Os integrantes da Comissão Nacional da Verdade reafirmaram na segunda-feira (13), durante uma tensa audiência pública na sede da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OAB-RJ), que os depoimentos de testemunhas ou acusados de participação em crimes praticados pelos órgãos do estado, principalmente na ditadura civil militar entre 1964 e 1985, continuarão sendo colhidos e mantidos em sigilo. A comissão foi oficialmente instalada em maio e tem o prazo de dois anos para entregar um relatório sobre as violações aos direitos humanos ocorridas no país entre 1946 e 1988.
A defesa dos atuais métodos de trabalho da comissão foi feita após inúmeros representantes de entidades da sociedade civil cobrarem maior divulgação dos depoimentos, parcerias com órgãos que representam as vítimas das violações e punição para os autores dos crimes.
“Nem sempre é possível. Eu acho que vocês todos têm que confiar que nós estamos querendo apurar, e para a apuração não podemos fazer tudo publicamente. Isso é uma investigação, temos que tomar depoimentos, muitas vezes em sigilo, para daí tomarmos outros depoimentos e ações. E se nós dermos publicidade nós estaremos prejudicando a descoberta da verdade”, disse José Carlos Dias, um dos membros da comissão e ex-ministro da Justiça no governo FHC, para as cerca de 200 pessoas que lotaram o auditório da OAB-RJ.
Cecília Coimbra, diretora do Grupo Tortura Nunca Mais, questionou os depoimentos sigilosos. “Não podemos continuar colocando sob sigilo, sob confidencialidade, a fala de alguns torturadores notórios. Por exemplo, o senhor Cláudio Guerra vai à Comissão da Verdade, fala um depoimento que ele já escreveu, ‘Memórias da Guerra Suja’, e dá sete nomes de membros do aparelho de repressão que a sociedade desconhece até hoje. Nós precisamos conhecer todas as falas, testemunhos e documentos que a Comissão da Verdade conseguiu. Nós estamos aqui pelo não sigilo, porque manter o sigilo é manter a confidencialidade que os torturadores até hoje têm nesse país”.
A audiência contou com grande participação de jovens e estudantes, a ponto de levar outro representante da comissão, o embaixador Paulo Sergio Pinheiro, a revelar que gostaria de poder participar dos atos de escracho realizados pelos estudantes em diferentes cidades do Brasil.
Fernanda Pradal, estudante e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser), reforçou a necessidade de um maior diálogo entre a comissão e a sociedade civil. “Acreditamos que um processo participativo e transparente é a única forma de legitimar o resultado que teremos daqui a dois anos. A comissão deve ter com clareza o que significa uma demanda por participação. Ela começa com uma demanda por uma agência pública, e além dessas audiências é fundamental relatórios parciais, não de conteúdo, mas sobre o processo interno e metodologias de trabalho da comissão”.
Punição em debate
Ao explicar as vantagens dos depoimentos em sigilo, Dias tocou em outro ponto sensível da comissão, o da não punição. “O fato que nós não temos o poder persecutório e punitivo, que indigna muita gente, e é normal que aconteça, deve ser usado para que possamos conseguir mais confissões, pessoas que vão à comissão, convocadas ou não, para depor”.
O ex-ministro disse ainda que em caso de convocação, o depoente tem a obrigação de comparecer, aí sim podendo ser punido caso não se apresente. “Eles têm a garantia da impunidade? Têm, porque a lei dá esta garantia, mas praticarão crime se não comparecerem quando convocados. E caberá um procedimento criminal”, afirmou.
Para José Pimenta, do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos (Cebrasp), a Comissão da Verdade deve forçar o fim do pacto imposto pelo estado à sociedade contra o esclarecimento da verdade histórica e as cobranças por justiça. “A opinião pública exige dessa comissão a apuração e todo o esforço no sentido de punição, mesmo que isso não esteja previsto nos objetivos da comissão, mas através da ação política, de todos os crimes que foram cometidos no passado e dão base e sustentação para os crimes de tortura, assassinatos e desaparecimentos que acontecem no presente”.
Diante do clima de enfrentamento que tomou conta da audiência, Paulo Sergio Pinheiro reiterou: “nós não julgamos, não vamos condenar nem absolver ninguém. O problema é que há uma desinformação sobre o que é uma comissão da verdade. Nenhuma comissão da verdade no mundo condenou alguém. Os processos de investigação, de pronúncia, de condenação são feitos pelo poder judiciário”.
Ao ouvir um início de vaias, reiterou, “a comissão não é um tribunal de justiça. As críticas devem ser permanentes, mas aproveitemos a oportunidade, não vamos ficar repetindo que os torturadores não vão ser condenados. Não vão ser!”
“Por enquanto”, gritou alguém da plateia, e os estudantes irromperam em coro “cadeia já! Cadeia já! Para os fascistas do regime militar”.
Ao retomar a palavra, esclareceu, “os torturadores não vão ser condenados pela comissão nacional da verdade, agora, é perder tempo achar que o relatório apresentado pela comissão não vai ter consequências”. E completou: “estamos juntos com a sociedade no sentido de esclarecer e de demonstrar a responsabilidade concreta do estado brasileiro durante a ditadura pelos crimes que foram cometidos, no mais alto nível. Não foram abusos ou excessos, tudo o que foi cometido foi com conhecimento dos altos níveis do governo”.
Força popular
A psicanalista Maria Rita Kehl, também integrante da Comissão da Verdade, registrou o clima de confronto da audiência, “às vezes é um pouco chocante ouvir de companheiros da mesma luta um tom acusatório, como se o nosso sigilo, às vezes necessário para uma investigação, fosse da mesma ordem do sigilo de quem está escondendo crimes e etc”, mas não deixou de reconhecer a possibilidade de reviravoltas a partir da mobilização popular.
“Talvez devemos confiar na força e combatividade da sociedade brasileira. Se por lei não nos cabe punir, e não nos cabe, a sociedade está aí. Assim como a Comissão da Verdade foi criada em parte pelo vigor e pela pressão da sociedade, o destino das revelações não está nas nossas mãos, nós não podemos decidir ou obstar nada que a sociedade conseguir pressionar para que o Congresso faça”.
Fonte – Carta Maior