes nacionais avaliados pelo regime militar.

— Com a nova fase, nós já temos mais de 20 mil documentos no total — afirma Leonor Souza Pinto, diretora do projeto. — Um dos nossos focos desta vez foram os filmes dos estúdios. Para que um filme fosse exibido em algum lugar, de cineclube a televisão, de mostra no Brasil a um festival internacional, ele precisava de um certificado de censura do governo militar. Inclusive os filmes feitos antes de 64.

Tudo o que foi catalogado pelo Memória da Censura no Cinema Brasileiro fica disponível em seu site (www.memoriacinebr.com.br, que ganhará um novo visual na quarta-feira). O projeto foi lançado em 2005, fruto do doutorado de Leonor, abrangendo primeiramente uma seleção de 175 filmes, de diretores como Cacá Diegues, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Joaquim Pedro de Andrade. Depois, em 2007, veio a segunda fase, com 269 obras da pornochanchada, do cinema marginal e mais uma leva de títulos de cineastas consagrados.

Agora, na terceira etapa, foram duas frentes: 129 filmes e 104 cinejornais produzidos pelos estúdios Atlântida, Vera Cruz, Maristela e Pam Filmes; e 50 obras independentes não catalogadas nas edições anteriores, de diretores como David Neves, Gustavo Dahl, Alex Viany, Domingos de Oliveira, Orlando Sena, Jorge Bodanzky, Paulo César Saraceni, Vladimir Carvalho e Zelito Viana.

Entre o material coletado, o que mais chama a atenção são os pareceres dados pelos censores. Eram apreciações que determinavam se um filme poderia ser exibido no cinema e para qual faixa etária de público ou se poderia passar na televisão e em qual horário. Nelas também eram indicadas as exigências de cortes, por motivos morais ou políticos.

Produzido pelo estúdio Vera Cruz, “Terra é sempre terra” (1951), de Tom Payne, recebeu em 1973 um parecer com a sugestão de “cortar cena em que jovem começa a se despir até quando aparece montado a cavalo”, para que então fosse liberado a um público maior de 14 anos. Também da Vera Cruz, “Noite vazia” (1964), de Walter Hugo Khouri, teve menos sorte. Selecionado para o Festival de Cannes, o filme só foi liberado no Brasil em 1967, mas para maiores de 18 anos e desde que fossem realizados cinco cortes, todos de cenas sensuais.

Os censores, contudo, não se entenderam muito bem com os nomes dos atores da obra de Khouri. Em agosto de 1967, um comunicado da Polícia do Distrito Federal ordenava a apreensão das cópias de “Noite vazia” que não tivessem suprimidas algumas cenas, entre elas a “sequência lésbica Gabriele com Norma no leito”. Gabriele era Gabriele Tinti, um italiano — homem — que foi casado com Norma Bengell e com quem contracenou em “Noite vazia”.

SELO DE ‘BOA QUALIDADE’

Houve casos ainda mais duros. “Iracema — Uma transa amazônica”, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, ficou pronto em 1975, mas só recebeu permissão para lançamento no cinema em 1981. Como mostram os documentos da época, os censores apontaram em diferentes pareceres que o filme expunha “linguagem chula, com repetições de palavrões”, “imagem negativa de empreendimentos de órgãos públicos” e “nosso país em situação vexatória no plano social, humano, especialmente se visto no estrangeiro”.

— Para um filme ser exibido em outros países, não bastava ter sido liberado no Brasil. Ele precisava também dos selos de “boa qualidade” e “livre para exportação”, dados conforme a qualidade técnica e os interesses do governo — explica Leonor. — Eles se preocupavam muito com o que era exibido no exterior. E também se preocupavam demais com o que ia para a TV. A censura era mais rígida com os filmes na TV do que no cinema.

“Todas as mulheres do mundo” (1967), de Domingos de Oliveira, foi liberado para maiores de 18 anos no cinema — com a exigência de se cortar “a cena em que a seta acerta o sexo de vênus” —, mas só foi permitido para a TV em 1979, em horário depois das 23h e com mais uma série de cortes.

O documentário “O país de São Saruê” (1971), de Vladimir Carvalho, por sua vez, ficou proibido em qualquer meio até 1979. Um censor escreveu que a exibição do filme num festival internacional “viria contribuir para estimular a campanha difamatória que se faz ao Brasil no exterior”. Outro censor explicou o motivo: “O produtor da obra deu ênfase aos problemas negativos e ao profundo sofrimento do camponês, evitando filmar cenas destacadas do progresso e das facilidades econômicas já encontradas na região”.

Há, ainda, outras preciosidades coletadas pelo projeto. Nas pastas da censura, todas elas guardadas no prédio do Arquivo Nacional em Brasília, estavam os roteiros dos cinejornais apresentados pela Atlântida e os cartazes originais de alguns dos filmes. Todos esses documentos foram escaneados para seu acesso gratuito na internet. Concluída essa etapa do projeto, Leonor Souza Pinto já planeja os próximos passos: um recorte reunindo obras dos primórdios do cinema brasileiro, de diretores como Adhemar Gonzaga, Humberto Mauro, Oduvaldo Vianna; outro recorte com cinema feito por mulheres; e seguir no mapeamento do cinema independente.

— Minha meta para o Memória da Censura no Cinema Brasileiro é chegar a 120 mil documentos, reunindo todos os longas-metragens brasileiros, uma seleção de curtas, documentários e publicidade — diz Leonor.

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