Ex-presos políticos relembram momentos de tortura durante ditadura

 

Dando continuidade à sequência de reportagens sobre ex-presos políticos durante a ditadura militar, anistiados compartilharam as memórias do período sombrio em que foram torturados

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Fios elétricos eram colocados nos dedos dos pés e nas partes íntimas. Os presos tinham de se equilibrar sobre latas estreitas, enquanto recebiam os choques, que “faziam o corpo levitar por um instante”, revelou o ex-preso político Gil Fernandes de Sá, sobre o tratamento na prisão.

Gil foi perseguido, preso e teve três irmãos diretamente afetados pela ditadura, Gilberto, Epitácio e Glênio. Este último participou da Guerrilha do Araguaia e deixou as memórias registradas no livro “Araguaia, Relato de um Guerrilheiro”.

Gil trabalhava no Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e era ligado ao movimento sindical quando teve o nome citado por um colega em interrogatório e acabou sendo preso em janeiro de 1973. Ele foi detido por policiais civis e federais no gabinete do diretor do BNB, o general Murilo Borges, no edifício São Luiz, na praça do Ferreira. Ele contou que havia um veículo Veraneio de prontidão para levá-lo ao 23º Batalhão de Caçadores (BC). No carro, já estavam outros presos, como Benedito Bizerril e Cláudio Pereira.

 

A Casa dos Horrores

“Fui preso em cela solitária, por cerca de um mês. Durante uma madrugada, fomos levados à Casa dos Horrores, onde sofríamos torturas”.  Afirmou. Antes da “tortura propriamente dita”, os prisioneiros eram despidos, acossados por socos, agressões morais e “telefones”, uma das práticas mais cruéis dos torturadores. O golpe era aplicado violentamente nas orelhas da vítima com as mãos em posição côncava. O impacto podia chegar a romper os tímpanos, dependendo da intensidade.

Apesar de conhecida internacionalmente e citada no livro “Brasil Nunca Mais”, compilação de documentos e relatos sobre a ditadura, a Casa dos Horrores ainda não teve seu local exato conhecido, por falta de informações concretas, já que os prisioneiros tinham os olhos vendados durante o percurso. Contudo, indícios apontam que funcionava próximo à Penitenciária Agrícola do Amanari, em Maranguape.

O advogado Benedito Bizerril, após a abertura democrática, foi por três vezes ao suposto local da casa, para colher informações. A última vez foi em 2011. “Tenho a convicção de que é mesmo lá”, enfatizou. Das poucas oportunidade em que ainda conseguiu ver partes da casa, durante a prisão em 1973, ele tem lembrança do piso inferior, feito de mosaicos coloridos, do piso superior, de assoalho, e de uma escada curta, que levava ao local das torturas”. Segundo ele, as descrições correspondem ao local visitado.

De acordo com Benedito, o terreno pertencia, na época, a um parente do general Jansen Barroso, comandante da 10ª Região Militar. As informações colhidas serão levadas à Comissão da Verdade, segundo Bizerril.

Gil Fernandes de Sá também estava sempre encapuzado quando frequentava a Casa, mas o pouco que consegue identificar da residência sombria eram sons de vacas e porcos, no entorno. Segundo ele, o percurso até a Casa durava uma hora. Nesse meio-tempo, os prisioneiros eram pisoteados, sufocados com panos e levavam coronhadas de revólver nos testículos. “Já chegávamos lá com as condições físicas e psicológicas em frangalhos”, afirmou.

O fim de uma carreira

 

Mesmo depois de liberto, Gil disse ter enfrentado perseguições no trabalho e ter sido compelido a se demitir do BNB, onde foi readmitido apenas em 1986. Ele é aposentado desde 1996 e mora com a esposa e filhos num apartamento no bairro Dionísio Torres, onde nos recebeu para a entrevista.

Na foto, vítimas da ditadura no Ceará. Crédito: Comissão de Anistia Wanda Sidou

As sequelas ainda são latentes. Gil disse ter passado longos anos sem falar sobre o assunto. Além de ter pesadelos, ele ainda disse ter pequenos lapsos de memória. “Talvez isso ocorra, porque exercitei muito a habilidade de esquecer propositalmente muitas coisas naquela época”, confidenciou. Apesar de reconhecer a importância de debater o assunto amplamente, ele disse ter sentido ansiedade com a ideia de dar entrevista. “A gente acaba revivendo o passado”, revelou.

Torturas físicas e psicológicas

O professor Paulo Emílio de Andrade Aguiar foi preso nos anos de 1971 e 1972, no Ceará e em São Paulo, sob diversas acusações, como direção de movimento estudantil e distribuição de material subversivo. Ele contou que companheiros eram levados às prisões com braços quebrados e unhas arrebatadas. “As pessoas chorava, urravam. Era comum, eu ouvir notícias de pessoas que iam para o interrogatórios e não voltavam. Os corpos assassinados eram desovados no local”, revelou.

“Cheguei a passar vários dias em celas escuras, despido, sem saber se era dia ou noite. Fizeram milhares de perguntas, para revelar movimentos em partidos políticos e movimentos ‘revolucionários’. Houve também tortura psicológica. Eu só saía da sala com os braços algemados, venda nos olhos e capuz e no interrogatório”, relembrou. Ele disse que escutava várias vozes durante o interrogatório. Todos se chamavam por patentes, como coronéis e capitães. Nunca eram usados nomes verdadeiros, apenas apelidos. Paulo Emílio disse não saber exatamente para onde foi levado, mas julgava ser próximo do aeroporto, porque ouvia muito barulho de aviões e grande movimento de carros.

Em São Paulo, foi preso pelo Esquadrão da Morte. “Lá, fui torturado por quase três meses. Eram espancamentos, asfixiamentos, ‘pau-de-arara’ e até colocaram o dedo na minha goela, para que eu revelasse pontos de esconderijo”, afirmou. “Era uma seção de maus-tratos coletiva. Uns ficavam assistindo aos outros serem torturados” revelou. Ele foi transferido para o presídio Tiradentes e, depois, para o Carandiru, onde passou cerca de seis meses detido.

Perguntado como conseguiu forças para resistir à tortura, Paulo Emílio disse que seguiu os conselhos dos companheiros de cela: “Se perceberem sua fragilidade, você não terá apenas produzido motivos para eles o condenarem como também condenará os outros companheiros” afirmou. Para conseguir se livrar ele disse que “dava respostas malucas” e, assim, acabava sendo absolvido por falta de provas.

Exílio na França

Em um momento que ele e a família não conseguiram mais aguentar as perseguições, Paulo decidiu pelo exílio voluntário. Ele, a mulher e a filha de 3 anos foram para Lyon, na França, em 1980, onde ficaram até 1983. Na época, ele escreveu o livro “Estado, Classe e ideologia – dos bárbaros às origens do feudalismo”.

Mesmo depois do início da abertura democrática, o ex-preso político disse que ainda era observado. “A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) tinha informações sobre a minha vida até o ano de 1985”, disse.

Série

Durante a semana, o Diário do Nordeste Online, traz reportagens especiais sobre vítimas da ditadura no Ceará.

 

 

Fonte – Diário do Nordeste

 

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