‘O que importa é criarmos uma grande rede protetiva da democracia’, diz Coordenador da comissão
Entre prateleiras . O ex-procurador Cláudio Fonteles no Arquivo Nacional: “Pedimos ao ministro da Defesa que nos venham esclarecimentos sobre dados concretos. Houve diálogo franco” Givaldo Barbosa / Givaldo Barbosa/19-12-2012Ex-procurador-geral da República, Cláudio Fonteles mergulha nos papéis do Arquivo Nacional duas vezes por semana. Com milhares de documentos, quer recriar a ação da ditadura militar na violação de direitos humanos. Produziu mais de uma dezena de análises. “Redescobri os arquivos”, diz ao GLOBO o coordenador da Comissão da Verdade, cuja meta é eliminar o risco de outro regime militar no país.
Que balanço o senhor faz deste primeiro ano, na verdade, sete meses da Comissão da Verdade?
Um balanço bem positivo. O grande propósito foi estabelecer um alto diálogo participativo com a sociedade. E conseguimos atos concretos nesse sentido. Viajamos por diversas partes do país, debatemos com a sociedade e com instituições oficiais sobre o período, tendo como objetivo que, nunca mais, nós, brasileiros, tenhamos de viver para nossos conflitos uma solução de Estado ditatorial militar, que é truculento, violento e assassino. Para isso, importa que criemos uma grande rede protetiva da democracia.
Como o senhor vê a restauração de nomes atacados na ditadura, como deputados cassados que voltaram ao Congresso, e a recuperação de espaços usados pelo regime, como a Casa da Morte de Petrópolis, que está sendo desapropriada?
Sobre isso (Casa da Morte), mandei ofícios ao governador Sérgio Cabral e ao prefeito Eduardo Paes. Assim como para o governador de São Paulo e o do Rio Grande do Sul, onde havia também uma casa da morte, para que esses espaços, no passado porões da ditadura, sejam transformados em áreas em que a sociedade se manifeste, com atitudes concretas de cinema, teatro, debates, em defesa da democracia.
A ocupação desses espaços funciona como vacina?
Não tenho a menor dúvida. E, mais do que vacina, é para encorajar as pessoas, que saiam dessa letargia e venham conhecer, profundamente, o quão brutal, terrível e tenebroso é o Estado ditatorial militar.
A Comissão já falou da dificuldade de receber documentos por parte dos militares. Como está essa relação?
A relação é de diálogo. Pedimos ao ministro da Defesa (Celso Amorim) que nos venham esclarecimentos sobre dados concretos, pontuando situações concretas. Houve diálogo muito franco com o ministro e com os comandos militares. Isso foi feito recentemente. Há um prazo. E a gente aguarda que essas respostas venham pontuando esclarecimentos.
As primeiras respostas dos militares davam conta de que os documentos haviam sido queimados ou destruídos…
A Comissão marcou posição clara em três pontos. Primeiro, mostrou que a tese, sustentada pelo (ex-) ministro (Nelson) Jobim, da Defesa, de que foi legal o procedimento de eliminação de documentos, não estava certa e de que isso era ilegal. O outro ponto diz respeito à correção do registro de morte, como no caso de Vladimir Herzog. E a outra posição foi mostrando que não existem dois lados.
A partir dos depoimentos colhidos, é possível entender a cadeia de comando dos militares? Há colaboração nos depoimentos de militares?
Minha área não é de coleta de depoimentos, mas a prova documental. Estou toda a semana no Arquivo Nacional, mergulhado lá. São provas até então secretas, pelo próprio sistema ditatorial militar. Mas temos também as equipes que se dedicam mais à coleta de depoimentos.
O senhor recebeu os arquivos do ex-comandante do DOI Julio Molinas Dias, morto recentemente em Porto Alegre?
Sim, e estou trabalhando com esses documentos. Não posso adiantar assim porque a matéria não está fechada, para usar a linguagem jornalística (risos).
É o único acervo de documentos particulares que o senhor obteve?
Fora dos arquivos públicos, só recebi este. Estamos trabalhando no Arquivo Nacional e no Dops de São Paulo também.
E os arquivos do major reformado Sebastião Curió sobre a Guerrilha do Araguaia?
São arquivos privados. É preciso primeiro criar toda uma grande estrutura e depois ver as medidas a serem adotadas.
No caso Curió, esses documentos têm interesse público?
A documentação que estou avaliando da Operação Araguaia é enorme. Tem um acervo do Serviço Nacional de Informação (SNI) e ainda estou montando esse quadro. Depois de ver essa produção própria do SNI, do Cenimar (Centro de Informações da Marinha), do CIE (Centro de Informações do Exército), posso casar com os documentos existentes com pessoas. Minha primeira rede de abordagem é criar um quadro a partir desses grandes centros de informação aos quais essas pessoas se vincularam. Depois, posso complementar com alguma prova existente em documento particular.
Qual será o desafio deste próximo ano para a Comissão?
Não vamos esmorecer. Até então, eu tinha uma visão equivocada de um arquivo público. Mas nunca é tarde para se aprender na vida. Minha ideia de arquivo era uma coisa de papel imprestável. Até pleonasticamente, “arquivo morto” não tinha nenhum significado e jazia em um espaço de depósito. Não é nada disso! Aprendi que ali há uma fonte inesgotável de produção de conhecimento. Quero me manter entusiasmado com isso até depois que a Comissão acabar. Porque a Comissão termina, mas continuamos defendendo a democracia.
Como vê as críticas de setores militares de que a Comissão é um revanchismo?
Respeito a pessoa que pensa assim, mas não é isso. Não há dois lados, nem revanchismo. Temos de cumprir a lei, e ela diz que o Estado ditatorial militar brasileiro violou gravemente os direitos da pessoa humana por seus agentes públicos.
Fonte – O Globo