Filha de guerrilheiros quer resgatar memória dos pais

Pedagoga vivia em Cuba e era apenas um bebê quando eles foram mortos

Ela chegou ao Brasil com documento falso e só começou a usar o nome verdadeiro com 26 anos de idade

Ñasaindy Barrett de Araújo, 44, sabe bem a diferença entre memória e lembrança. “Lembranças são as imagens do que vivi. Memória é o que aprendo do passado.”

Sem lembranças de seus próprios pais, ela espera que a Comissão da Verdade a ajude a reconstruir ao menos a memória de quem eles foram.

Os pais de Ñasaindy (o nome quer dizer ‘Claridade do Luar’, em guarani), militantes de esquerda, apaixonaram-se em Cuba, então a meca da revolução mundial, e ela nasceu.

A menina era um bebê de poucos meses quando o pai e logo depois a mãe voltaram ao Brasil para fazer a revolução. E deixaram-na na ilha.

O pai, José Maria Ferreira de Araújo, era um jovem que havia participado do levante dos marinheiros e fuzileiros navais, em 1964, ainda antes do golpe militar. Expulso da Marinha, Araújo viajou a Cuba para aprender técnicas de guerrilha.

O regresso ao Brasil em junho de 1970 era para aplicar os ensinamentos. Não durou.

Embora seu corpo nunca tenha sido encontrado, camaradas dizem que, preso e torturado, ele morreu em setembro do mesmo ano.

A mãe de Ñasaindy, Soledad Barrett Viedma, foi personagem marcante na história da luta contra o regime dos generais. Herdeira de uma família de militantes comunistas, estudou marxismo na Universidade Patrice Lumumba, de Moscou.

Culta, linda, poliglota, poeta e grande entendedora de explosivos, teve destino trágico. Apaixonou-se por José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, um revolucionário como ela. Ao ser preso e torturado, ele bandeou-se para a repressão.

Delatada pelo namorado ao maior caçador de comunistas da época, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops de São Paulo, Soledad foi morta numa emboscada em Pernambuco em 1973.

Com ela morreram outros cinco militantes da Vanguarda Popular Revolucionária, a organização de esquerda que ela integrava.

Ñasaindy foi criada por uma exilada brasileira em Cuba, Damaris de Oliveira Lucena, que a adotou. Mas o clima da época não favorecia as lembranças.

Ai de quem fosse pego levando cartas de militantes procurados. A menina teve de se contentar em ver imagens da mãe e do pai apenas em fragmentos.

“Eu não tenho fotos onde apareçam os rostos deles [dos pais]. Todas as fotos eram tiradas apenas com os braços. Ou cortavam-se as que eventualmente tivessem rosto.”

Percebeu que a mãe e o pai estavam mortos quando, enfim, penduraram um quadro com as fotos dos dois na casa em que vivia. Eles já não corriam riscos.

“Soledad era uma pessoa que eu tinha de amar porque era minha mãe. Por ela ser essa grande mulher que todos diziam que ela era. Mas ela não representava nada para mim, que nem a conheci”.

Com 11 anos, depois de promulgada a Lei da Anistia, em 1979, Ñasaindy chegou ao Brasil. Como documento, apenas uma certidão de nascimento falsa, em que figurava o nome Ñasaindy Sosa del Sol. Ela também usava o nome da família adotiva: Oliveira Lucena.

Foi só em 1996, com 26 anos, que recebeu documentos com seu nome verdadeiro. Até aí ela se recusou a ter documentos sem os sobrenomes de seus pais.

A jovem conta que procurou insistentemente os familiares para formar uma imagem da mãe. “Fiz muitas perguntas. Primeiro, só pensava: puxa, por que ela me abandonou? Precisei entender a Soledad para perdoá-la e dizer: Eu entendo você. Entendo que o mal que você me fez era pelo bem da humanidade, do Brasil, sei lá”.

Hoje, Ñasaindy é pedagoga e mãe de quatro filhos. Define-se como “de esquerda”, mas não se diz socialista. Sobre o delator da mãe, o cabo Anselmo, afirma que nunca conseguiu odiá-lo. “Procurei muito esse sentimento em mim, mas não consegui.”

Ñasaindy tem poucas esperanças de que Anselmo conte o que sabe.

“Como ela não desconfiou que ele era o traidor? Será que se ela tivesse agido mais com a razão, teria conseguido salvar os outros?” A expectativa é que essas respostas venham na história que a Comissão da Verdade levantará.

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