‘Superamos o medo de discutir o passado’

Embora sem poder punitivo, as comissões da verdade podem subsidiar o Ministério Público e o Judiciário, gerando ações contra ex-agentes da repressão. Também devem identificar financiadores do regime e apontar ligações com ditaduras latino-americanas. Essa é a expectativa do secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão Pires Júnior, que estará no Recife amanhã para assinar acordo de cooperação com a Comissão Estadual da Verdade. Um dos idealizadores do projeto, ele minimiza reações contrárias, como a da caserna, garantindo que o trabalho não visa estigmatizar ninguém. Abrão diz que o Brasil vive um ótimo momento de memória, e prevê uma mudança cultural no pensamento da sociedade com relação aos direitos humanos.

JC – Como será esse acordo de cooperação que o senhor vai assinar com a Comissão Estadual da Verdade?

PAULO ABRÃO – Vamos colocar um objetivo geral de permuta de informações a partir do que for produzido pela Comissão da Verdade em Pernambuco e disponibilizar integralmente o acervo dos últimos dez anos acumulado em Brasília pela Comissão da Anistia. A partir daí, estabelecer também medidas de integração, seja na elaboração de relatórios, seja na construção de medidas de reparação, de educação para os direitos humanos e de promoção de políticas de memória.

JC – Foi assinado convênio semelhante com a Comissão Nacional da Verdade. Já houve troca de informações?

ABRÃO – Fizemos uma primeira reunião com a Comissão Nacional da Verdade, que está finalizando seu plano de trabalho. A partir daí ficará mais clara qual a forma de integração. Mas o acordo que firmamos com a nacional é exatamente igual ao que vamos assinar em Pernambuco. Já fizemos outro com a Comissão da Verdade de São Paulo, e em agosto assinaremos um em Minas Gerais. A Comissão de Anistia possui o maior acervo de vítimas do regime militar. São mais de 70 mil processos com a história narrada a partir do ponto de vista de testemunhas das vítimas. Muitos fatos não são mais acessíveis em razão da destruição de arquivos e só podem ser conhecidos a partir do relato das vítimas, nos processos de anistia política e de reparação.

JC – Como um dos idealizadores da Comissão Nacional da Verdade, o senhor defende que ela investigue empresas privadas que financiaram a ditadura, além de criar comitês especiais para apurar atos de terrorismo de Estado como o do Riocentro, e a participação do Brasil na Operação Condor. Isso seria legalmente possível?

ABRÃO – A lei que instituiu as comissões lhes dá competências para apurar e sistematizar todas as graves violações dos direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988. Mas não se trata apenas de conhecer o agente torturador, que cumpria ordens, e sim identificar a cadeia de comando, que tornou possível estruturar no Estado brasileiro um aparato para destruição de outro. Aparato que só teve sustentação porque recebeu financiamentos públicos e privados, e se integrou às demais ditaduras latino-americanas. Para mim, a Comissão da Verdade tem que apurar essas cadeias de relação e de comando.

JC – Como o senhor analisa as reações contrárias às comissões da verdade por parte de setores como os militares, por exemplo?

ABRÃO – Esse é um trabalho que não pretende estigmatizar os militares, até porque a ditadura recebeu apoio de vários setores da sociedade civil. O relevante é que superamos uma situação que até pouco tempo era muito comum, de se afirmar que discutir o passado era algo indevido. Hoje praticamente todos concordam com a importância de reconhecer o passado para não repetir as violências no futuro. O passo seguinte é atingir a argumentação política e ideológica que justifica as graves violações e o estado de terror instalado pela ditadura militar a partir de um “mal necessário”, que deve ser repelido por parte dos defensores dos direitos humanos.

JC – Se questiona o fato de a comissão ter finalidade exclusiva de resgatar a história dos mortos e desaparecidos, mas não dispor de poder punitivo. Como ela pode contribuir para a punição de agentes da repressão que participaram de atos criminosos?

ABRÃO – Por sua natureza, essas comissões não têm o propósito de abrir investigações judiciais. Elas são administrativas. Em toda as comissões da verdade do mundo, exceto a de Gana, o papel nunca foi jurisdicional. Agora, a tarefa de investigação judicial cai no colo do Ministério Público Federal, que tem a competência de tomar iniciativas necessárias à preservação da democracia. Nesse instante o MPF aprovou uma resolução tornando necessário o cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que determinou que os crimes de Estado precisam ser apurados. Essa é uma discussão na qual o Judiciário, pouco a pouco, terá que se envolver. Evidente que ninguém pode impedir que o MPF ou qualquer outro órgão da sociedade se aproprie da documentação gerada tanto pela Comissão de Anistia como pelas comissões da verdade para propor iniciativas judiciais. Agora, se elas serão recepcionadas pelo Judiciário, é algo que a ampliação do debate nos dirá.

JC – O senhor avalia que o Judiciário está distante do processo de justiça de transição, em curso no País. Que papel esse Poder deveria assumir no processo?

ABRÃO – O Ministério Público já está apresentando algumas ações civis. Também as primeiras ações penais, que não tiveram ainda decisões pelo Judiciário. Eu defendo que o direito à verdade depende da complementaridade do trabalho das comissões de reparação e das comissões da verdade com o trabalho do sistema de Justiça. Algumas possibilidades de acesso a informações sobre a verdade factual só são possíveis de alcançar a partir do envolvimento do Judiciário. É por isso que o direito à verdade contamina não apenas o Legislativo – que aprovou a lei da Comissão da Verdade – e do Executivo, que criou a comissão para apurar os fatos, e deve contaminar o Judiciário, tentando superar toda uma jurisprudência, que é a ausência de reconhecimento do direito de resistência.

JC – A Lei da Anistia, de 1979, é cheia de deficiências e, na opinião de alguns, precisa ser revisada. O que deveria ser mudado?

ABRÃO – Vejamos um exemplo concreto. Recentemente o Ministério Público do Rio Grande do Sul pretendia abrir investigação para apurar as circunstâncias da morte do ex-presidente João Goulart, para dirimir a dúvida histórica se ele foi ou não envenenado por ordem da Operação Condor. E essa investigação foi arquivada, alegando-se que a Lei de Anistia impede esse tipo de procedimento. Ou seja, a lei está servindo de obstáculo à proteção judicial das vítimas sobre os crimes de Estado e também ao direito da sociedade brasileira de conhecer a sua história, de saber se um ex-presidente foi ou não envenenado. Esse é o nível de participação que o Judiciário pode nos permitir ao participar desse movimento em prol da memória que toda sociedade tem vivido. Não se trata de mexer ou revisar a Lei da Anistia. Basta simplesmente interpretá-la adequadamente, nos marcos dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos, segundo a jurisprudência da Corte Interamericana.

JC – O senhor sugeriu que se faça um pedido formal ao governo dos Estados Unidos para a desclassificação de documentos sigilosos sobre a ditadura no Brasil. Há um histórico de colaboração dos EUA com outros países que investigam suas ditaduras?

ABRÃO – Os governos do Chile e da Argentina solicitaram formalmente ao governo dos Estados Unidos, quando Bill Clinton era presidente, a desclassificação dos documentos secretos daquele país relacionados à história das suas ditaduras. Esses documentos foram integralmente desclassificados e entregues a essas nações para o trabalho de reconstrução da memória. Eu defendo que o Brasil solicite formalmente a desclassificação, que certamente colaborará para elucidar muitos fatos e a eventual participação de ações internacionais na sustentação da ditadura.

JC – Nos dez anos de funcionamento, a Comissão da Anistia pagou quantas indenizações? Quanto já foi gasto?

ABRÃO – Temos na Comissão da Anistia mais de 70 mil processos com relatos de vítimas a respeito de violações que sofreram. Desses, 60 mil deles já foram apreciados. Um terço foi negado por ausência de provas. Outro terço foi deferido sem nenhuma reparação econômica, com as vítimas recebendo apenas a reparação moral. E o outro terço foi aprovado com reparações econômicas. A média das indenizações gira em torno de dois mil e trezentos reais mensais, pagos como uma pensão vitalícia. Esse número é revelador de que a ditadura brasileira atingiu amplos espectros da nossa sociedade. E que a violência de uma ditadura não se mede pela pilha de corpos que ela produziu, mas pela cultura autoritária que ela projeta ao longo do tempo. Nós demoramos muito tempo para superar o medo de enfrentar o passado, e conhecer os erros produzidos pela nossa história que demonstram o quanto a nossa ditadura deixou um legado de cultura autoritária. Estamos vivendo hoje um tempo ótimo para a memória. Passamos à era do acesso à informação e à memória e estamos diante de uma mudança cultural no País.

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