Pesquisa da UFMG mapeou 82 cárceres mantidos pela ditadura no Brasil
Relatos dos Porões
Dos 82 centros de tortura que funcionaram no regime militar no Brasil entre 1964 e 1985, 13 localizavam-se no Rio de Janeiro. O número, que faz parte do mapa produzido por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sobre os endereços da repressão durante a ditadura militar, surpreendeu a coordenadora do projeto, a professora Heloísa Starling. Embora não esperasse uma quantidade tão grande, ela deduz que o número pode estar ligado à forte presença de organizações de esquerda no estado e ao entendimento de que a cidade era a porta de entrada do país.– Foi no Rio que aconteceram o sequestro do embaixador americano e o roubo ao cofre de Ademar de Barros – explicou a professora.
A pesquisa, desenvolvida no projeto República do Núcleo de Pesquisa, Documentação e Memória da UFMG, será apresentada amanhã em evento promovido pela Comissão Nacional da Verdade na sede da OAB-RJ. Ao lado de São Paulo e Pernambuco, o Rio está entre os três estados com a maior incidência de centros de tortura do país.
O número elevado de cárceres paulistas era esperado, mas no caso das unidades pernambucanas, o projeto supõe que o regime priorizou um estado irradiador de ações de esquerda para o resto do Nordeste, além de ter sido cenário do atentado ao Aeroporto de Guararapes e de queimas de canaviais.
Estudo servirá de base para Comissão da Verdade
Mapa aponta uso de sítio clandestino em São João de Meriti
Para desenvolver o mapa, que servirá de base para as investigações da Comissão Nacional da Verdade, os pesquisadores do Projeto República classificaram os centros em quatro categorias: militares, policiais civis, clandestinos e híbridos (compartilhado entre militares e policiais civis). Uma das novidades apontadas pelos pesquisadores do grupo é um sítio em São João de Meriti, na Baixada Fluminense.
Entre os locais mais conhecidos por tortura, morte ou desaparecimento de militantes que combateram o regime estão os temidos Destacamentos de Operações de Informações – Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-Codis) de São Paulo e do Rio de Janeiro, e os Departamentos de Ordem Política e Social (Dops). Já entre os clandestinos, estão a Casa da Morte, em Petrópolis, e o Sítio 31 de Março, mas o número total, como demonstram pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, pode ser muito maior.
– O mapa não é definitivo. Espero que sirva de estímulo para outros pesquisadores continuarem procurando e identificando centros de tortura – disse Heloísa Starling, coordenadora do projeto.
Em junho, o GLOBO publicou uma série de reportagens com relatos do coronel Paulo Malhães, primeiro agente da repressão a admitir que atuou na Casa da Morte. Malhães revelou que o local teria sido utilizado como “casa de conveniência” para formar infiltrados nas organizações de esquerda.
Iniciado em 2007, o estudo está sustentado pelo mapeamento feito pelos pesquisadores. Outro objetivo é produzir um mapa dos acervos disponíveis. A equipe é formada por 20 pessoas, entre alunos de graduação, mestrado e doutorado. Na segunda-feira, os estudantes também mostrarão um vídeo com imagens da repressão, entre as quais uma filmagem inédita do delegado paulista Sérgio Paranhos Fleury em uma cerimônia de condecoração da Marinha.
A professora fez questão de ressaltar que a prática da tortura se instalou desde o início do regime, mas teria se materializado como política de Estado no período compreendido entre os anos de 1969 e 1977, época em que se registra a maior parte das mortes e desaparecimentos de guerrilheiros.
Além da apresentação do estudo, a comissão realizará uma audiência pública com ex-presos e familiares de mortos e desaparecidos, além de debates com convidados como os professores Carlos Fico, Maria Celina D”Araújo e o teólogo Leonardo Boff.
Dops: 223 ‘colaboradores’ atuavam como agentes
Acervo de delegacia em PE mostra que militares também eram monitorados; prontuários escondiam abusos
relatos dos porões
Recife Extinto em 1990 e com seu acervo transferido para o Arquivo Público do Estado – onde está sendo digitalizado – os quase 170 mil documentos da Delegacia de Ordem Política e Social (Dops) em Recife começam a revelar os bastidores da repressão e mostram que não só os inimigos do regime eram monitorados, mas também os próprios agentes.
A prática, muito usual no Estado Novo, prolongou-se pelo menos até duas décadas depois de 1964. Em alguns prontuários, é possível identificar a intenção de proteger militares ou civis que participavam de operações de repressão; observa-se ainda que alguns deles cometiam abusos de autoridade em investigações comuns e eram acobertados pelo sistema. E que se envolveram em assassinatos, investigações paralelas e chegaram a ter seus nomes usados por terceiros em missões não autorizadas pela então Secretaria de Segurança Pública, que agia entrosada com órgãos federais.
O acervo revela, também, que além de funcionários da Secretaria de Segurança, a delegacia chegou a contar com uma lista de 223 colaboradores que, por conta dos serviços prestados, eram “merecedores de renovação de credenciais” no início dos anos 70. Os documentos mostram que pessoas atuavam em caráter paralelo e eram reunidas em grupos específicos: Investigadores Adidos da Secretaria ou Sociedade Investigativa Secreta.
Os papéis praticamente não fazem referência ao Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, que atuou com muita intensidade no período após 64.
É provável que o número de colaboradores seja maior do que os 223 apontados num dos últimos relatórios no período da ditadura. Um dos mais conhecidos era Rogério Matos, não incluído na lista, embora ele possuísse, em 1969, uma carteira de “agente secreto” do Dops, segundo revelação feita pelo ex-delegado Jorge de Tasso à Comissão Estadual da Memória e da Verdade. Rogério é acusado de matar, em 1969, o padre Antônio Henrique Pereira Neto, assessor do bispo Dom Helder Câmara.
Secretário comandou a prisão de 20 militantes
Deputado que pedia punição para subversivos também tinha dossiê
recife Documentos do Dops de Pernambuco apontam que, só em 1965, o então secretário de Segurança Pública Álvaro Costa Lima comandou a prisão de 20 ativistas, “encaminhou 27 inquéritos contra elementos subversivos” e ouviu 226 “pessoas envolvidas em subversão”. Durante a edição do ato institucional número dois (AI-2), chegou a deslocar “dez carros FM e 15 jipes” para as ruas a fim de evitar “levantamento de ativistas vermelhos mais perigosos, fichados na revolução de 31 de março”. Registros fazem referências ao esfacelamento do comitê regional do Partido Comunista do Brasil e mostram que a polícia civil deverá “obter novos êxitos”.
Com passagem na polícia do chamado Estado Novo e autonomeado um caçador de comunista depois de 1964, o ex vereador e deputado Wandekolk Wanderley tem um dossiê volumoso no Dops, por dois motivos. Se por um lado ele escrevia requerimentos ao Dops pedindo providências “contra a existência de movimentos com finalidade subversivas” e defendendo “a preservação do regime democrático a qualquer custo”, por outro teve seus passos monitorados ao envolver-se em investigações particulares para provar que o seu filho, José Carlos Wanderley, não tinha envolvimento na morte de um médico (sem motivação política). Conforme documentos do Dops, o ex-deputado – já morto – coagiu testemunhas e fez prisões arbitrárias.
Homônimo era monitorado
Outra informação curiosa refere-se a um cidadão chamado José Silvestre Costa, homônimo do então delegado de Segurança Social José Silvestre, acusado de tortura em diversos documentos da época. Segundo o ex preso político Francisco de Assis Barreto Rocha Filho, o policial se gabava de “não ter colocado um dedo em nenhum subversivo”, mas comandava as sessões de tortura. Rocha Filho diz ter sido sua vítima durante cinco dias de interrogatório. Silvestre era um homem temido.
De acordo com os documentos recolhidos ao arquivo, o homônimo do delegado “dizendo-se agente da Polícia Federal, coronel do Exército e agente do SNI (Serviço Nacional de Informações)” invadiu um escritório na rua Augusta, em São Paulo, e apreendeu “posteres de propaganda comunista”, dizendo-se “possuidor de autorização de um general importante”. Seu caso consta em “protocolo sigiloso”, e o nome utilizado indevidamente foi o do “General Muricy”, provavelmente Antônio Carlos Muricy, um dos líderes militares do golpe de 1964.
Fonte – O Globo