Militares no caso Ana Lídia

Documentos apontam que agentes do Estado ignoraram as suspeitas de que o filho do ministro da Justiça na época estava envolvido no brutal assassinato da menina de 7 anos em 1973. Arquivos revelam investigação paralela do governo

O caso policial que mais chocou os moradores de Brasília foi investigado pelos militares durante a ditadura. Documentos que fazem parte do acervo da Aeronáutica, obtidos pelo Correio, revelam que integrantes do regime militar, ao apurar o assassinato da menina Ana Lídia Braga, em 1973, rejeitaram as evidências de envolvimento de Alfredo Buzaid Júnior, filho do então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, alegando que a inclusão do nome do rapaz na investigação tratava-se de “manobra de grupos a serviço da subversão”.

O argumento usado para isentar o filho do ministro da Justiça do governo Médici foi o depoimento de um servidor, identificado como José Martin, prestado ao Serviço de Segurança do Ministério da Aeronáutica em 24 de setembro de 1973. Doze dias depois de o corpo da menina de 7 anos ter sido encontrado com marcas de tortura e violência sexual, José Martin declarou aos militares que acompanhou Buzaid Júnior ao médico e também durante atividades escolares e de rotina da família na véspera e no dia do crime. O filho do ministro figurou à época do hediondo assassinato como o suposto responsável por manter a criança sob cárcere após a menina ter sido sequestrada da escola, na tarde de 11 de setembro de 1973. O irmão de Ana Lídia, Álvaro Henrique Braga, foi acusado de ter retirado a criança do colégio para entregá-la como prêmio a viciados para pagar dívida de drogas.

José Martin era, de acordo com as qualificações dos militares, o motorista responsável por servir à família do ex-ministro da Justiça. Em seu depoimento, ele afirma que Buzaid Júnior sofreu um acidente de kart na véspera do crime que tirou a vida de Ana Lídia e que acompanhou o rapaz no hospital por três vezes em 10 e 11 de setembro de 1973. “Foi atendido no Hospital Santa Lúcia pelo Dr. Geraldo Vasconcellos, que colocou aparelho de gesso no braço. Na noite do dia 10, por volta das 20h, a mão direita passou a inchar. Com seus pais, foi então ao Hospital das Pioneiras Sociais, sendo naquela ocasião atendido pelo mesmo doutor Geraldo Vasconcellos que, retirando o aparelho anteriormente posto, colocou uma tala, imobilizando o braço com gase e ataduras, marcando para o dia seguinte, 11 de setembro, às 11h nova consulta ao Hospital Santa Lúcia. Aí então, após radiografar o braço, o referido médico colocou novo gesso e determinou que o mesmo só fosse retirado após três semanas”, relatou o motorista, acrescentando que, na noite do crime, levou e buscou o filho do ministro a um cursinho pré-vestibular na Asa Sul, reafirmando o álibi.

 

Informes

No acervo do Arquivo Nacional também há fragmentos da investigação paralela realizada pelo próprio Ministério da Justiça. Apesar de o caso ser da alçada da polícia brasiliense, os militares enviaram informes a seções regionais da Divisão de Segurança e Informações (DSI) em diversos estados. “Em Brasília, no dia 11/9/73, foi raptada e morta a menor Ana Lídia Braga, de 7 anos de idade, filha de Álvaro Braga e Eloysa Braga, cuja autoria ainda permanece desconhecida. Foram acionadas as nossas congêneres dos estados e informaremos a essa DSI dos fatos que vierem a ser apurados com referência ao assunto.”

Na apuração do Ministério da Justiça, um depoimento de Buzaid Júnior informando suas atividades no dia do crime foi tomado por carta precatória e integra o acervo do Arquivo Nacional. Em 1975, uma servidora do Ministério das Relações Exteriores lotada na Divisão de Transmissões Internacionais, identificada como Celina, obteve informações sigilosas a respeito da morte de Ana Lídia por um policial que participou das investigações. No informe dos militares, que faz parte dos arquivos do Serviço Nacional de Informações (SNI), em vez de detalhar as pistas que a servidora tinha sobre o crime, os militares pontuam que a mulher e uma amiga “costumam fazer programas com deputados do MDB”, desqualificando a testemunha.

“(…) grupos a serviço da subversão, que aproveitaram a ocorrência para lançar acusações falsas e desgastar nomes de figuras do atual governo”
Trecho de documento do Ministério da Aeronáutica sobre investigação contra Buzaid Jr.

 

Itamaraty libera arquivos

Em reunião ontem com a Comissão Nacional da Verdade, o ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, colocou o Itamaraty à disposição para colaborar com as requisições necessárias. Segundo ele, quatro toneladas de documentos já foram encaminhadas ao Arquivo Nacional, todos em bom estado de conservação. “É um material que nunca foi pesquisado. Poderemos investigar a relação do Brasil com outros países que tinham regimes ditatoriais”, analisou o coordenador do colegiado, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp.

 

Memória

Violência  impune
Em 11 de setembro de 1973, um casal de funcionários públicos deixou a filha de 7 anos, Ana Lídia Braga (foto), no Colégio Madre Cármen Salles, na Asa Norte, por volta das 14h. Logo depois, “um homem alourado” deixou a escola com Ana Lídia. A menina, também loira, parecia conhecer o rapaz. Na tarde do dia seguinte, o corpo da criança foi encontrado em um terreno da UnB com marcas de tortura e violência sexual. A causa da morte teria sido asfixia.

Antes de o caso ser encoberto, as investigações apontaram que Ana Lídia teria sido levada pelo irmão, Álvaro Henrique Braga, então com 18 anos, ao sítio de um senador. Lá, o filho do parlamentar, o filho do ministro da Justiça à época, Alfredo Buzaid Júnior, e um traficante identificado como Raimundo Lacerda Duque teriam recebido a menina como uma espécie de pagamento por dívidas de drogas de Álvaro.

Duque e Álvaro Henrique foram absolvidos por falta de provas. Ambos deixaram Brasília após o crime. O traficante se mudou para Goiás e a família da vítima foi para o Rio de Janeiro. Alfredo Buzaid Júnior, que não chegou a ser indiciado, é dado como morto desde 1975, vitimado em um suposto acidente de carro.

Após o crime, o playground infantil no Parque da Cidade, batizado como Iolanda Costa, passou a ser chamado de Parque Ana Lídia, nome oficializado em 1993, quando o crime prescreveu. Até hoje, ninguém foi punido pelo assassinato da criança. (JJ)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *