Paulo Abrão, secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia
Instalada na semana passada, a Comissão da Verdade trabalhará integrada à Comissão de Anistia, ligada ao Ministério da Justiça e em andamento há 11 anos. O secretário nacional de Justiça, Paulo Abrão, destacou que essa integração ajudará as duas frentes de investigação a promover a indentificação das violações graves aos direitos humanos e de seus autores, não apenas os que cometeram crimes físicos.
“A violência de uma ditadura não é medida pela pilha de corpos que ela é capaz de produzir, mas pela cultura autoritária e de medo que faz com que a sociedade fique receosa de exercer suas liberdades”, afirmou o secretário.
Abrão, que é presidente da Comissão de Anistia, esteve em Curitiba na última quinta-feira para proferir uma palestra para estudantes da Unibrasil sobre a Comissão da Verdade e sua relação com os tribunais de justiça. Em entrevista à Gazeta do Povo, na qual ressaltou a importância da busca por uma narrativa da história brasileira, principalmente no que se refere ao período da ditadura militar.
Existe um impasse entre a sociedade civil e os militares sobre a apuração dos crimes cometidos durante a ditadura pela Comissão da Verdade. Qual o objetivo de continuar buscando a verdade sobre essa época?
É importante conhecer as violações que o Estado produziu ao longo do tempo. O esquecimento é tradicional no Brasil. Nunca enfrentamos as piores transgressões da nossa história, como a escravidão, a Guerra do Paraguai e a própria ditadura militar. Por isso, este momento de mudança de olhar sobre o passado para aprender com os erros é tão relevante. A perspectiva de punição depende da decisão do nosso poder judiciário e aguardamos um pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre os embargos que a Ordem dos Advogados apresentou.
A Comissão da Verdade tem caráter investigativo e não prevê punição aos autores dos crimes evidenciados. Quais seriam os efeitos da Comissão se ela fosse punitiva?
Nenhuma Comissão da Verdade do mundo assumiu uma perspectiva punitiva. Ela deve construir uma narrativa da história, promover a sistematização das violações graves e a identificação dos autores dos crimes. Somente um sistema de justiça pode aplicar penalidades e, eventualmente, afastar legislações que atrapalham as investigações. Por mais expectativa que as vítimas tenham de que a Comissão possa gerar a abertura de ações criminais no futuro, isso dependerá, única e exclusivamente, do Poder Judiciário.
Como ocorre a integração entre a Comissão da Verdade e a de Anistia?
Acertamos três medidas principais de integração. A primeira é de disponibilizar todo o acervo acumulado nos dez anos de trabalho da Comissão da Anistia. São depoimentos gravados, registros das vítimas e 70 mil processos administrativos que formam o maior acervo da história do país. Em segundo lugar, faremos reuniões periódicas para troca de dados e, do mesmo modo, a Comissão da Verdade também disponibilizará suas informações. Por fim, teremos encontros de metodologia para que haja uma sinergia entre o que tivermos produzindo em torno dos levantamentos históricos para que tudo seja aproveitado pelas duas Comissões.
Nesta semana, a Comissão de Anistia indeferiu o pedido de reparação do ex-praça da Marinha José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo. Na ocasião, o senhor afirmou que “é juridicamente impossível o Estado reparar quem assumiu o papel de violador dos direitos humanos”. Qual a tendência seguida no julgamento desses militares?
Temos um conjunto de militares que foram perseguidos políticos e se apresentaram na Comissão da Anistia. Eles não aceitaram a instrumentalização da repressão e boa parte acabou expulsa das forças militares. Essas pessoas têm anistia. Já os militares que serviram à repressão proporcionam situações diferentes. Nenhum estado de direito concebe premiar os causadores das violações de direito humanos. A reparação é devida às vítimas da violência e é por isso que a Comissão de Anistia negou o pedido do Cabo Anselmo.
O senhor acredita que a Comissão da Verdade deve cumprir o prazo de dois anos para finalização dos trabalhos?
Estou otimista que sim. Tudo depende da metodologia e do estafe administrativo que a Comissão da Verdade utilizará para desenvolver seus trabalhos. É possível fazer isso em dois anos. Se, ao final dos trabalhos, se verificar que é necessário um tempo a mais para que tudo seja averiguado, que se negocie com o parlamento brasileiro no futuro.
Quase 50 anos depois do golpe, como o senhor vê a volta da discussão sobre os crimes militares no Brasil?
É uma oportunidade para o país fazer uma reflexão profunda de que não é possível que, em determinados momentos da história, algumas pessoas possam usurpar o poder de modo ilegítimo e implantar um regime autoritário de violações aos direitos básicos da cidadania. A criação da consciência de rejeição ao autoritarismo é um passo significativo para a democratização das próprias relações sociais. A democracia é um processo, não um fim em si mesma. Temos que estar permanentemente atentos e semeando seus valores.
Temas considerados fundamentais pela Organização das Nações Unidas, como a busca pela paz e a garantia dos direitos humanos, estão sempre em pauta nos grandes encontros internacionais. Como o Brasil se encontra nessa discussão, visto a dificuldade entre os próprios aliados da presidente Dilma Rousseff na aprovação da PEC do Trabalho Escravo, pr exemplo?
A ampliação dos direitos humanos é um processo que envolve a mobilização da sociedade civil. Depois que a democracia foi instalada, a sociedade brasileira se fortalece, cada dia mais, com as organizações autônomas, movimentos sociais e entidades representativas. Ela tem exigido novas conquistas e ampliação do campo jurídico de proteção da cidadania. A ideia de que os direitos humanos devem ser a base de todas as relações políticas e sociais não é aceita por determinados setores mais conservadores da sociedade. É uma disputa permanente, mas o Brasil tem avançado no campo dos direitos humanos com conquistas significativas.
O senhor defende o projeto de lei sobre imigração, que está há três anos no Congresso Nacional. A Secretaria Nacional de Justiça tem uma posição contrária à Secretaria de Assuntos Estratégicos, ligada à Presidência da República, no que diz respeito ao favorecimento da entrada de imigrantes qualificados em detrimento de mão de obra não capacitada. Por quê?
O tratamento da matéria sobre imigração deve seguir o princípio da não discriminação e seletividade na entrada de imigrantes no Brasil. Isso causa um ambiente de diferenciação por classes sociais ou níveis de escolaridade que não pode ser adotado, segundo o princípio de igualdade garantido na nossa constituição. Hoje, o Brasil voltou a ser um país de atratividade para os que buscam novas oportunidades para suas vidas. Nesse instante, precisamos reafirmar a nossa vocação e tradição de ser um país democrático, aberto a todos e receptivo aos migrantes, que sempre cumpriram um papel estratégico e fundamental para o desenvolvimento econômico, histórico e cultural do Brasil.
Fonte – Jornal de Londrina