É preciso retirar o Estado “da tutela do capital financeiro globalizado”

Governador do Rio Grande do Sul e ex-ministro brasileiro, Tarso Genro procura repensar as propostas da esquerda para a sociedade. Garantindo que “um programa para a esquerda tem que ser mundial”, defende “a recuperação das funções públicas do Estado”.

Aos 65 anos, Tarso Genro é governador do Rio Grande do Sul, o fim de um percurso inciado há três décadas como vice-prefeito de Olívio Dutra, então prefeito de Portalegre. É aí que nascem ideias e práticas políticas novas como os orçamentos participativos e é também Tarso Genro que assume então o papel de pai institucional dos Fóruns Sociais Mundiais e do movimento alterglobalização. Intelectual de prestígio e um dos pensadores da nova esquerda, Tarso Genro é no PT uma referência. Com Lula, foi sucessivamente ministro da Educação, das Relações Institucionais e da Justiça. E depois do escândalo do “mensalão” foi, como presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), o responsável pela refundação do partido. Inaugurando um périplo europeu, deu quarta-feira uma conferência sobre democracia, em Lisboa, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Que espera das eleições gregas e francesas?

Do ponto de vista da esquerda brasileira, o que nós desejaríamos era coligações políticas democráticas fortes para iniciar um processo de retirada desses países da crise a partir de critérios diferentes dos que estão a ser utilizados. É difícil dar opinião sobre países tão distantes de nós, mas é possível, porque todos estamos imersos num processo de globalização organizada pelo capital financeiro articulado mundialmente, que nos faz padecer de problemas análogos. A nossa experiência de fazer o contraponto a esta dominação global é sair da crise crescendo, gerando empregos, fazendo uma transição na sociedade de baixo para cima com fortes instrumentos de inclusão social e educacional. A experiência brasileira diz-nos que adoptar a receita de recessão, de desemprego e de redução das funções públicas do Estado não é boa. Causa descoesão social, radicaliza a luta de interesses na sociedade, sectariza as lutas políticas e gera desconfiança da cidadania em relação à esfera da política e isso pode comprometer as instituições democráticas a médio e longo prazo.

Não teme o contágio da crise europeia ao Brasil? Tendo como meta o Mundial de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016, o Brasil está a criar uma classe média e uma dinâmica de desenvolvimento social recorrendo ao crédito bancário. Não teme um estoiro, como aconteceu na Europa?

Uma crise como a da Europa influi no Brasil. O que devemos é produzir bloqueios a esse contágio. Temos especificidades que podem formar um bloqueio forte. Temos um mercado interno em ascensão, que pode ser expandido por dez ou vinte anos. Temos riquezas naturais invejáveis e temos a possibilidade de combinar um modelo de desenvolvimento tradicional, originário da revolução industrial, do desenvolvimentismo clássico, com um desenvolvimento de ponta, de alta qualificação tecnológica. E temos organizações estatais muito fortes para organizar esse processo, como o Banco Nacional de Desenvolvimento, a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal. O Estado brasileiro não foi depenado da sua capacidade de produção de políticas públicas. Isso dá-nos uma vantagem comparativa muito grande. E sabemos que não podemos apressar, que não podemos crescer 10% ao ano, não temos infra-estrutura que resista a isso. Podemos crescer 4 ou 5% ao ano, sem surtos inflacionários e sem arriscar o processo de coesão social, que foi iniciado com o Presidente Lula.

Há risco de crise no horizonte?

A civilização capitalista actual é sempre uma civilização de risco. Cabe aos Governos reduzir os riscos e não apostar na descoesão social pelo desemprego e pelas baixas taxas de crescimento. Isso, o Brasil tem feito, de forma humilde mas sólida e vai continuar fazendo.

Essa presença do risco leva a pensar que a crise é inerente ao capitalismo e não é só fruto da influência neoliberal?

A ideologia, a cultura e o modo de vida neoliberal constituem uma espécie de casca de uma sucessão de factos objectivos no desenvolvimento capitalista que teve duas consequências graves. A primeira é que o capital financeiro capturou os Estados e exerce uma força normativa brutal sobre os Estados, através do controlo que o capital financeiro tem das suas dívidas. Isto vem diminuindo a força normativa das Constituições e aumentando a do capital financeiro, obrigando que os Estados se organizem a partir do critério fundamental do pagamento da dívida.

E a segunda?

É que o projecto neoliberal produziu uma reorganização na estrutura de classes da sociedade, provocando uma espécie de fragmentação social muito maior do que acontecia no contrato social-democrático. Aí os sujeitos eram visíveis, eram as organizações sindicais das classes trabalhadoras, particularmente da classe operária, e as associações industriais que contratavam pactos sucessivos de desenvolvimento e de protecção social. Hoje os trabalhadores e os partidos perguntam-se: quem são os sujeitos do contrato político e social actual? É o Banco Europeu? É a senhora Merkel como uma espécie de supervisora da União Europeia? E essa urgência de sujeitos visíveis tem desprestigiado muito a política e causado um desgaste enorme nos partidos. No Brasil conseguimos criar a emergência desses sujeitos na cena pública. Isso permitiu que se redireccionasse o modelo do país. O Brasil está a construir um contrato social novo.

É um dos pais dos Fóruns Sociais Mundiais (FSM). A alterglobalização foi engolida pelo sistema? Exemplos: os orçamentos participativos são usados comummente. E até Sarkozy defende a Taxa Tobin.

O FSM surge como uma vontade dos grupos de esquerda, com as várias colorações e matizes, de formar uma nova internacional. Isto, num período histórico em que não há condições para uma nova internacional e em que os movimentos sociais e os sindicais, a intelectualidade e o campo democrático e progressista no seu conjunto não têm uma identidade mínima única. E fizeram uma internacional dos fragmentos, que faz uma grande discussão democrática, positiva, aberta, mas que não tem capacidade de propor uma política unitária antineoliberal, ou neo-social-democrata ou neo-socialista. E não tem condições de articular movimentos sociais unitários, onde coexistem desde os vegetarianos aos ex-guerrilheiros. O FMS é muito mais um sintoma e um desejo de mudança do que um projecto político.

Como encontrar a alternativa?

A unidade de um projecto alternativo tem que ser uma obra dos partidos políticos, que têm que se renovar e compreender que um programa para a esquerda tem que ser mundial. E, na minha opinião, baseado em dois pilares.

Quais?

A colocação de novo, no centro, de uma visão de esquerda, da questão democrática, que está em risco na crise do projecto neoliberal. E tem que ser um projecto que aponte de maneira unitária para a recuperação das funções públicas do Estado. E isso significa retirá-lo da tutela do capital financeiro globalizado. Se isso não for feito, toda a política posterior a processos eleitorais irá conciliar com essa força normativa e nunca poderá aplicar o seu programa. Não é de graça que nós vimos sucessivos Governos de esquerda e sociais-democratas, com excepções na América Latina, a irem para o governo e aplicarem as mesmas receitas do projecto neoliberal. O poder político que o capital financeiro exerce sobre os partidos, os bancos nacionais, os Estados, é incontornável.

Como se resolve?

O Banco Central Europeu poderia financiar as empresas e os Estados e não os bancos. Seria uma mudança extremamente importante. O financiamento aos países em crise devia ser canalizado para reorganizar a base produtiva.

Através dos Estados…

… Com Governos comprometidos com a recuperação. Isso é o que eu chamo elementos mínimos.

E o outro exemplo?

A possibilidade de convencionar uma taxa de juro que não seja determinada pelos mercados, mas convencionada pelos Estados a partir de critérios públicos.

Defende o regresso da política. Mas por que é que soluções que aponta como simples não passam na Europa? Acha que há uma hegemonia cultural e política neoliberal na Europa?

Assim como o capital financeiro organizado capturou os Estados ele capturou também os partidos. Os partidos tornaram-se menos centros dirigentes e elaboradores de estratégias e mais passadores do pragmatismo necessário à sua sobrevivência. Não é uma questão de “maldade” dos partidos, é a força coerciva que é exercida pelo capital financeiro que vem destruindo a política, a política tem sido subsumida pela força do capital financeiro. E para que isso seja recuperado o primeiro acto é um acto de consciência. Recorrendo a uma metáfora: temos de substituir a utopia socialista do século passado pela utopia democrática altamente politizada. E fazer com que os Governos e os partidos se possam comprometer com programas e cumpri-los. As boas construções sociais que o Modelo Social Europeu fez foi a partir de visões políticas. E não espontaneamente se submetendo ao desenvolvimento industrial selvagem da primeira revolução industrial.

Na América Latina, vive-se o populismo de Hugo Chávez na Venezuela e os episódios da nacionalização dos postos da Repsol na Argentina ou da filial eléctrica espanhola na Bolívia. Como vê a ascensão populista desses regimes?

O processo brasileiro é completamente diferente disso. Temos marcos regulatórios muito fortes da relação com empresas estrangeiras, em parte construídos ainda no Governo do Presidente Fernando Henrique e parte com o Presidente Lula. Essas decisões são soberanas e nada têm a ver com o processo brasileiro e não dizem respeito sequer à natureza das relações que temos com as empresas que atraímos para o Brasil. Não tenho informação suficiente sobre esses casos, mas sei que isso gera uma expectativa negativa na Europa em relação a investimentos na América Latina. A nossa preocupação é que essa negatividade não seja transferida em relação ao Brasil. Estamos a procurar investimentos cada vez mais fortes de todos os países no Brasil. Nós tivemos na Bolívia um problema com a Petrobras. E resolvemo-lo respeitando a soberania da Bolívia e negociámos uma saída para que os nossos activos não fossem prejudicados.

Como vê Hugo Chávez?

É um Governo diferente do brasileiro também. A Venezuela tinha uma elite política anterior ao Governo Chávez que como sabemos vivia mais olhando para Miami do que para o seu próprio país. O Governo Chávez é uma reacção a isso. E se vai formar ou não um partido político e firmar regras de huguismo internacional capaz de proporcionar uma base económica forte para o país, isso, na minha opinião, ainda não está resolvido. No Brasil não temos nenhum tipo de hostilidade ao Governo de Chávez. Mas deixamos claro que é um modelo que nada tem a ver com o nosso país.

O que mudou no PT com o exercício do poder?

O Partido dos Trabalhadores permanece um partido de movimento e luta e torna-se um partido de Governo. E o PT emerge num momento de crise dos partidos de esquerda a nível mundial. Então eu diria que a personalidade política definitiva do PT ainda não está formatada. Ele vem de um conjunto de grupos revolucionários que lutaram armados para derrubar a ditadura militar, entre os quais eu me incluo, e que se encontra com o projecto democrático da Constituição de 1988, que passa a ser o centro da concepção política do país. O meu desejo é que o PT se torne num exemplo de um partido de uma nova esquerda, de uma esquerda comprometida com a democracia, capaz de estabelecer que os seus Governos têm uma relação de cooperação interdependente no processo de globalização e que saiba preservar um projecto nacional de desenvolvimento, que seja integrado e soberano.

Pelo caminho o PT tropeçou várias vezes em casos de corrupção, quer no Governo Lula, quer agora no Governo Dilma, com vários governantes a saírem do Governo. Isso corresponde a uma divisão do PT entre “bons” e “maus”?

O PT, como qualquer comunidade, tem pessoas e grupos que cometem ilegalidades. O PT não é um partido de anjos. Nem está imune à falta de virtude que existe na esfera da política e que felizmente não é dominante em nenhum partido. Considero que um partido se diferencia dos outros pela capacidade de exercer internamente um controlo e saber reagir contra isso. É impossível que um partido não tenha pessoas que tenham desvio de conduta. E a pior coisa que um partido pode fazer é apresentar-se como um partido mais moralista do que os outros e menos corrupto do que os outros, porque isso só pode ser provado a partir do momento em que se exerce o poder. O PT hoje aprendeu muito com os erros que alguns dos seus dirigentes cometeram, mas essas pessoas ainda não foram julgadas. Tem que se esperar. Um dos grandes condutores do ataque ao PT e da formação de opinião de que o PT tinha uma predominância de pessoas corruptas é precisamente a pessoa que está apontada hoje pela Polícia Federal como o organizador da mais complexa e profunda organização criminosa que ocorreu no Estado brasileiro depois da democratização: o senador dos democratas, Demóstenes Torres. Não sabemos se é culpado, temos de esperar.

Depois do “mensalão”, o que mudou na relação do PT com a sociedade brasileira?

Mudou para melhor e mudou para pior. Para melhor porque o partido passou a cuidar-se muito mais e a preocupar-se com a sua conduta. Para pior porque o “mensalão” carimbou o PT como o partido que também tem pessoas que cometem ilegalidades, que é igual aos outros e nós fazíamos questão em dizer que eramos diferentes. Temos de ser um partido diferente mas não nos podemos iludir que somos um partido de pessoas perfeitas. Isso é uma visão religiosa da política que é sempre desmascarada.

Quando foi ministro da Justiça lançou reformas das quais surge a Operação Rio Seguro, que para alguns observadores é apenas uma manobra de propaganda. Como vê esta acusação?

Essa operação é uma parte do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania que lançámos no Ministério da Justiça e tem inflexões diferentes consoante a região. Por exemplo, eu estou a implementá-lo no Rio Grande do Sul em 20 regiões, mas não preciso de fazer ocupação militar porque não tenho um poder político paralelo armado dos bandidos e traficantes. E são programas normais de formação para jovens, para mulheres, para formação profissional. No Rio, para começar um programa desses tem de tomar o poder político do crime organizado. A ocupação faz-se para isso, não para acabar com o tráfico de drogas; este não acaba. É para substituir a autoridade de facto. E a partir daí começa um programa de segurança pública. O tráfico diminuiu muito, mas não acabou.

Terá de ser permanente?

Ela deve ser permanente. A ocupação militar dá origem à instalação de postos de polícia comunitária para que estas regiões tenham um policiamento normal como têm outras regiões da cidade.

Tem 65 anos, é governador, foi prefeito, três vezes ministro… Quando pensa candidatar-se a Presidente?

Não há essa hipótese, precisamente porque tenho 65 anos. Temos mais um Governo da Presidente Dilma e temos ainda a reserva política que é o Presidente Lula. Não está no meu horizonte. Eu não sou rival nem da Dilma nem de Lula, sou aliado incondicional dos dois.

E, do ponto de vista político, qual a sua maior ambição?

Essa já eu cumpri. Fui ministro da Justiça, da Educação e da Coordenação Política do Governo, coordenei a revolução do Lula, sou governador do meu Estado.

E pessoal?

Como advogado, sempre fui um profissional do Direito. Tenho a minha vida estável. Os filhos formados. Gostava um dia de escrever mais e estudar mais. Colaborar para o diálogo político da esquerda, do centro-esquerda e do centro democrático. Tenho sempre muita atenção com o centro democrático porque a nossa experiência no Brasil – e a actual situação europeia também coloca isso – é que é impossível fazer um Governo de mudança sem estabelecer um contrato político com o centro democrático que tem uma grande influência nos sectores médios da sociedade, que pode ser atraído para um projecto democrata, progressista e que não seja a dogmática neoliberal. Eu ganhei a eleição na primeira volta pelo PT com os socialistas e os comunistas e chamei os partidos de centro e de centro-esquerda para governar comigo, fiz uma coligação. Aqui em Portugal, por exemplo, estranhei que no 1.º de Maio houvesse duas manifestações, uma da CGTP outra da UGT. Sem querer dar opinião e respeitando os partidos – até já conversei com o Presidente Cavaco Silva, que respeito -, pergunto-me se não era de os partidos do centro democrático e da esquerda e o Partido Comunista fazerem um acordo de meia dúzia de pontos para tirar o país da crise e da órbita da tutela normativa do banco central alemão… Esse acordo não iria valorizar a democracia e a República em Portugal?

 

Fonte – Público

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