Filhos de pais torturados pela ditadura vão à Justiça

Herdeiros de perseguidos sofrem com problemas psicológicos e querem reparação

Eles não pegaram em armas e sequer sabiam o significado de ideologia nenhuma. Eram muito crianças para isso. Contudo, por força do cenário político da época, tornaram-se personagens involuntários de um dos períodos mais tristes da História recente do Brasil, quando seus pais foram presos ou sequestrados e torturados nos porões da ditadura que se instalou no país com o golpe militar de 64.

Muitos desses filhos amargaram o exílio forçado dos pais até poderem retornar ao Brasil. Tantos outros permaneceram no país, mas não puderam desfrutar da presença do pai, ou mãe, ou até mesmo dos dois, que passaram meses e até anos encarcerados. Outros, ainda, os perderam definitivamente para as torturas da repressão.

Essas são histórias de pessoas, hoje adultas, cuja carga de sofrimento acumulado desde a infância foi eclodindo ao longo dos anos, deixando sequelas. Agora, começam a mover ação judicial contra a União, a quem responsabilizam por seus transtornos psicológicos e tentam reparação financeira por danos morais.

Tânia Cavalcante, 54 anos, filha do oficial de Marinha e ex-preso político Eunício Cavalcante, 79, começou a ter surtos psicóticos aos 31 e já se submeteu a três internações e tratamentos.

Laudo médico anexado à ação judicial movida pelo advogado João Tancredo atesta que ela sofre com alucinações verbais, depressão e delírios persecutórios (crença de estar sendo vítima de conspiração, traição, espionagem, perseguição).

Segundo o pai, a origem dos males psicológicos da filha está nas prisões dele e em sua vida de clandestinidade.

“Quando ela surta, diz que sou descuidado e que os agentes da ditadura estãopreparados para desaparecerem comigo. Fala que estamos enganados por acreditar que os militares não vão mais torturar e matar aqueles que se opuserem ao regime”, conta Eunício Cavalcante.

Internada quatro vezes

Narciso Gonçalves é outro oficial da Marinha preso devido ao golpe militar de 64 e cuja filha, uma médica, passou a apresentar problemas psicológicos somente anos mais tarde.

“O primeiro surto ocorreu aos 20 anos de idade e ela já foi internada quatro vezes. Quando está fora de si, acredita que os carros estacionados na rua estão cheios de agentes da repressão vigiando a nossa casa”, revela Narciso, pedindo que a filha não seja identificada.

“Não sei se ela pretende pedir reparação na Justiça, mas é um direito dela”, argumentou o pai.

Eunício Cavalcante acredita que problemas enfrentrados pela filha, Tânia, tiveram origem com suas prisões | Foto: Fábio Gonçalves / Agência O Dia

Roupas do pai manchadas de sangue

Em 1966, Tânia tinha 8 anos e morava com os pais e três irmãos pequenos no Morro do Guarabu, na Ilha do Governador. Ela conta que eram 5h quando pancadas fortes na porta assustaram toda a família. O então sargento da Marinha Eunício Cavalcante abriu a porta e foi surpreendido por dois homens de terno que apontavam pistolas para o rosto dele.

Dois homens entraram na casa e outros três permaneceram do lado de fora. “Eles nos arrastaram para fora da cama (as crianças), reviraram tudo, quebraram tudo e depois de horas levaram meu pai algemado”, relembra Tânia.

Ainda segundo ela, uma hora depois, a família pediu autorização para o filho de 9 anos ir comprar pão. “A cena nunca me saiu da cabeça: meu irmão descendo o morro com um agente o escoltando e apontando arma para a cabeça dele”, conta.

“Visitávamos meu pai na prisão, sem tocá-lo. Um dia corri para tentar abraçá-lo e soltaram cachorros em cima de mim. Por pouco não fui mordida. Minha mãe pegava roupas do meu pai para lavar. Em casa, a gente via que muitas delas estavam com sangue”, narra Tânia, que se formou em Educação Física e é massoterapeuta.

Crianças de 4 e 5 anos de idade assistiram às torturas da mãe

Um dos casos mais emblemáticos da época da repressão política é o da família Teles. Cesar e Maria Amélia eram do PCdoB. Em 1972, ao ser preso, o casal tinha dois filhos: Edson, de 4 anos, e Janaína, de 5.

Segundo a família, no dia seguinte, os agentes voltaram à casa e levaram as crianças e a tia delas, Criméia Alice Schmidt de Almeida, grávida de sete meses. Janaína e Edson viram a mãe sendo torturada.

A tia também sofreu bárbaras torturas — e seu marido, o guerrilheiro Andre Grabois, foi morto no Pará.

“Quando eu era torturada, o bebê tinha soluço na minha barriga. Até hoje meu filho tem essas crises de soluço e problemas gástricos”, conta Criméia.
O filho, João Carlos, 40 anos, entrou com ação na Comissão de Anistia pedindo reparação financeira e ganhou a causa.

O advogado Paulo Henrique Fagundes, do Grupo Tortura Nunca Mais, já impetrou ação pedindo reparação financeira para Luiz Felipe Monteiro, filho de Lyda Monteiro, morta num atentado a bomba, e estuda o caso de Felipe Magalhães, filho da guerrilheira Vera Sílvia Magalhães.

 

Fonte – O Dia

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