Videla foi julgado nos anos 80, durante a gestão de Raúl Alfonsín, e condenado à prisão perpétua. Cinco anos depois, recebeu um indulto do então presidente Carlos Menem. Em 1998, foi novamente condenado. Passou pouco mais de um mês na cadeia, logo sendo transferido para sua casa, onde passou a cumprir prisão domiciliar.
Em 2010, Videla voltou ao banco dos réus, já durante o governo de Cristina Kirchner, que tem se caracterizado por levar a julgamento quase todos os envolvidos na repressão dos anos 70.
O general recebeu novamente a pena de prisão perpétua, mas, dessa vez, para ser cumprida em uma prisão comum. Desde então, está numa cela da penitenciária militar do Campo de Mayo.
Em “Disposición Final” (Sudamericana), o jornalista e historiador Ceferino Reato, 51, colheu o mais importante depoimento de Videla desde os anos 70.
Numa entrevista exclusiva, realizada na prisão, o general diz a Reato que os desaparecidos foram “o preço que se teve de pagar para ganhar a guerra contra a subversão, o preço da vitória”. Além disso, admite pela primeira vez que houve roubo e apropriação de bebês por militares em larga escala.
O livro de Reato levou a juíza Alicia Vence, que investiga crimes de lesa humanidade, a ordenar uma busca no apartamento em que Videla viveu, em Buenos Aires. A ideia era tentar recuperar algumas dessas listas. Foram recolhidos documentos, cartas e diários referentes aos anos de 1979 em diante. As evidências podem, agora, dar início a novo processo de investigação sobre o período.
Leia, abaixo, a íntegra da entrevista que Reato concedeu.
Muitos de seus colegas jornalistas têm questionado você por ter feito esse livro. Por que?
Ceferino Reato – É incompreensível que jornalistas duvidem de que se deve entrevistar um personagem histórico. Mas, infelizmente, é um fato na Argentina.
A maioria das pessoas aqui participa de um paradigma politicamente correto sobre os anos 70, segundo o qual há que se dar voz somente a personagens que têm a ver com as vítimas e com alguns ex-chefes da guerrilha. E jamais com os militares. Isso está muito instalado na sociedade.
Por isso faço uma introdução tão longa no livro, justificando-me. Busquei, entre outras coisas, referências no próprio jornalismo progressista, onde temos o norte-americano Jon Lee Anderson, que entrevistou [o ditador chileno Augusto] Pinochet.
Um apresentador de TV o atacou por dar a mão a Videla.
Sim, como se isso fosse um sacrilégio. Mas eu acho que um jornalista tem de ser cortês com qualquer entrevistado, de Adolf Hitler a Mário Firmenich [o mais importante guerrilheiro montonero]. A cortesia não elimina a valentia.
Temos de passar uma imagem de civilização, ainda que seja diante de ditadores. Se passamos uma imagem de violência, estamos desafiando a democracia.
Videla sugere que há contatos entre os militares ainda nos dias de hoje. Eles controlam a informação sobre o período?
Para mim ficou evidente que conversam com frequência sobre o assunto e discutem o que revelar ou não. Certamente sabem mais do que disseram à Justiça em seus julgamentos.
Videla, por exemplo, admitiu que houve listas de desaparecidos e que algumas ainda existem. Acredito que não haja uma, mas várias, pois o país estava dividido em regiões.
É preciso fazer todo o esforço possível para localizá-las enquanto esses militares ainda estão vivos. É nossa única esperança de saber algo sobre o destino dos desaparecidos.
Cada militar que morre, é uma possibilidade de informação que se vai. E estamos deixando essas possibilidades escaparem.
Mas muita informação se perdeu com o decreto do general Reynaldo Bignone, em 1983, que mandou queimar documentos, não?
Sim, destruiu-se muita coisa nessa ocasião, porque os militares tinham medo de possíveis julgamentos depois da volta da democracia, naquele mesmo ano, o que de fato aconteceu. Mas Videla dá a entender que originais dessas listas estão guardados, dentro ou fora do país.
Como foi a revelação deles sobre os supostos 7 mil mortos?
Videla diz que esse foi o preço a se pagar para ganhar o que considerava uma guerra à subversão. E sustenta que desaparecer com os corpos dos militantes mortos era a única alternativa, porque seria impossível levar tanta gente à Justiça, assim como promover fuzilamentos tão numerosos. Diz que a sociedade não toleraria.
Dentro de sua lógica, era uma guerra justa, e não uma guerra suja.
Qual a diferença?
Ele se baseia no conceito de guerra defensiva de São Tomás de Aquino. Acredita, e isso até hoje, que para reformar, moldar uma sociedade para seu próprio bem é justificável fazer uma guerra.
Videla é um homem muito religioso. Reza, vai à missa, acredita na construção de uma Argentina católica, em que a Igreja e o Exército são os pilares. E não pensa isso sozinho. Boa parte da sociedade compartilha esse sentimento.
Em sua época, Videla foi a concretização dessa ideia de Argentina. Um general católico, e obcecado com a reforma da sociedade.
Por isso a Igreja apoiou a ditadura.
Sim, a Igreja havia sido colocada de lado pelo período conhecido na Argentina como época liberal, da segunda metade do século 19 em diante. Os primeiros governos radicais populares, no início do 20, também não lhe deram espaço. Na ditadura militar, a Igreja viu a chance de reaparecer com força e buscar seu espaço.
Outra revelação de Videla no livro é sobre o roubo de bebês, que foram adotados por famílias de militares.
Sim, Videla nega que tenha existido um plano sistemático e que tenham sido 500, como dizem as Avós da Praça de Maio, mas admite que a prática foi comum e em larga escala. Entregar os bebês para famílias de militares era visto por eles como uma solução humanitária.
O general fala de 7.000 desaparecidos, a lista da Conadep (Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas) diz que foram 7.954, as organizações de direitos humanos falam em 30 mil. Qual é mais próximo da realidade? Por que não se discute esse tema?
Os 30 mil mortos foram uma cifra útil num determinado momento, mas hoje não se sabe bem de onde surgiu. Há quem diga que foi uma criação de Hebe de Bonafini [líder das Mães da Praça de Maio]. O mais provável é que tenha sido criada e popularizada pelos exilados na Europa durante a ditadura. Foi importante para ajudar a dar publicidade ao horror que se cometia na Argentina.
Mas hoje devemos questioná-lo, porque não há nada que sustente essa cifra. E não há uma lista de nomes e sobrenomes de tanta gente.
Contabilizar as famílias que buscam e reclamam os mortos não seria uma maneira?
Não é visto assim porque o governo e as associações de direitos humanos dizem que há muitas famílias que não reclamam porque não têm coragem. Mas o pior que pode nos acontecer é não saber exatamente quantos morreram e quais são suas histórias. Como pretendemos descobrir o que aconteceu com os desaparecidos se nunca soubermos quem foram?
Mas há uma lista de quem pediu indenização, não?
Sim, mas o governo não mostra, porque há muita gente que morreu antes da ditadura, durante a violência do começo dos anos 70 entre guerrilha e Estado. E a atual gestão considera que o horror começou com o golpe, em 1976. Reconhecer que teve início antes, em um governo democrático e peronista, seria uma derrota importante para a atual gestão.
Os grupos de direitos humanos às vezes me fazem lembrar essas ONGs que dizem se ocupar da pobreza mas comemoram quanto mais pobres há. Para elas, quanto maior o horror, maior o orçamento. E isso é uma degeneração dos direitos humanos.
Como vive Videla hoje?
Está numa cela pequena na penitenciária do Campo de Mayo, que é uma prisão militar. Existe ali uma cama, um aquecedor, um ventilador, uma mesa de luz, um crucifixo, um rosário, um escrivaninha e duas cadeiras. O banheiro é compartilhado com outro preso.
Acorda cedo, faz exercícios, está muito bem fisicamente. E recebe a visita da mulher, dos filhos, netos e bisnetos. Age como quem está acostumado a estar preso. Afinal, vive confinado há 20 anos, primeiro em casa, agora na prisão. Está tranquilo, mas segue acreditando que fez o que devia fazer ao ordenar tantas torturas e mortes. É um personagem congelado na história.
Por que decidiu falar agora, e não no banco dos réus?
Assim como outros militares presos, Videla confiava em que Cristina não venceria as eleições, e assim ele teria alguma chance de sair da cadeia com um novo indulto. Por isso revelou poucas coisas. Agora que percebe que provavelmente não sairá nunca mais, que está com 86 anos, resolveu começar a dizer coisas.
Não creio que o jornalismo tenha de fazer as vezes da Justiça. Mas talvez um ditador como ele prefira falar a um jornalista que a um juiz, se este estiver mais interessado em construir uma vingança do que esclarecer a verdade. Infelizmente, isso tem acontecido na Argentina.
Fonte – Jornal Floripa