Nunca uma ditadura teve tantos êxitos

Os índios da etnia Aikewara, conhecidos como suruís do Pará, criaram uma comissão da verdade própria para investigar crimes cometidos pela ditadura militar. Os suruís vivem na terra indígena Sororó, que se espalha pelos municípios de São Domingos do Araguaia, Brejo Grande e São Geraldo do Araguaia, no sudeste do Pará, região onde a Guerrilha do Araguaia atuou nas décadas de 60 e 70.Leitores me garantem que nossa ditadura foi um sucesso. Admito. Que linda ditadura tivemos! Dizem que se podia dormir de noite e sair à rua sem medo. Salvo os resistentes ao regime, que eram torturados ou mortos. Mas, explicam-me, a culpa era deles. Quando Nelson Rockfeller visitou o Brasil, em 1969, seis mil “baderneiros” foram “preventivamente detidos” só no Rio de Janeiro. Liberdade, liberdade! Como gosto de números, vou compartilhar alguns aqui, tirados de um dos capítulos mais consistentes que já li, intitulado “O milagre econômico”, do livro, “Estado e oposição no Brasil”, de Maria Helena Moreira Alves. É de arrepiar, o nosso êxito.

A inflação do período militar foi modesta, em torno de 20% ao mês. A dívida externa pulou de 3,9 bilhões de dólares, em 1968, para 12,5 bilhões em 1973. A turma dos camarotes rurais adorava, pois as exportações eram subsidiadas. Mário Henrique Simonsen, um dos intelectuais orgânicos do regime, soltou esta pérola aos porcos: “A partir de 1964, logramos alcançar razoável estabilidade política”. Uau! Tem cada charlatão neste mundo de Deus. Maria Helena Moreira Alves resume: “A política governamental elevou acentuadamente a participação dos membros mais ricos da população na renda global diminuindo a dos 80% mais pobres”. Sem dúvida, um mecanismo eficiente de redistribuição de renda. Para cima. Os números dão uma surra de realidade. Que sucesso. Em 1970, 50,2% dos brasileiros ganhavam menos de um salário mínimo. Em 1972, já eram 52,5%. Que milagre! Apenas 78,8% dos trabalhadores ganhavam até dois salários mínimos. Uma proporção, com certeza, pequena. Um decreto de 1938 estabeleceu o que o salário mínimo devia comprar.

Nossa bela ditadura alterou esses dados. Passamos de 12 para 14 horas de trabalho diário para poder comer. Em 1959, um trabalhador precisava de 65 horas e cinco minutos de trabalho para comprar a cesta básica fixada pelo decreto de 1938. Em 1963, eram 88 horas. Em 1974, 163 horas e 32 minutos. Nenhuma democracia faria melhor. Saltamos para 25 milhões de crianças passando fome. Uma pesquisa revelou que 60% das crianças entrevistadas trabalhava mais de 40 horas por semana. Chamava-se isso de educação pelo trabalho: 18,5% da população entre 10 e 14 anos de idade trabalhava. O efeito pedagógico foi espetacular: 63% das crianças entre 5 e 9 anos de idade, em 1976, fora das escolas. Nunca mais se foi tão longe. Era difícil um país nos bater em analfabetismo ou semianalfabetismo. Tudo isso pela segurança nacional.

A ditadura também mudou a composição dos orçamentos. Uma extraordinária revolução. O da Saúde passou de 4,29% do total, em 1966, para 0,99% em 1974. O da Educação despencou de 11,07% para 4,95% no mesmo período. Em compensação, os três ministérios militares, muito mais úteis à nação, abocanhavam 17,96% dos recursos. Fixamos pena de morte, prisão perpétua, banimento, fechamos o Congresso, controlamos os meios de comunicação, prendemos e arrebentamos, montamos, segundo o general Viana Moog, “a maior mobilização de tropas do Exército”, 20 mil homens para caçar 69 guerrilheiros do PCdoB no Araguaia. Entre 1977 e 1981, foram mortos apenas 45 líderes sindicais rurais. Tivemos míseros 12 mil presos políticos entre 1969 e 1974. Uma ditadura realmente admirável. Tão admirável que conseguiu se autoanistiar. Nenhum torturador foi julgado ou punido. Que êxito!

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