Uma presidente de dedo em riste

À medida que avança o governo Dilma, aprofundam-se no Congresso convicções sobre as diferenças entre a presidente e seu antecessor, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Elas ultrapassariam, em muito, a variação do estilo pessoal de um e de outro, como se analisava em janeiro de 2011. Hoje a avaliação é que Lula era mais pragmático e se adequava às circunstâncias; Dilma, por seu turno, é ideológica, professa o centralismo democrático e somente recua se for por falta de oportunidade política para impor sua decisão.

Esse tipo de manifestação se materializa no Congresso, entre aliados da presidente da República, mas também pode ser ouvida em ministérios e partidos de reputação nem tanto conservadora. Vale o registro das diferenças anotadas junto com sussurros de insatisfação com algumas das últimas medidas de Dilma.

A criação da Comissão da Verdade, semana passada, parece ser um divisor de águas. Lula delegou ao seu ministro da Defesa Nelson Jobim, a tarefa de negociar sua criação com os militares e as entidades representativas dos familiares dos desaparecidos políticos na ditadura militar.

Medidas de Dilma instigam áreas mais conservadoras

Na base desse negociação, a intocabilidade da Lei da Anistia – aprovada ainda no regime militar, numa correlação de forças desfavorável às entidades. A possibilidade de julgar torturadores, por exemplo, passou ao largo. Revanchismo zero. Dilma foi incisiva, num assunto sobre o qual Lula tergiversava: “A comissão não abriga ressentimento, ódio, nem perdão. Ela só é o contrário do esquecimento”, disse.

Dilma também nomeou para a comissão nomes como o do professor de ciência política Paulo Sérgio Pinheiro, que apresentou o cartão de visitas logo à primeira intervenção: “nenhuma Comissão da Verdade teve ou tem essa bobagem de dois lados, de representantes dos perpetradores dos crimes e das vítimas”.

Os militares, evidentemente, não gostaram. Jobim, que sonha com voos mais altos, respondeu de pronto que a criação da Comissão da Verdade só fora possível depois de acordo segundo o qual seriam investigados violações de direitos humanos cometidas pelos dois lados. “Reajo com indignação à declaração dele”, rebateu Paulo Vannuchi, à época Secretário dos Direitos Humanos. “Em 2010 eu chamava a ideia de bilateralidade sugerida por Jobim de monstrengo jurídico.”

Ainda tem curso, do centro para a direita da aliança dilmista, a ideia de que só não se avança na questão do controle social da mídia por falta de ambiente político. Um argumento que a prática não autoriza: o ministro Paulo Bernardo (Comunicações) sentou-se em cima do projeto feito no governo Lula. A própria Dilma orientou o PT a evitar ataques à imprensa na CPI do Cachoeira.

Com a oposição aparentemente paralisada e sem poder de formulação, é no campo governista que circulam algumas críticas ácidas. Exemplo: enquanto os presidentes antes de Dilma serviram ao governo, agora é o governo que serve a Dilma. Tanto sob FHC como sob Lula, as divergências eram intensas. Ao presidente cabia arbitrar. O que se verifica atualmente é um ministério medroso de expressar suas divergências.

A sociedade também se manifestava por meio dessas disputas. Hoje não tem governo. Tem a presidente e a vontade da presidente. Férrea, mas às vezes com soluções diferentes para problemas semelhantes. Um peso, duas medidas: o critério que serviu para demitir o ex-ministro Antonio Palocci das Casa Civil não foi o mesmo que balizou a manutenção de Fernando Pimentel no Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC).

O ministro dos Esportes. Orlando Silva, caiu fora do governo diante da suspeita de seu ministério ter feito convênios irregulares com ONGs; Ideli Salvatti (Relações Institucionais) se manteve no cargo, apesar de avalizar a compra de embarcações de uma empresa doadora de campanhas do PT, quando estava no Ministério da Pesca.

No arrebalde do governo também se vê ideologia no embate de Dilma com o mercado financeiro, responsável, segundo a presidente, por uma “lógica perversa” pela qual a taxa Selic baixa, a inflação permanece estável, “mas os juros dos cheque especial, das prestações ou do cartão de crédito não diminuem “. Lula teve oportunidade de mudar as regras da poupança, quando a taxa Selic chegou a 8,75%, mas preferiu não comprar briga com o sistema. Dilma foi na jugular dos banqueiros.

Deixou particularmente constrangidos os congressistas o gesto de Dilma com o dedo em riste, repreendendo publicamente o presidente da Confederação Nacional dos Municípios, Paulo Ziulkoski, diante de uma plateia de 2.500 prefeitos de todo o país. “Tive que me acalmar, senão seria pior”, disse Ziulkoski. Naquele momento Dilma exibiu uma face autoritária: uma coisa é levantar o dedo para um superior; outra para alguém que pode sair dali preso.

Dilma nunca fez mistério do fato de ser uma mulher de esquerda, suas convicções foram esmiuçadas na campanha eleitoral. O governo da presidente torna-se mais claro na medida do tempo, mas nada autoriza que Dilma venha a cair em tentações vizinhas. Ela detesta qualquer comparação com Cristina Kirchner, presidente da Argentina. A presidente governa com ranços de autoritarismo, mas é difícil sustentar que Dilma, no fundo, deseje fazer coisas como controlar a mídia. Até agora ela fez por merecer crédito ao dizer que refere “o barulho, às vezes extremamente dolorido, da imprensa livre do que o silêncio das ditaduras”.

Há muito marketing nas ações de Dilma. Mas a presidente nunca fez segredo de que é uma mulher de esquerda. Parece crítica vencida, mas não é. Não é mera coincidência que as críticas à “ideologização” corram num momento em que a presidente cuida de várias frentes de batalha: de ministros que sentem-se esvaziados a setores militares mais radicais das Forças Armadas, passando pelos banqueiros.

 

Fonte – Valor

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