O ex-presidente se sentia traído por João Goulart e Castelo Branco, teria ameaçado Jânio Quadros com um soco e procurado ajuda na Opus Dei durante uma depressão
Ao lançar em 1982 o livro “Memorial do Exílio”, baseado nas memórias do ex-presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976), o jornalista e romancista Carlos Heitor Cony não pôde esmiuçar o episódio sobre o qual tinha mais interesse: a morte de JK num desastre automobilístico cercado de mistério. Com os direitos políticos cassados após o golpe militar de 1964, a suspeita era de que Juscelino tivesse sido assassinado pela ditadura (nesse mesmo ano de 1976, morreriam João Goulart e a estilista carioca Zuzu Angel, também num acidente pouco explicado). A própria família do estadista deu o recado para Cony não se aprofundar em certos assuntos. A recomendação mais veemente veio da esposa, Sarah, pois havia a suspeita de que, momentos antes, o ex-mandatário teria se encontrado num hotel com a amante, Maria Lúcia Pedroso. Agora, 30 anos após a primeira edição da obra, a visão do político mineiro sobre o período posterior à sua saída do poder volta às livrarias, com o acréscimo desse ponto nebuloso do acidente. Cony não traz uma prova cabal de que o ex-presidente foi eliminado pelo regime militar. Apenas reúne indícios. Cabe ao leitor tirar as conclusões.
Essa edição revista ganhou o título “JK e a Ditadura” (Objetiva) e, assim como a original, é lançada sem festa e noite de autógrafos. Mas, enquanto na época o governo do general João Batista Figueiredo proibiu qualquer alarde, agora é a discrição do próprio autor que falou mais alto. Ele contou à ISTOÉ que Juscelino suspeitou de que morreria duas semanas antes do fatídico dia 22 de agosto de 1976. Em sua fazenda em Goiás, ele se sentiu profundamente amargurado depois que um boato dava conta de sua morte num acidente de carro numa viagem para Brasília. Para o escritor, essa morte anunciada teve outros sinais de que fora planejada, devido à rápida presença de militares no local da tragédia, quando o carro Opala que levava JK para o Rio bateu em uma carreta na via Dutra, próximo a Resende. O relatório da comissão de militares apontava um suposto encontro com a amante, momentos antes, fato que foi por ela desmentido. Cony esteve com Juscelino nesse dia, em São Paulo, e ressalta que não foi devidamente investigado o fato de a perícia ter constatado defeito na suspensão do Opala, um sinal claro de sabotagem: “Quem primeiro apareceu na cena do desastre foi o Guilherme Romano, eminência parda do regime.”
O autor organizou as memórias do ex-presidente a partir da posse de Jânio Quadros. Conta que na transmissão do cargo o político paulista se livrou de levar um murro do antecessor, preocupado com o teor de suas ofensas no discurso. Um Juscelino até então aguerrido sofreu tantas perseguições que deu lugar a um homem amargurado e deprimido. “Ele chegou a pensar em suicídio no exílio nos EUA”, diz Cony. Precisou recorrer até à religiosidade e, em 1973, participou de um cursílio patrocinado pela organização Opus Dei. Os maiores ressentimentos vinham de dois colegas: João Goulart, que foi o seu vice, por não ter apoiado a sua volta ao poder em 1965, e o ex-presidente Castelo Branco, por não ter cumprido o prometido. O marechal e ditador contou com o apoio de JK para sua eleição pelo Congresso, mas recusou-se a fazer uma transição democrática. “Juscelino ainda acreditava que ia desempenhar o papel que muito tempo depois coube a Tancredo Neves, de ser o civil que ia reconduzir o País à democracia”, conclui Cony.
Leia um trecho do primeiro capítulo da obra :
O sucessor sem sucesso
31 de janeiro de 1961 — “… infelizmente, ainda estamos na América Latina”. A 10 mil metros de altura, cruzando o Atlântico rumo a Dacar, em escala para Paris, o DC-7 Bandeirante Antônio Raposo Tavares deixara Brasília três horas antes. Levava a bordo uma espécie de novo bandeirante, o brasileiro Juscelino Kubitschek de Oliveira, de 59 anos, que acabara de transmitir a presidência da República a Jânio da Silva Quadros. Aparentemente, fora uma sucessão tranquila do ponto de vista constitucional. Contrariando antiga praxe entusiasticamente adotada no país, ninguém pensou em anular as eleições ou em negar posse ao eleito. Além de tranquila — seria também a última eleição presidencial pelos próximos vinte e tantos anos —, fora uma sucessão gloriosa para quem deixava o poder. Juracy Magalhães, seu adversário político, mas amigo pessoal, sintetizara numa frase o espetáculo da multidão que provocou o primeiro congestionamento nas largas avenidas que JK abrira no áspero chão do cerrado: “O seu governo tem um ocaso que parece uma alvorada!” E de todos os cantos do país já surgira o refrão, JK-65, que nascera tão logo ele se recusara a articular uma emenda na Constituição para tornar-se elegível à própria sucessão — outra praxe, também, de nossos costumes políticos.
Ao descer a rampa do Palácio do Planalto, acompanhado pelo novo presidente, ambos ouviram os gritos da multidão que antecipavam, de forma exagerada, o problema sucessório: ao mesmo tempo que se tornava um ex-presidente, transformava-se em poderoso candidato presidencial, em torno do qual, por bem ou por mal, gravitariam todas as articulações políticas. E como o Brasil estranhamente tem pressa — ao menos nessa questão —, essas articulações costumam começar no mesmo dia em que um cidadão toma posse de qualquer poder.
Em sua poltrona, cercado pela família — dona Sarah, Márcia e Maria Estela —, seu médico Carlos Martins Teixeira, os amigos José Sette Câmara e Saulo Diniz, JK tenta forçar o sono que habitualmente lhe vinha fácil em viagens demoradas (15 anos mais tarde, dormindo, sofreria o acidente fatal na Rio-São Paulo). A frase ressoava em sua cabeça, prolongamento monótono do ruído dos motores: “… infelizmente, ainda estamos na América Latina”. Frase que, ao encerrar seu último volume de memórias, fez questão de transcrever, tornando-a ponto final não apenas de um período de sua vida que acabara, mas, sobretudo, de um novo desafio que começava.
Momentos antes, o comandante do avião viera chamá-lo à cabina. O rádio de bordo transmitia, através da Voz do Brasil, a primeira manifestação pública do novo presidente do Brasil. JK ouvira apenas algumas frases — o bastante para compreender que, afinal, era o discurso que o preocupara nos últimos dias, que toldara sua habitual serenidade diante do drama político. Na semana anterior, recebendo em visita protocolar o futuro ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta,fora informado de que Jânio falaria durante a cerimônia de posse e, na certa, alguns aspectos da antiga administração seriam criticados.
A princípio, ele não dera importância. Sabia que empossaria um adversário político, um homem que se elegera com espetacular votação, usando os recursos normais de qualquer candidato da oposição. Mais tarde, alguns amigos também o advertiram no mesmo sentido. Dizia-se que Clemente Mariani, futuro ministro da Fazenda, ou o próprio Carlos Lacerda, o mais virulento adversário de todos os presidentes da República desde a redemocratização do país, em 1945, um ou outro ou ambos haviam redigido um discurso insultuoso, apocalíptico, letal. E Auro de Moura Andrade, da tribuna do Senado, deixara escapar uma frase que, subitamente, se destacou em seu subconsciente: “Vá tranquilo, presidente”, dissera o senador, “estaremos no Legislativo defendendo suas obras, sua honra pessoal e cada ato praticado por Vossa Excelência em benefício do Brasil!”