Após as graves violações de direitos humanos cometidos pelas ditaduras do Cone Sul, a implementação de políticas públicas de lugares de memória representa um compromisso ineludível dos Estados democráticos da região. Isso porque esses lugares são fundamentais para oferecer uma reparação simbólica às vítimas, contribuir com a construção da memória social do que aconteceu, e tomar medidas para julgar crimes contra a humanidade investigados nos processos judiciais em curso em vários países da região.
Nos últimos anos, tem-se criado em nossos países numerosos sítios de memória em lugares onde cometeram-se graves violações aos direitos humanos, onde essas violações foram resistidas ou enfrentadas, ou que por algum motivo as vítimas, suas famílias ou as comunidades associam com esses eventos, e que são usados para recuperar, repensar e transmitir processos traumáticos, e para homenagear e compensar as vítimas.
Estes lugares têm adquirido um valor pedagógico destacado ao ajudarem a transmitir informação e conhecimento às novas gerações, e para ativar discussões públicas sobre as condições sociais e políticas que favoreceram esses processos históricos. Nesse sentido, foram sinalizados e, até mesmo, criados especialmente lugares de memória em diversas guanições militares e policiais onde funcionaram centros clandestinos de detenção, nos quais foram cometidas privações da liberdade sem o proceso legal, torturas, desaparecimentos e execuções sumárias de líderes políticos ou ativistas sociais. Em muitos casos, além disso, a implementação desses espaços faz parte de projetos que procuram estabelecer distinções, pontes e relações entre o pasado autoritário e os problemas de direitos humanos ainda pendentes em nossas democracias, como a violência policial e tortura nas prisões.
Na verdade, até alguns anos atrás, a preservação dessas propriedades não foi entendida como uma responsabilidade do Estado e objetivo das políticas públicas governamentais. Felizmente, hoje o contexto político regional e institucional é bastante diferente.
Na Argentina, por exemplo, o ex-presidente Carlos Menem (1989-1999) procurou demolir a ESMA, o maior centro clandestino de detenção e emblemático da ditadura, na sua estratégia para “virar a página”. Em 1998, um grupo de familiares de vítimas obteve uma medida judicial que obrigou a preservar o lugar como parte da herança cultural dos argentinos. Em 2004, o ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007) tomou a decisão histórica de transformar o local no Espaço da Memória e Promoção dos Direitos Humanos, expulsando as unidades da Armada que funcionabam no espaço . Como mais um passo na institucionalização dessas iniciativas, em 2011, foi sancionada a Lei 26.691, chamada “Preservação, Sinalização e Difusão de Lugares de Memória do Terrorismo de Estado”, que passou à frente do governo nacional as políticas reitoras nesta área.
No Paraguai, após o relatório da Comissão de Verdade e Justiça, que documentou violações de direitos humanos cometidas pela ditadura de Stroessner, o governo do presidente Fernando Lugo promoveu a criação de uma “Rede de Sítios Históricos e de Consciência”, a fim de preservar arquivos e lugares de valor histórico, obrigando em alguns casos a desocupar as unidades policiais e militares para transformá-las em museu. Um exemplo desta política é a criação de um lugar de memória onde funcionou o Departamento de Investigação da Polícia Capital, usado como prisão clandestina e centro de tortura de presos políticos durante a ditadura.
No Uruguai, varios juízes tomaram medidas de asseguramento em prédios militares, o que na prática significava a proibição de mudar sua estrutura para salvaguardar o seu valor probatório no âmbito dos processos judiciais relativos aos crimes da ditadura. Recentemente, o governo nacional destinou a propriedade onde funcionou o Serviço de Informação de Defesa (SID) que foi um centro clandestino de detenção, para o novo Instituto Nacional de Direitos Humanos, e colocou uma placa em memória das pessoas detidas ilegalmente naquele lugar, como Maria Claudia Iruretagoyena e sua filha Macarena Gelman.
No Brasil, funciona desde 2009 o Memorial da Resistência de São Paulo, e em 2012 a Secretaria de Direitos Humanos propôs ao Mercosul a construção de um memorial do Plano Condor em Porto Alegre, entre outras iniciativas. A Comissão de Anistia é um membro da Rede Latino-Americana de Lugares de Consciência, que reúne representantes de 29 instituições de 11 países da região. Cabe destacar, também, a criação recente por parte da presidente Dilma Rousseff da Comissão da Verdade, a qual oferece um novo impulso para o problema, reforçando a sua estrutura institucional e colocando o Brasil em linha com as ações tomadas pelo seus pares do Mercosul.
Neste contexto regional, no dia 6 de setembro, em Porto Alegre, a Reunião de Altas Autoridades em Direitos Humanos e Chancelarias do Mercosul (RAADDHH) aprovou os “Princípios fundamentais para as políticas públicas de lugares de memória”. Este é um documento elaborado pelo Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH) que reafirma o dever dos Estados de criar e gerenciar lugares de memória e, em particular, de preservar os sítios onde se cometeram graves violações aos direitos humanos.
Este instrumento contém 29 princípios orientadores das políticas governamentais nesta área, que são derivados da obrigação dos Estados de dispor mecanismos eficazes para investigar, julgar e punir os responsáveis por graves violações dos direitos humanos, e para garantir os direito à verdade, memória e reparação para as vítimas, suas famílias e da sociedade em conjunto.
Alguns destes princípios estabelecem níveis mínimos que devem ser levados em conta em qualquer política públicas sobre lugares – sejam iniciativas de agências governamentais ou instituições sociais, ou de parentes das vítimas -; outros são destinados a explicitar obrigações específicas dos Estados. Em particular, propõem pautas para a preservação dos lugares, com destaque no dever de adotar as medidas judicais, legais ou administrativas para garantir a segurança física desses lugares.
Também estipulam critérios para a identificação, sinalização e determinação do conteúdo dos lugares de memória, entre eles, a necessidade de garantir a amplia participação de vítimas, familiares, comunidades locais e diferentes setores da sociedade. Finalmente, se apresentam os princípios para o desenho institucional dos lugares de memória que, por exemplo, destacam a obrigação de contar com marcos legais adequados, assim também como a conformação de equipes interdisciplinares, mecanismos de transparência e participação social em sua gestão.
A aprovação destes princípios é apoiado pela meta regional de recuperar ao mesmo tempo que construir memórias do passado comuns dos países do Mercosul, ligados à coordenação repressiva das ditaduras no Cone Sul e da chamada Operação Condor. Esta linha também se inscreve na recente criação de um grupo técnico intergovernamental para melhorar a cooperação jurídica e administrativa relacionada com as investigações da Operação Condor, e sistematizar, relevar e identificar e desclasificar, de maneira coordenada, os principais arquivos públicos e sociais que existem sobre estes fatos.
Vale lembrar que a Operação Condor foi uma aliança repressiva formada nos anos setenta pelos serviços de inteligência dos países da América do Sul sob ditaduras militares, a fim de combater aqueles que consideravam “subversivos” termo amplo que permitiu incluir uma multiplicidade de sujeitos definidos como inimigos ideológicos. Através de um documento fundador, foram estabelecidas as linhas de ação que levaram à criação de estruturas militares clandestinas, lideradas pela cúpula castrense mas operando com relativa autonomia, e, ao mesmo tempo, a implementação de um sistema paralelo de prisões clandestinas e centros de tortura a fim de receber aos prisioneiros estrangeiros detidos no contexto desta operação.
Através de experiências sociais, governamentais e regionais de preservação e gestão dos lugares de memória, e com a adoção desses princípios, os governos do Mercosul contribuem para aprofundar o processo de integração regional. Isto é assim porque a recuperação e construção de memórias e identidades comuns sobre o passado ditatorial, as políticas destinadas a garantir a não repetição das graves violações dos direitos humanos, e a fixação gradual de um piso comum de direitos e de cidadania, permitem hoje conceber o Mercosul não apenas como um bloco econômico, ou uma aliança de negócios, mas também como uma comunidade política emergente.
Por Victor Abramovich – Secretário Executivo do Instituto de Políticas em Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH)
(**) O IPPDH foi criado em 2009 (Decisão n º 14/09 do Conselho de Mercado Comum do Mercosul) como uma instância de cooperação técnica, investigação aplicada e coordenação das políticas públicas em direitos humanos nos países do bloco regional. Sua sede permanente está na cidade de Buenos Aires, Argentina, e de acordo com o acordo assinado entre o Mercosul e a Argentina terá seu escritorio definitivo no lugar onde funcionou a Escola de Mecânica da Armada, um dos centros clandestinos de detenção mais brutais da última ditadura militar (1976-1983), agora recuperado como o Espaço para a Memória e para a Promoção e Defesa dos Direitos Humanos .