A entrevista da filha de Soledad à Folha de S. Paulo

A Folha de S. Paulo domingo (20), ecoando a instalação da Comissão da Verdade, entrevista com a filha de uma vítima da repressão: Ñasaindy Barrett de Araújo, filha de Soledad Barrett, que foi assassinada em Recife, em 1973 por sicários do DOPS de São Paulo comandados pelo delegado Sérgio Fleury. Uma entrevista, é preciso dizer, controversa… (JCR)

Soledad Barrett, assassinada pela repressão em 1973

 

Ñasaindy Barrett de Araújo guarda na sua pessoa uma herança de carne da magnífica mulher que foi Soledad Barrett. Ñasaindy, esse nome lindo, um verdadeiro nome de poesia, tem em sua face traços da beleza física de Soledad. Aquela que despertou corações e fogo apaixonado no poeta Mario Benedetti, aquela que fez o compositor Daniel Viglietti buscá-la em canção.

Mas este não é um comentário de literatura cortesã. O parágrafo anterior quer dizer em bom português: depois da semelhança física e do maravilhoso nome, torna-se difusa a relação de identidade entre a filha e a mãe. Se a entrevista publicada na Folha de S. Paulo transcreveu o pensamento de Ñasaindy, se foi fiel, então sentimos um desconforto ao ler as linhas da voz da filha a seguir.

“Primeiro, só pensava: puxa, por que ela me abandonou? Precisei entender a Soledad para perdoá-la e dizer: Eu entendo você. Entendo que o mal que você me fez era pelo bem da humanidade, do Brasil, sei lá”.

E mais estas aqui:

“Sobre o delator da mãe, o cabo Anselmo, afirma que nunca conseguiu odiá-lo. ‘Procurei muito esse sentimento em mim, mas não consegui’”.

Dói na gente saber que Ñasaindy não odeia o cabo Anselmo. Não se trata de vendetta, de vingança, do costume atrasado do interior do Nordeste brasileiro e de antigas famílias da Itália. Trata-se de algo mais sério que desforra de sangue: trata-se do salutar ódio a quem traiu a generosidade, mais conhecida em política como o sentimento socialista.

A filha não é Soledad, assim manda a realidade, por mais de um motivo. No primeiro deles estamos em 2012, há quase quarenta anos de distância do assassinato da bela guerreira. Muita água rolou, muito câmbio houve. O segundo motivo, e me parece essencial, é que Ñasaindy reconstrói o seu ser, a sua identidade, a partir da memória do que lhe contaram e contam sobre a sua mãe. E nesse recontar que lhe chega aos ouvidos sobrevive o veneno do cabo Anselmo. Aquele, o traidor, que fala manso e espalha peçonha com palavras de mel até hoje.

E mais não é justo nem humano falar nesta hora.

Urariano Mota, escritor e jornalista, é autor do livro Soledad no Recife (São Paulo, Boitempo, 2009).

 

Fonte – Vermelho

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