Documento do Exército admitia a tortura

Um deslize da burocracia do extinto Departamento de Ordem Política e Social (Dops) do Paraná permitiu a comprovação de que a tortura era aceita oficialmente pelas Forças Armadas brasileiras como instrumento de obtenção de informações durante a “guerra suja” dos anos 70.

“Guerra suja” é como ficou conhecido na América Latina o combate pelas forças militares aos movimentos de esquerda por vias ilegais.

A informação consta da reportagem de capa desta edição da newsletter “Guia Jurídico”, da “Agência Dinheiro Vivo”.

O órgão foi desativado em 1983. Mas deixou, entre os papéis disponíveis para pesquisa pública, documento sigiloso do Gabinete do Ministro do Exército, que se constitui em verdadeiro tratado sobre técnicas de interrogatório.

Mistura

O documento é de 1971, quando o Ministro do Exército era o general Orlando Geisel.

Nele, misturam-se conceitos psicológicos, técnicas de interrogatório, análises estratégicas sobre o uso da tortura, perfis de interrogados e interrogadores e organogramas definindo áreas de atribuição dos diversos departamentos envolvidos com interrogatórios.

É um verdadeiro manual de organização e método das práticas de interrogatórios. O documento confirma que, efetivamente, a tortura foi utilizada como instrumento oficial da política de repressão.

Tortura utilitária

Nas 37 páginas e em cinco anexos do documento, há uma clara tentativa de separar uma certa, digamos, tortura utilitária (visando a obter informações) de atos de sadismo e descontrole individuais.

A primeira é aceita, embora sob controle dos chefes. A segunda é condenada vigorosamente. Mas não propriamente por razões humanitárias.

Em pelo menos quatro trechos do relatório, admite-se a tortura como elemento do interrogatório.

“As informações obtidas em interrogatório não terão validade nos tribunais caso haja evidências de que foram obtidas através de coação”, diz o documento no capítulo intitulado “Fatores Legais”.

“Se um indivíduo vai ser processado, deve, em primeiro lugar, ser manipulado por criminólogos ou elementos fardados da polícia, isto é, ele só prestará depoimento depois de advertido de sua situação”, explica, num formalismo curioso para a época.

Ressalte-se que a aceitação como elemento de prova de depoimentos colhidos em delegacias ou ambiente militar, que colidia com a tradição jurídica brasileira, foi avalizado na época por um ativo procurador da Justiça Militar, chamado Aristides Junqueira, atual Procurador-Geral da República. O episódio foi denunciado no livro “Tortura, Nunca Mais”.

Continua o documento: “Este procedimento retardará e pode inibir o sucesso do interrogatório”. Razão pela qual “deve ser decidido pelo Governo qual a prioridade a ser dada à utilização dos elementos capturados ou presos, isto é, se dirigida ao processamento judicial, ou se voltada para os interesses das Informações”.

Aparece, então, a recomendação reveladora: “Se o prisioneiro tiver de ser apresentado a um tribunal para julgamento, tem de ser tratado de forma a não apresentar evidências de ter sofrido coação em suas confissões”.

Admitindo a violência

Na página 10, o documento transcreve princípios básicos da Convenção de Genebra, que dispõe sobre tratamento a prisioneiro de guerra. Mas ressalta: “Sob condições de emergência, ou próximo a elas, o Governo pode modificar esses critérios e adotar uma legislação diferente para tratamento dos capturados”.

Na página 18, explica que o interrogador não deve “se inquietar para observar as regras estritas do direito”. “Uma agência de contra-informações não é um Tribunal de Justiça (…). O objetivo de um interrogatório de subversivos não é fornecer dados para a Justiça Criminal processá-lo.

Seu objetivo real é obter o máximo possível de informações. Para conseguir isso, será necessário, frequentemente, recorrer a métodos de interrogatório que, legalmente, constituem violência”.

Os interrogadores

Em várias passagens, há preocupações com o estado de espírito dos interrogadores. Na página 18, o receio é que ele venha a se incomodar com detalhes legais.

“É assaz importante que isso seja muito bem-entendido (que o papel do interrogatório é obter informações, ainda que à margem da lei) por todos aqueles que lidam com o problema, para que o interrogador não venha a ser inquietado por observar as regras estritas dos direitos”.

Para quebrar a resistência do interrogado, o interrogador precisa ter “grande vigor mental e físico”. Nem todos estão mental, moral ou fisicamente aptos para a tarefa (…). Um violento ou sadista é tão pouco adequado quanto um sentimentalista ou fraco”.

Em outro trecho, alerta-se para que os guardas não se deixem sensibilizar por prisioneiros com aparência “infeliz e apavorada”.

“O fato de que aquele mesmo indivíduo, em circunstâncias diferentes, poderia prazerosamente enfiar uma faca nas costas de seu captor deve ser lembrado constantemente”, recomenda o relatório.

 

Por – LUÍS NASSIF

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *