Adelino não desapareceu, não foi morto ou torturado na ditadura militar, mas sua prisão marcou toda a família. Dulcinea lembra da casa invadida e vasculhada por militares
Criada para examinar violações de direitos humanos entre 1946 e1988, a Comissão da Verdade pretende lançar luz sobre casos notórios de tortura física e desaparecimentos durante o regime militar. Violências de menor ou nenhuma repercussão, no entanto, podem passar ao largo dos trabalhos da Comissão. É o caso da família de Adelino Cassis, morto em 2011 aos 88 anos. “Têm violências sutis que não são vistas”, diz a filha, a psicóloga Dulcinea Cassis.
Adelino Cassis não desapareceu, não foi morto ou torturado pelo regime militar. Por ser líder sindical filiado ao PCB, contudo, foi perseguido e preso. Enquanto estava foragido, sua casa em Brasília foi revirada três vezes diante da mulher e dos seis filhos de 2 a17 anos de idade. O trauma e a consequência financeira da escolha política de Cassis foram esquecidos pelo governo e não têm registro nos livros de história do Brasil, mas permanecem vivos na memória da família.
Em 1963, um ano antes do Golpe, Adelino liderou greve dos funcionários do Banco do Brasil
“No dia 31 de março de 1964, minha mãe disse ‘estourou a revolução’ e ‘seu pai foi cassado’. Para uma criança, estourar a revolução era o estouro de bombas na rua. E ser cassado era ser caçado com ‘ç’”, lembra Dulcinea. Hoje com 58 anos, ela conta que sua casa foi vasculhada por militares três vezes. “Levaram um rádio amador e a Bíblia da minha avó, em árabe. Levaram achando que era um livro marxista. Eu queria muito retomar aquela Bíblia porque tem um valor inestimável. Minha avó lia para nós quando crianças”, diz.
De fato, a Bíblia em árabe confiscada pelos militares continha as primeiras lições de igualdade e justiça social tomadas pelo então futuro líder sindical. Cristão ligado inicialmente à Igreja Presbiterianaem São Paulo, Adelino Cassis se desligou da congregação para ingressar na militância política ao lado de Luiz Carlos Prestes, no PCB. Como funcionário do Banco do Brasil, passou pelo Rio e, em Brasília, fundou o Sindicato dos Bancários, do qual foi seu primeiro presidente. Foi afastado em 1964, com o golpe, e tornou-se foragido por alguns meses, até se entregar.
A filha de Adelino, Dulcinea Cassis
“Meu pai ficou preso por 50 dias no Batalhão da Guarda Presidencial, o BGP. Não foi torturado, graças a Deus. Ele era bem tratado em 64. No seu aniversário, ele teve autorização para ir para casa. Fizemos um jantar e ele estava acompanhado de militares. Disseram que eram amigos do papai, como se fôssemos acreditar”, narra Dulcinea. Naquele período, a família Cassis passou por dificuldades financeiras e foi socorrida por vizinhos e amigos do sindicato até a Anistia, em 1979.
Segunda geração
Assim como o pai, o irmão mais velho de Dulcinea, Paulo Sérgio Cassis, morto em 2005, também sofreu perseguição do regime militar. Segundo ela, aos 17 anos o irmão teve de deixar Brasília sob ameaças de militares para concluir o segundo grau em Catanduva, no interior de São Paulo, onde morava uma tia. “Depois ele voltou (para a capital federal) e foi cursar Engenharia Elétrica na UnB (Universidade de Brasília), onde começou a atuação política. Ele era um articulador, um foco de resistência ligado ao PCdoB”, afirma.
Naquela época, Paulo Sérgio passou em um concurso para a Câmara Federal, mas não pôde assumir o cargo porque houve uma invasão da UnB e ele desapareceu, de acordo com Dulcinea.
“Mesmo depois da Anistia, ele dava notícias de vez em quando e usava a Igreja Metodista para se comunicar. Os irmãos da igreja o acobertavam. Ele tinha uma identidade falsa e se casou no Maranhão. Quando ele apareceu, trouxe a mulher para Brasília e casou de novo com a identidade verdadeira”, diz ela. Anos após a Anistia, Paulo Sérgio pôde, finalmente, assumir o cargo na Câmara, onde trabalhou – atuando no Sindicato do Legislativo – até se aposentar.
Processo contra União
O caso de Adelino Cassis foi julgado pela Comissão da Anistia, que concedeu perdão e uma indenização de cerca de R$ 60 mil
No ano passado, o caso de Adelino Cassis foi julgado pela Comissão da Anistia, que concedeu perdão e uma indenização de cerca de R$ 60 mil. Por causa da idade avançada e das condições de saúde, a análise de seu processo na Comissão da Anistia deveria ter tido prioridade, de acordo com Dulcinea. O resultado, no entanto, foi anunciado apenas poucos dias antes de sua morte.
Nos últimos meses de vida de Adelino, sua aposentadoria sofreu um corte de R$ 5 mil. A família, então, entrou na Justiça comum contra a União para reaver o valor, que poderia ter sido gasto no tratamento ambulatorial.
“Meu pai foi readmitido no Banco do Brasil, onde ficou até se aposentar. Mas a aposentadoria dele foi reduzida porque a Previ entendia que o governo é que tinha de pagar, foi uma confusão. Tiraram R$ 5 mil reais dele e era justamente o dinheiro que a gente precisava para o tratamento. Na hora que precisamos da ajuda de antigos colegas e políticos, inclusive o deputado Geraldo Magela (PT-DF), nós não conseguimos”, afirma a psicóloga.
Enquanto aguarda a Justiça comum, ela demonstra sua descrença no sistema partidário. “Essa esquerda só gosta de fazer pose. Tive épocas em que eu apoiei o PT, mas diante de tudo a gente não sabe mais quem está dizendo a verdade. Então eu prefiro me mandar fora e não envolver meu nome com ninguém mais. Meu voto é secreto”, afirma.
Fonte – IG