Despresunção de inocência

Há poucas semanas, o País, se concedido direito à metonímia, abrigou um experimento que, sem exagero, é portador de motivos para orgulho. Refiro-me à instalação em palácio da Comissão da Verdade. Ainda que seus resultados práticos sejam incertos, e pertençam antes aos domínios das mais diferentes e opostas expectativas, o evento que marcou seu lançamento abrigou ares de condensação republicana. Isso não apenas pelo cuidado de ali incluir chefes de governo que, em graus diferentes, ocuparam seus postos por força de procedimentos legítimos, mas por sugerir que o tema da verdade – de alguma verdade, ao menos – pode ter lugar na vida pública. A própria presidente, de modo eloquente e incomum na história da República, demonstrou o que podem significar a ideia e a figura de chefe de Estado.

Apesar de incertos os efeitos futuros, houve desde já um efeito imediato, qual seja o de inserir o tema da verdade em casulo distinto do de seu lugar natural. A elucidação do que ocorreu com mortos, desaparecidos e torturados, além de conferir materialidade retrospectiva à experiência do estado de exceção, amplia o conjunto de informações disponíveis a respeito da história recente do País. Mesmo que inúmeras interpretações e atribuições de sentido possam ser construídas, acena-se com a possibilidade de uma “narrativa básica”, tal como o fizeram os primeiros historiadores do Holocausto; o grande Raul Hilberg, antes de todos.

Assim, e por um átimo, o tema da verdade insinuou-se de modo invulgar em nossas reflexões a respeito do País. Bastou, contudo, uma conversa mal-ajambrada e mal explicada no escritório do ex-ministro Nelson Jobim, para que o tema fosse devolvido a seu estado habitual, o da indeterminação e do disfarce. Para dizê-lo de outro modo: os dias que sucederam à instalação da Comissão da Verdade foram, como quê, dias de certa suspensão da experiência ordinária da política; o mencionado encontro a três, e as versões desencontradas e incompatíveis entre si dali emanadas, constituiu-se, por oposição, como experiência de des-suspensão ou, se quisermos, de desabamento e de gravitação natural.

Céticos, penso, antes de descartar o tema da verdade, com a falta de hesitação típica de dogmáticos pós-modernos, têm por essa dama – a verdade – sincero respeito, além de considerável pudor. Isso a ponto de recusar inscrever o termo “verdadeiro” em qualquer predicado, atribuído a qualquer aparência. Céticos, sobretudo, não são necessariamente parvos: não saber onde está a verdade não impede a presença de uma sensibilidade para com o implausível. Juízos de plausibilidade são suficientes para que nos movamos no mundo e configuremos nossas orientações e escolhas. Há, por certo, no episódio um abismo insondável: qual dos três protagonistas “diz a verdade”? Questão grave, diante da qual muitos não hesitarão em apresentar respostas definitivas, todas movidas por inclinações afetivas e biliares. Como, então, lidar com o abismo da indeterminação da verdade, nesse caso?

Sugiro, no que segue, uma série de procedimentos aproximativos. Antes de tudo, parece ser sábio adotar algo que poderia ser designado como uma despresunção de inocência dos envolvidos. Se, do ponto de vista penal, o procedimento é inaceitável, do ponto de vista cognitivo a coisa pode ser útil: se há suporte para supor que o ex-presidente Lula quis “melar” o julgamento do mensalão, pela abordagem ao ministro Gilmar Mendes, há idêntica plausibilidade em supor que este quis “melar” a defesa, ao pôr a boca no trombone, e evitar o tratamento apropriado e institucional da suposta ofensa.

Portanto, a abordagem do ocorrido poderia iniciar pela consideração de aspectos internos e inerentes. Há no âmago do evento uma série de implausibilidades: a casualidade do encontro, a amnésia do ex-ministro Jobim, a indeterminação da fonte para a matéria-denúncia, a participação do ministro Gilmar apenas como confirmador do trabalho dos repórteres, etc.

Uma abordagem externalista poderia partir de uma premissa simples: uma conversa dessa natureza não poderia ocorrer. Isso tanto por razões de ordem, digamos, republicanas, mas sobretudo pelo déficit de confiança, ao que parece, envolvido na interação. As hipóteses são todas abjetas: se a narrativa do ministro Gilmar Mendes corresponde à verdade, algo de grande gravidade terá ocorrido; se for inverídica, algo de gravidade grande se passou.

De um ponto de vista consequencialista, ao que parece o episódio foi vencido por quem pretende garantir forte carga dramática ao julgamento prestes a ser feito, e em neutralizar juízes neófitos, supostamente gratos por suas investiduras. Não é recomendável ver na reação do ministro Gilmar nada mais do que manifestação de ultraje pessoal e institucional.

O pano de fundo disso tudo parece ser uma experiência de república na qual o direito penal vale como recurso de inteligibilidade. Diante da indeterminação da verdade, e do esforço militante de fazê-la cada vez mais inapreensível e irrelevante, o desejo infrene de prender os inimigos vale como único recurso de fixação de sentido. Ao que parece, após uma breve incursão do espírito, estômago e fígado repõem suas pretensões a sedes fisiológicas da consciência política nacional.

 

 

Fonte – Estadão

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