Laerte Braga – Os golpes de 1964 – O golpe do general Leônidas

No recente lançamento do último livro do jornalista Flávio Tavares – 1961 O GOLPE DERROTADO –, o autor e Zuenir Ventura admitiram, em resposta a pergunta de um dos presentes, que a resistência ao golpe de 1964 teria sido possível, mas a um preço muito alto.

General Leônidas ameaça “convocar o poder moderador”.

Anos mais tarde, no JORNAL DO BRASIL, o jornalista Marcos Sá Corrêa, numa brilhante matéria, mostrou a ação dos norte-americanos para que o golpe fosse possível, inclusive a presença de IV Frota dos EUA em águas territoriais brasileiras para qualquer “emergência” e essa “emergência” era a perspectiva de reação do governo Goulart. O trabalho do jornalista teve como suporte documentos oficiais do governo dos EUA.

O ex-governador Leonel Brizola no segundo dia do golpe, já em Porto Alegre, assumira o comando do Rio Grande do Sul e o general de exército Ladário Pereira Teles o comando do III Exército, dispondo-se, ambos, a resistir.

Quando o general Olímpio Mourão Filho saiu com as tropas de Juiz de Fora, MG, para o Rio, o então ministro da Aeronáutica, brigadeiro Moreira Lima, queria determinar o bombardeio do avanço golpista e só não o fez por decisão contrária do presidente João Goulart.

Uma eventual reação aqui e a ali teria provocado além de mobilização de vários setores da classe trabalhadora, outras dentro das próprias forças armadas, não inteiramente afinadas com o golpe. Cerca de dois mil e quinhentos militares foram afastados de suas funções em seguida à deposição de Jango. Eram os legalistas, constitucionalistas.

Em 1965, um ano após o golpe, os partidos de oposição decidiram lançar o nome do marechal Henrique Teixeira Lott para o governo do estado da Guanabara – cidade do Rio de Janeiro, mais tarde houve a fusão Guanabara/Estado do Rio, governo do general Geisel. Castello Branco pressionado pelos golpistas da chamada linha dura baixou um ato institucional criando a figura do domicílio eleitoral. Lott era eleitor em Teresópolis e com isso teve a candidatura impugnada.

A decisão de Castello era simples. A eventual eleição de Lott ao governo da Guanabara implicava na reorganização das forças militares contrárias ao golpe e colocava em risco a marcha do processo de barbárie instalado no País. A liderança do marechal legalista ainda era expressiva e forte, o bastante para se contrapor ao avanço da ditadura.

O golpe de 1964 resultou numa sucessão de outros golpes, ora palacianos, ora oriundos da reação de militares da linha dura, ora da necessidade de sobrevivência da ditadura que, se atentarmos para os fatos e tomarmos como referência as eleições limitadas pelos atos institucionais, sempre foi derrotada nas urnas. Mecanismos para preservar intacto o regime eram criados ao talante das necessidades do regime.

Foi assim quando Costa e Silva, ministro da Guerra (depois Ministério do Exército e hoje Secretaria) peitou o presidente que pretendia indicar o nome do deputado Bilac Pinto para sucedê-lo e com respaldo das bestas/feras virou presidente. Um discurso de fim de ano no Rio de Janeiro, numa confraternização tradicional de militares, definiu a sucessão. Castello foi literalmente humilhado por “seu” ministro da Guerra.

Eleito presidente, o marechal Costa e Silva se viu presa fácil de dois setores do poder. Sua mulher Iolanda Costa e Silva envolvida em corrupção ativa (túnel Rebouças por exemplo) e a linha dura que o pressionava para que chegasse ao célebre e vergonhoso Ato Institucional 5, na prática a consagração da ditadura, tornada explícita numa frase do então ministro Jarbas Passarinho.

“As favas com os escrúpulos presidente, somos uma ditadura sim e devemos assumir”.

Com a doença e o afastamento de Costa e Silva outro golpe dentro do golpe. O vice-presidente Pedro Aleixo é impedido de assumir, uma Junta Militar é constituída com os três ministros militares e uma “eleição” dentro das forças armadas indica Emílio Garrastazu Medice para a presidência. Derrotou o general Afonso de Albuquerque Lima.

Registre-se a bem dos fatos que o então governador de Minas, Israel Pinheiro, no ápice da crise com o afastamento de Costa e Silva, havia convidado Pedro Aleixo a ir para Minas com o objetivo de organizarem a resistência a mais esse golpe. Aleixo recusou com o mesmo argumento de Jango. Evitar o derramamento de sangue.

Em todo esse período os porões da ditadura iam acumulando presos torturados, vítimas de toda a sorte de violência e barbárie, assassinados, num conluio entre militares golpistas e empresários nacionais e de multinacionais.

Para que isso fique claro, as forças armadas golpistas foram um mero instrumento das elites econômicas e de Washington. O próprio comando real do golpe coube a um general norte-americano Vernon Walthers, amigo íntimo de Castello Branco e que fora intérprete das Forças Expedicionárias Brasileiras na Segunda Grande Guerra. A articulação junto aos civis ficou com o embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon (fato admitido publicamente pelo próprio anos mais tarde).

A barbárie foi a consequência natural de ditaduras cruéis e boçais e a nossa não foi diferente, não foi exceção. Foi cruel e boçal.

Quando falei em derrota nas urnas é preciso lembrar que em 1965 a oposição elegeu Negrão de Lima e Israel Pinheiro em Minas Gerais, estados de capital importância política dentro da Federação, maior até que São Paulo nesse aspecto (a força paulista resultava do esquema empresarial nacional e internacional, que de resto acaba sendo a decisiva nesse tipo de contexto).

Em 1970 o número de votos brancos e nulos superou o de votos válidos e em 1974 a ditadura sofreu contundente derrota nas urnas (o MDB, frente de oposição transformada em partido com o bipartidarismo imposto pela ditadura elegeu 17 senadores), forçando o governo Geisel, que sucedeu o de Medice a um ato institucional que criou figuras como a do senador biônico, aquele eleito pelo voto indireto, na maioria construída por artifícios “legais”, como o voto vinculado para a Câmara dos Deputados e assembléias legislativas.

Geisel, no revezamento entre os grupos nos quais se dividiam as forças armadas sucede a Medice e inicia um processo que chama de “abertura lenta e gradual”. Culmina no fim da vigência do AI-5 e outros instrumentos draconianos, preparando a volta de governos civis, mas eleitos ainda pelo voto indireto.

Essa perspectiva açula setores duros das forças armadas e o ministro do Exército, Sílvio Frota, ao perceber que não seria indicado como candidato a presidente, tenta um golpe dentro do golpe, mas fracassa. Geisel se impõe com o auxílio de seu chefe do Gabinete Militar, general Hugo Abreu (comandou o contra-golpe contra Frota) e indica João Figueiredo para sucedê-lo. Hugo de Andrade Abreu, paraquedista, foi também o comandante da ação da ditadura contra a Guerrilha do Araguaia. Ou seja, a barbárie era comum ao todo das forças armadas golpistas.

Começa uma guerra interna entre os golpistas de 1964 que se mostra sem entranhas na fracassada tentativa de um atentado no Riocentro, praticado por dois militares e que tinha o objetivo de culpar a esquerda e iniciar uma nova escalada de violência e barbárie.

É quando sai do governo o general Golbery do Couto e Silva, considerado o ideólogo da ditadura, parte do esquema do general Ernesto Geisel, que já não é mais o “comandante” de Figueiredo. O presidente não tem rumo, não tem força para deter a escalada da luta surda entre militares, o grupo de Geisel acaba se impondo com a presença do general Leônidas Pires Gonçalves e Tancredo Neves é a face visível e materializada em candidato a presidente dentro desse grupo.

Geisel servira com Tancredo no Gabinete Militar de Jango, quando o mineiro ocupou o cargo de primeiro-ministro. A maior surpresa de Aureliano Chaves, vice de Figueiredo, ao “avisar” a Geisel que iria apoiar Tancredo, foi saber que Geisel e Tancredo já construíam a candidatura do governador de Minas desde 1982.

Um fato interessante nesse processo é que Leonel Brizola, governador eleito do estado do Rio, em resposta a um comentário sobre a “força” do governador de São Paulo, Franco Montoro, respondeu assim – “engano, o perigo vem de Minas”. Brizola lutava pelas diretas e era o candidato favorito, nessa hipótese, diretas, para ocupar o Planalto.

É evidente que isso é um resumo em artigo de situações que aconteceram em 1964 e no pós 1964, até a posse e o governo de José Sarney, mas estão aqui fatos decisivos em cada momento do golpe.

Quem tiver boa memória, por exemplo, vai se lembrar do general Geisel subindo sozinho a rampa do Planalto quando do velório de Tancredo e de suas declarações – “a morte do doutor Tancredo pode ter conseqüências graves para o Brasil”. Era a visão da “abertura lenta e gradual” que acabou acontecendo com uma figura menor em nossa história, o vice José Sarney, “coronel” político” do Maranhão e escolhido por exclusão.

O esforço da ditadura para evitar a aprovação da emenda que retomava o processo de eleições diretas para presidente se resumia a dois medos – Brizola e Ulisses Guimarães,

A campanha diretas já foi decisiva para mostrar que os brasileiros não agüentavam mais a estupidez do regime militar e abrir as portas para a eleição indireta de Tancredo. O sinal verde de Washington já fora dado, era o tempo da “democracia”, mas adjetivada com a tutela dos militares.

A morte de Tancredo antes de sua posse torna-se um problema para os militares, pois a constituição outorgada de 1967, da ditadura, determinava que nesse caso assumisse o presidente da Câmara e novas eleições fossem convocadas dentro de um determinado prazo. O presidente da Câmara era Ulisses Guimarães e João Figueiredo, presidente então, avisa que os militares não tolerariam Ulisses presidente, não aceitariam eleições diretas, tudo através do general Leônidas Pires Gonçalves, escolhido por Tancredo para o Ministério do Exército. O próprio Figueiredo sequer tinha noção do que acontecia.

O “esqueçam de mim” era a frustração de um general menor que se viu guindado à presidência da República e não presidiu coisa alguma, foi mero instrumento e acidente na luta interna travada nas forças armadas. Manobra equivocada do general Geisel que supervalorizara o seu chefe do SNI – Serviço Nacional de Informações .

Leônidas Pires Gonçalves era a força dentro do Exército – a maior das forças armadas – e foi o intérprete dos golpistas junto a deputados e senadores que a posse de Ulisses era inaceitável. Foi o penúltimo golpe dentro do golpe e Ulisses decidiu abrir mão de assumir e convocar novas eleições para evitar que o mandato de Figueiredo fosse prorrogado na marra e isso inaugurasse um novo ciclo de generais, havia disposição para tanto dentro das forças armadas.

Sarney virou presidente assim. Num golpe de mão de Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército escolhido por Geisel para Tancredo e que fora comandante do DOI/CODI do Rio de Janeiro, responsável, entre outras, pela chacina que assassinou Pedro Pomar e vários militantes de oposição.

A entrevista do general Leônidas publicada pelo ESTADO DE SÃO PAULO e ameaçando um novo golpe – “convocar o poder moderador” – (invenção dos militares na Constituição de 1988 para manter a tutela do regime principalmente para garantir a impunidade de torturadores) é a reação dos velhos golpistas à Comissão da Verdade e aos fatos que começam a aparecer dando conta da boçalidade que foram os porões da ditadura.

Militares golpistas escondidos atrás da lei da Anistia em crimes imprescritíveis e passiveis de julgamento em cortes internacionais (a OEA já pediu ao Brasil as sanções contra essas repulsivas figuras) na canalhice do “patriotismo” como escudo da hipocrisia de agentes públicos sem o menor compromisso com o Brasil, os brasileiros e o futuro de todos.

Não se constrói democracia escondendo a História. E durou pouco a “vocação democrática” do general Leônidas Pires Gonçalves”. A mão direita escapou agora para gritar Heil Hitler.

Foi o penúltimo golpe de estado no Brasil. O último foi a emenda que permitiu aqui a reeleição de Fernando Henrique Cardoso (comprada a peso de ouro) e na Argentina a de Menén. Tramadas nos mesmos porões de 1964, Wall Street e de Washington.

 

Por – Laerte Braga(*), especial para sua coluna no QTMD? *Laerte Braga é jornalista e colaborador do “Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna “Empodera Povo“.

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