Dimensão da anistia

A nomeação equilibrada da Comissão da Verdade e sua posse permitiram uma certa acomodação de terreno nos embates sobre o status jurídico dos agentes públicos envolvidos em torturas, mortes e desaparecimentos de presos políticos, na ditadura militar, e a apreciação do “outro lado”, ou seja, dos crimes cometidos por militantes de esquerda.

Firmou-se o entendimento de que a Comissão da Verdade existe para investigar crimes de Estado, suas vítimas. De fato, falta, para dar um fecho neste capítulo dramático da história do país, relatar o que houve nos porões do regime, refazer os passos dos desaparecidos, registrar a macabra crônica das mortes. É preciso pagar esta dívida às famílias das vítimas e abrir os arquivos daquele aparato de repressão, quase um Estado paralelo, o embrião de uma Gestapo tropical.

Sobre os agentes públicos, policiais e militares, envolvidos na “guerra suja”, parece, enfim, começar a se disseminar a consciência de que nada pode ser feito contra eles na Justiça, por força da Lei da Anistia, de 1979. Bem como nenhum processo pode ser instaurado contra guerrilheiros envolvidos em ações violentas.

Na semana passada, o juiz Marcio Milani, substituto da 10 Vara Federal Criminal de São Paulo, rejeitou denúncia contra o coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra e o delegado da Polícia Civil Dirceu Gravina, acusados pelo Ministério Público de terem sequestrado Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, militante de esquerda levado para o DOI-Codi paulista (Tutoia) e nunca mais visto. Entre os argumentos usados pelo juiz para justificar a decisão, além da já provável morte de Aluízio, está, como esperado, a Lei da Anistia, cujo alcance amplo e irrestrito foi confirmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2010.

Há quem considere que, à medida que a Comissão avance, começarão a ser criadas condições para a punição dos agentes públicos. Mantida a Lei da Anistia, impossível.

E nem interessa à sociedade reabrir o assunto, trazer para o século XXI, já com a redemocratização consolidada, um fator de instabilidade político-institucional importado da década de 70 do século XX.

Costuma-se comparar o processo brasileiro de anistia com os ocorridos em outros países da América Latina, onde houve punições. Um erro, por uma razão simples: são experiências diferentes. Em vários casos, foi necessário revogar leis que haviam sido redigidas sob medida para proteger preferencialmente os que saíram do poder.

No Brasil foi diferente. A anistia saiu de um acordo entre líderes da oposição e os militares, tanto que a lei foi promulgada pelo presidente João Baptista Figueiredo, general de cavalaria. Ele ainda despachava no Planalto quando exilados começaram a retornar, recebidos em fanfarras.

O próprio início da redemocratização obedeceu à mesma fórmula da transição suave. Por isso, o primeiro presidente civil, Tancredo Neves, foi eleito ainda de forma indireta. Ao morrer antes da posse, assumiu o vice, José Sarney, político proeminente no regime militar, e hoje presidente do Senado e do Congresso.

Foi oportuna a iniciativa do juiz Milani de, no texto da sua decisão, incluir um trecho do discurso da presidente Dilma na posse da Comissão da Verdade em que ela afasta “qualquer intenção do Estado brasileiro” de punir autores de crimes cometidos naquela época. Prisioneira política, a presidente foi uma das vítimas daquele Estado. E nem por isso deixa de entender o alcance histórico e político real da Lei da Anistia.

 

Fonte – O Globo

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