O primeiro documento do prontuário foi produzido pela Polícia Civil em 1962 e destaca uma denúncia feita por Severino Queiroz de Albuquerque sobre a formação das Ligas Camponesas em Vitória de Santo Antão. Começava ali a carreira de colaborador do empresário com os militares. O mais importante relatório da pasta 17.041 trata de uma “investigação” feita pela 2ª Seção do IV Exército contra Biu do Álcool. Os oficiais encarregados da apuração dizem ser inverídicas as informações de que o colaborador contrabandeasse álcool dos engenhos da região. O texto ressalta ainda que a metralhadora INA que Queiroz portava ostensivamente em Vitória foi um presente dos militares ao “parceiro”.
“Severino Queiroz era um denunciante seguro das atividades exercidas pelos subversivos na cidade de Vitória de Santo Antão e adjacências. Foi com ele que o major Walter Carrocino, então chefe da 2ª Seção/7ª Região Militar, penetrou em 1963 na Galileia, quando maiores eram as atividades subversivas de Julião e Arraes, colhendo informações precisas e de alto valor, do que se passava no principal reduto de agitação rural do Estado. Durante os acontecimentos de 31 de março e dias subsequentes, a sua atividade e dedicação à revolução democrática foi prestimosa e relevante”, frisa o relatório.
Na primeira metade da década de 60, as Ligas Camponesas comandadas por Francisco Julião eram temidas pelos militares que consideravam o movimento um possível foco de resistência armada ao golpe. O quartel-general das Ligas era o Engenho Galileia, na zona rural de Vitória de Santo Antão.
COMPROVAÇÃO
Para o advogado Pedro Eurico, integrante da Comissão da Verdade, os documentos do Dops endossam a versão apresentada pelo ex-major Ferreira em seu depoimento. “O Dops levantava informações tanto de quem era contra, quanto de quem era a favor da repressão. Esses dados sobre o Biu do Álcool demonstram que realmente havia uma relação de colaboração dele com as Forças Armadas e apontam para a veracidade do depoimento de Ferreira de que o empresário integrava o CCC”, avaliou Eurico.
A professora Nadja Brayner, também membro da Comissão Estadual da Verdade, asseverou que os dados levantados nas sessões serão confrontados com os arquivos do Dops. “Temos acesso aos prontuários locais e os levantamentos produzidos pelo Serviço Nacional de Informações (SNI). Esses dados chegaram até nós através da Comissão Nacional da Verdade. Faremos esse cruzamento para avançar na identificação das pessoas citadas pelos depoentes”, concluiu Nadja Brayner.
“O CCC agia para bajular os militares”
Em entrevista à Rádio Jornal, na quarta-feira (26), o ex-major José Ferreira dos Anjos deu mais detalhes sobre a atuação do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) em Pernambuco. O ex-oficial da PM voltou a falar que o grupo de extrema direita concentrava civis, policiais e militares.
“Aquilo era uma equipe de aventura. Eles praticavam atos para bajular os militares”, disse Ferreira.
Além da participação no atentado ao estudante Cândido Pinto e o assassinato do padre Antônio Henrique Pereira Neto, o CCC esteve envolvido nos ataques e pichações à sede da Arquidiocese de Olinda e Recife e ao Teatro Popular do Nordeste. Todos crimes ocorridos em 1969.
O ex-major acusou a existência de excessos. No entanto, argumentou que as Forças Armadas apenas reagiram a atos de terrorismo praticados pelos “subversivos”. A instalação dos Destacamentos de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) em todo o País seria a estratégia oficial de conter as organizações de esquerda.
“As Forças Armadas e as polícias cometeram erros, não há dúvida disso. Houve mortes e torturas, mas contra elementos que eram terroristas”, justificou o ex-major.
O advogado Pedro Eurico, que atuou como advogado de dom Helder Câmara durante a ditadura, lembrou que o verdadeiro terror estava nos quartéis e delegacias. “O maior terrorismo era o oficial. Todos que lutaram pela democracia nessa época recordam bem de onde partia a violência”, rebateu Eurico, durante o debate na Rádio Jornal.
Ainda participou do debate o ex-delegado e advogado da família do padre Henrique, Jorge Tasso de Souza. Tasso recordou que durante a ditadura, vários membros de sua família foram presos ou sofreram pressões por seu envolvimento e relações de amizade com pessoas consideradas de esquerda.
Filha não sabia da ação de Biu do Álcool
O empresário Severino Queiroz de Albuquerque, Biu do Álcool, faleceu em 1993. A filha mais velha dele, a comerciante Maria Auxiliadora Queiroz assegurou que não conhecia as atividades do pai na época da ditadura. A comerciante viveu a maior parte da infância e adolescência fora de Vitória de Santo Antão.
“Eu estudei em colégio interno em outra cidade. Não posso falar sobre o que o meu pai fazia naquela época porque não vivia em Vitória”, argumentou Maria Auxiliadora.
O JC localizou em Vitória de Santo Antão, Mata Sul, o ex-sargento da Polícia Militar Aguinaldo Amorim da Silva. Aguinaldo trabalhou por muitos anos como auxiliar de Biu do Álcool, por determinação do Exército. Com 82 anos, o ex-sargento tem dificuldade em lembrar datas e acontecimentos, mas foi taxativo em dizer que só auxiliou o chefe no ramo de venda de álcool.
“Ele não me chamava para atividades diferentes. Minha responsabilidade era acompanhar o transporte de álcool das usinas para as destilarias”, resumiu o ex-PM.
Aguinaldo revelou ainda que sua cessão ao empresário Biu do Álcool foi uma determinação pessoal do então coronel Antonio Bandeira, comandante do IV Exército no Recife, na década de 60.
“Eu trabalhava na Radiopatrulha e fui deslocado para ficar à disposição dele (Biu do Álcool). O meu salário continuava sendo pago pela Polícia Militar. Depois de algum tempo, voltei para o quartel e me aposentei em 1983. Hoje, vivo muito doente”, lamentou Aguinaldo.
O ex-sargento diz que ouviu falar do assassinato do padre Antônio Henrique Pereira Neto pela imprensa e que Biu do Álcool nunca fez qualquer menção ao caso. “Ële não era homem de muita conversa comigo”, finalizou o militar aposentado.
A atividade de venda de álcool de Severino Queiroz de Albuquerque também foi abordada nos informes reunidos pelo Dops. Em 15 de outubro de 1965, uma fiscalização realizada pela Polícia Rodoviária Federal na distribuidora do empresário localizou um caminhão com 7,8 mil litros de álcool. Os funcionários da empresa apresentaram a nota fiscal da mercadoria e o transporte do combustível foi autorizado.
O oficial responsável pela operação relatou o fato da seguinte forma: “Quanto às supostas irregularidades fiscais (sonegação de impostos), praticadas pelo senhor Severino Queiroz Albuquerque: O senhor Severino é estabelecido à Rua José Augusto, 950, Vitória de Santo Antão, com uma firma de álcool por atacado e exportação, com inscrição no Departamento de Rendas do Interior, sob o número 459. Segundo o chefe da 10ª Região Fiscal, com sede naquela cidade, tem sido exercida uma eficiente fiscalização no comércio de álcool e, dadas as circunstâncias pormenorizadas no informe do PB nº594-BE/2 de 27 de setembro de 1965, do IV Exército, é pouco provável que seja verídica (a denúncia de sonegação).”
O assassinato do padre Henrique, o atentado ao estudante Cândido Pinto e o desaparecimento dos ativistas Fernando Santa Cruz e Eduardo Collier são considerados os casos prioritários pela Comissão Estadual da Verdade. Os dois primeiros casos nunca foram esclarecidos. Os suspeitos apontados pelo Ministério Público não chegaram a ser julgados e os crimes prescreveram.
Já Fernando Santa Cruz e Eduardo Collier foram sequestrados por agentes da repressão no Rio de Janeiro, em 1974. Os dois, que eram militantes da Ação Popular Marxista-Leninista, nunca mais foram vistos.
Fonte – Ministério Público de Pernambuco