Filha de guerrilheiros foi entregue à família que apoiava ditadura argentina

No próximo mês, Victoria Montenegro, 36, levará os restos de seu pai para serem enterrados em sua província (Estado) natal, Salta.

Victoria Montenegro, filha de vítimas da ditadura argentina, vai finalmente enterrar os restos mortais de seu pai

Roque Orlando Montenegro, um guerrilheiro do ERP (Exército Revolucionário do Povo), morreu aos 20 anos, vítima de um dos “voos da morte” -sistema usado pela repressão argentina dos anos 1970 para livrar-se dos presos políticos, arremessando-os no rio da Prata.

“Será mais um capítulo na prestação de contas que estou fazendo com meu passado”, afirma ela em entrevista à Folha.

Victoria é um dos estimados mais de 500 bebês que foram roubados por militares antes e depois do golpe de 24 de março de 1976, episódio que iniciou o último período militar argentino.

As crianças foram entregues a famílias de oficiais ou a apoiadores do regime.

Desse total, a associação Avós da Praça de Maio, formada por mães de militantes de esquerda, já localizou 105 bebês, que hoje estão na casa dos 30 anos.

Na semana passada, o grupo comemorou a decisão da Justiça argentina que distribuiu sentenças a nove responsáveis por esses crimes, entre eles, o ex-ditador Jorge Rafael Videla, 86.

A seguir, trechos da entrevista que Montenegro concedeu à Folha.

Folha – Quando e como você foi roubada?

Victoria Montenegro – Nasci em liberdade e fui presa com meus pais aos 13 dias de vida, em William Morris [província de Buenos Aires], em fevereiro de 1976.

O homem que me roubou, o coronel Hernán Antonio Tezlaff, esteve envolvido na operação que terminou com a vida de ambos. Meu pai foi vítima dos “voos da morte”, minha mãe está desaparecida até hoje.

Como foi sua relação com seu apropriador?

Era uma relação de pai e filha. Durante minha infância, não desconfiava de nada. Cresci num entorno militar, os amigos da família, os encontros, as festas, eram as típicas desse meio.

Falava-se da “subversão” sempre em tom negativo e com as piores cores. Eu temia a violência que inspiravam.

Em 1989, as Avós começaram a desconfiar do meu caso e a pedir os exames de DNA. Fiquei assustada. No começo, não quis fazer [o exame]. Tinha muito medo de ser filha de guerrilheiros, por causa das coisas que meu apropriador contava sobre eles.

Como isso mudou?

Foi um processo longo, desde que fiz as primeiras provas, em 1993, até que ficou comprovada minha identidade, em 2000. Comecei a conhecer as experiências de outros netos e a ler sobre a luta dos meus pais biológicos, que aos poucos foi se transformando na minha luta.

Tive uma relação amorosa plena com meus apropriadores porque somos humanos e estabelecemos relações. Eu pensava que eram meus pais. Mas, uma vez que se descobre a verdade, é preciso não pensar no amor, e sim na Justiça, pois apropriar-se de um bebê não é um ato de amor.

Mas como ficou a relação com eles após saber a verdade?

Eu nunca rompi, mas fiz com que entendessem que eu não só estava contra, como ia viver a vida que me tinham roubado. Nesse momento, deixei de me chamar María Sol, o nome que me deram, e voltei a me chamar Victoria, o nome que meus pais queriam para mim.

Meu apropriador morreu em 2003. Minha apropriadora, há alguns meses. Já não tenho mais vínculos com ninguém dessa família.

Você considera justas as penas aplicadas aos repressores da ditadura?

As sentenças contra os cabeças da repressão estão corretas. Videla pegou 50 anos. Outras, aos apropriadores, decepcionaram um pouco, não passando de 15 anos.

Porém, o mais importante do julgamento é o fato de considerar o roubo de bebês como um “plano sistemático” pela primeira vez. Isso tem um significado histórico muito grande.

Por quê?

Trata-se de um passo a mais que damos na recuperação da nossa história. Isso não é mérito de um governo apenas, mas sim de um Estado que está recuperando a identidade daqueles que foram oprimidos no passado e dando um verdadeiro nome para o que aconteceu.

Está colocando no banco dos réus gente que nunca pensou que passaria por isso. Está confrontando interesses que se imaginavam intocáveis, como os dos donos de grandes grupos de mídia.

A ditadura está finalmente sendo entendida dentro de sua complexidade, ela não foi só militar, mas, sim, cívica, militar e dos meios de comunicação.

 

Fonte – Folha de S.Paulo

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