No que diz respeito ao resgate da memória estamos muito atrasados em relação aos demais países do Cone Sul. A Comissão da Verdade já deveria ter sido criada. Sarney ou Collor, por terem apoiado a ditadura, não o fariam. Mas Fernando Henrique poderia tê-lo feito. E não há explicação para que Lula não o tivesse feito.
É verdade que, se o Congresso não modificar a Lei da Anistia, os responsáveis por torturas ou assassinatos de presos não poderão ser levados aos tribunais. Esta situação resulta da absurda interpretação da lei feita recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), beneficiando os integrantes do aparelho repressivo.
Quando da aprovação da lei, em 1979, militantes que participaram do que os militares chamaram de “crimes de sangue” (ações que resultaram em mortos ou feridos, mesmo que em troca de tiros) foram excluídos da anistia e continuaram na prisão. Desde abril do ano passado, por conta da interpretação do STF, torturadores, estupradores e assassinos de presos políticos estão entre os beneficiados pela anistia. Quem sabe não cometeram “crimes de sangue”…
Para que a comissão cumpra seu papel, uma condição é importante: a abertura dos arquivos dos órgãos das Forças Armadas usados na repressão política. Não pode ser aceita a justificativa de que essa documentação foi queimada. Não se destroem arquivos, salvo em situações extremas, o que não ocorreu no Brasil. E, no caso de documentos oficiais, é preciso haver ordem escrita para a destruição. Onde está essa ordem e quem a deu?
Os arquivos podem mostrar quem torturou e matou, quem deu ordens para tal e onde estão os restos mortais dos “desaparecidos”, além de tornarem público quem financiou a repressão. Se, por ora, os responsáveis por esses crimes não podem ser punidos, que, pelo menos, o país conheça seus nomes.
A presidente da República é a comandante em chefe das Forças Armadas. Cabe a ela garantir acesso a esses arquivos.
Devem ser conhecidos também, e vir a público, os decretos secretos do regime militar. Sim, por estranho que pareça, na ditadura houve decretos que tinham força de lei, mas não eram divulgados. É hora de torná-los públicos.
A comissão é formada por figuras respeitáveis, mas tem apenas dois anos para seu trabalho e precisa ajustar seu foco. Deve apurar os crimes de agentes do Estado e cometidos em seu nome. “Investigar os dois lados”, como quer o ministro do STJ Gilson Dipp, seria algo como defender investigação sobre os “crimes” da Resistência Francesa contra colaboradores dos nazistas.
Seria, também, criminalizar a resistência, mesmo armada, contra um regime ilegítimo – direito reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Isenção não pode ser confundida com equidistância entre verdugos e vítimas.
Fonte – O Globo