Autor de livros sobre o tema, Paulo Fontes falou à Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo sobre as lutas dos operários da Nitro Química e as perseguições durante o regime
Quando o assunto é o golpe de Estado de 1964 e a instauração do regime ditatorial civil-militar que durou até 1985, fala-se muito sobre o movimento estudantil, censura, luta armada, mudanças econômicas e ataques aos direitos civis. Os trabalhadores e os impactos diretos à vida pessoal e ao mundo do trabalho, no entanto, não são estudados como deveriam. “Embora a maioria dos mortos e desaparecidos seja de trabalhadores ou pessoas com origem nas classes populares, eles sempre foram negligenciados entre as vítimas da ditadura. É preciso trazer à tona essa discussão sobre a relação entre sindicalistas e ativistas que são esquecidos na história”, afirmou o pesquisador Paulo Fontes a integrantes da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, na tarde de segunda-feira (15), na Câmara Municipal de São Paulo.
Coordenador do Laboratório de Estudos do Mundo do Trabalho e dos Movimentos Sociais (LEMT) do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDoc/FGV-RJ), ele é autor de artigos e livros nas áreas de história social do trabalho, sindicalismo, migrações e cultura popular.
Em 2012, seu livro Um Nordeste em São Paulo. Trabalhadores Migrantes em São Miguel Paulista: 1945-66foi vencedor do Prêmio Thomas Skidmore, promovido pelo Arquivo Nacional e pela Brazilian Studies Association, como a melhor obra recente sobre a história brasileira no período 1945-1964. A obra aborda a saga dos trabalhadores que deixaram o Nordeste para serem operários da Companhia Nitro Química Brasileira, criada em 1935 pelo empresário José Ermírio de Moraes, pai de Antônio Ermírio, dono do Grupo Votorantim.
De acordo com o pesquisador, as relações entre o aparato repressivo e os empresários, que são bem anteriores a 1964, estão muito presentes no caso da Nitro Química. Criada com apoio de Getúlio Vargas, em sua política de incentivo às indústrias de base, a empresa nunca chegou a ser a “CSN do setor químico”, como sonhava Ermírio, mas foi muito lucrativa. Produzia desde o fio rayon – uma espécie de seda sintética, que antecedeu o nylon, e seria o carro-chefe da produção até os anos 1960 – até soda cáustica e ácidos, passando por insumos para explosivos.
Considerado por muitos um empreendimento social, que moldou grande parte da zona leste, com seu paternalismo empresarial que oferecia clubes e um ambiente de sociabilidade entre as famílias dos trabalhadores – que hoje em dia causam nostalgia entre as pessoas mais velhas –, nunca chegou a ser uma fábrica moderna.
“Provedora e sugadora, sempre foi perigosa, insalubre, sucateada, que consumia a saúde do bairro. O tempo dos moradores do bairro era marcado pelos apitos da fábrica, mas eles temiam ouvir o apito próprio de acidentes, como explosões, que chegaram a matar muitos operários. O trabalho intensivo, baixos salários, com muitas mulheres na produção, alta rotatividade e sem investimentos em capacitação visavam ao lucro”, relata Fontes.
A Nitro Química era famosa também pelo autoritarismo nas relações entre as chefias intermediárias e os operários, com forte presença de integralistas ligados ao Departamento de Ordem Política e Social (Deops), como estratégia de maior controle sobre os trabalhadores apoiada no aparato repressivo. Nas décadas de 1940 e 1950, a empresa fortaleceu aliança com o Estado para afastar qualquer ativismo do chão de fábrica, e agressões e torturas já eram comuns.
Liderado pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), o operariado exercia militância que extrapolava os muros da fábrica. A maior célula do partido estava em São Miguel, que teve papel importante na eleição do escritor baiano Jorge Amado, por São Paulo, a uma cadeira na Assembleia Nacional Constituinte em 1945. Essa militância contribuiu para o movimento emancipacionista, que pretendia tornar São Miguel um município independente, assim como Osasco conseguiu. A fábrica, segundo o pesquisador, atuou contra o processo de emancipação.
“A partir dessa época surgiram as primeiras greves, que fizeram da Nitro Química a fábrica mais militante de São Paulo. Graças à liderança de Adelço de Almeida, que conquistou o Sindicato dos Químicos, que havia sofrido intervenção do Ministério do Trabalho, aumentou o número de sindicalizados e de ações trabalhistas na Justiça, aumentando a repressão”, conta o pesquisador.
Em 1957, Adelço liderou os trabalhadores químicos à frente da greve que reuniu milhares de trabalhadores, a partir da Nitro Química.
“Em 1963 houve greve pelo 13º salário e a Nitro Química foi a primeira a parar. Se a gente tem hoje 13º, é por causa de gente como Adelço, que nem dão nome a rua. Essas pessoas foram perseguidas e presas pelo regime”, disse Paulo Fontes.
Após o golpe, a diretoria do Sindicato dos Químicos foi cassada. Militantes do PCB, Floriano Dezem e Adelço de Almeida, além de outros colegas do sindicato, passaram a ser procurados pela polícia. Foi aberto inquérito policial para investigar os supostos “atos subversivos” dos sindicalistas, entre eles Fidelcino Queiróz dos Santos, Gabriel Alves Viana, José Ferreira da Silva, Manoel Mantonhani e Virgílio Gomes da Silva.
Muitos deles se mantiveram na clandestinidade. Adelço contou depois ter participado da dissidência do PCB liderada por Carlos Marighella.
Em 1966, a Nitro Química, que havia mergulhado em crise, passou por uma reestruturação e demitiu mais de 1.500 trabalhadores, sendo 400 com mais de dez anos de empresa e muitos deles militantes. “Aproveitaram para fazer a limpa no ativismo ao mesmo tempo em que chegava ao fim o paternalismo empresarial.”
Em 2011, a fábrica deixou de fazer parte do Grupo Votorantim por dar menos lucro que as demais, do ramo cimenteiro e de metais. Foi vendida para um fundo de investimentos.
Recomendações
Instalada em setembro de 2014, a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo está finalizando relatório com recomendações. No entanto, até o final do ano, quando encerrará suas atividades, ainda serão feitas novas audiências. “Enquanto durar a comissão, vamos tentar fazer uma audiência por semana para contar a história da cidade, dos trabalhadores e da repressão no município, ou seja, sobre o que a prefeitura teve a ver com isso”, disse o ex-deputado Adriano Diogo, integrante da comissão. “Ainda não fizemos audiência sobre a greve da CMTC, a greve dos lixeiros, que são coisas da prefeitura. Tem muita coisa para se fazer. Enquanto tiver a luz acesa, nós estamos trabalhando.”
Fonte – Rede Brasil Atual