Mércia Albuquerque – 10 anos sem a advogada da Liberdade!

Em 29 de janeiro de 2003 o Brasil perdia uma incansável guerreira da liberdade, a advogada Mércia Albuquerque. Atuou em cerca de 500 casos em defesa de presos políticos na ditadura civil-militar, entre 1964 e 1985.

Um fato presenciado então pela recém formada em Direito, em dois de abril de 1964, na Praça de Casa Forte em Recife, foi determinante para sua opção de advogada dos acusados de subversão pelo regime militar: a tortura pública de um velho militante comunista, Gregório Bezerra, pelo exército brasileiro. Diante da bestialidade humana de farda e testemunhada só havia um caminho a ser trilhado – a defesa incondicional dos perseguidos pela repressão ditatorial.

Participou ativamente desde os primeiros tempos da instalação do regime de exceção, da formação e articulação de uma rede informal de advogados que defenderiam os presos políticos: sindicalistas, trabalhadores rurais, estudantes, militantes de partidos de esquerda, lideranças dos movimentos sociais e familiares dos presos políticos.

Essa rede informal de advogados possuía articulações nacionais. Para elaborar as defesas, impetrar os recursos jurídicos, analisar os milhares de processos, seria impossível a atuação individual. Só um esforço profissional e político coletivo daria conta de tentar frear a sanha repressora da ditadura em sua dimensão jurídica e repressiva. Esse trabalho foi ainda mais difícil com o fim do habeas corpus a partir da edição do AI-5 em dezembro de 1968.

A perseguição, a intimidação, e mesmo o isolamento social marcaram a vida destes profissionais da liberdade nos chamados “anos de chumbo”. Esses fatos foram registrados pela Dra Mércia Albuquerque como uma forma de desabafo e de preservação da sanidade diante de tempos insanos, em cartas, reflexões e poemas, formando um impressionante acervo que representa um retrato sensível de uma época de terror estatal numa sociedade castrada e atemorizada.

Diversas vezes sequestrada pela polícia, Dra Mércia Albuquerque, foi levada sem ruma pelas madrugadas recifences em camburões onde se misturavam meganhas e empresários, que juntos vociferavam impropérios de baixo calão a fim de agredirem secretamente uma defensora dos direitos humanos. Presa sem mandato juducial, chamada a depor sobre defesas realizadas, ameaçada de morte mesmo na gravidez, Dra Mércia não sucumbiu. Ao lado de seus colegas continuou a exercício da profissão nas condições mais duras.

Essa escolha, que abraçava igualmente todos os presos políticos defendidos por ela, independente de suas opções partidárias e de serem da resistência pacífica ou da luta armada, atingiu também a sua família, particularmente o seu único filho Aradin, em virtude da ausência da mãe, que teve que se dedicar integralmente na defesa dos seus clientes. Estes que nem sempre pagavam seus honorários, por estarem presos. E seus familiares que pagavam quando podiam…

Advogada, mas também, segundo seus relatos, tantas vezes mãe e confidente dos perseguidos, torturados, ensandecidos e apavorados opositores da ditadura. Igualmente solidária com os familiares dos presos e desaparecidos políticos. Resposta a um apelo desesperado de uma mãe imersa na dor da incerteza do paradeiro de um filho. Última esperança de uma companheira privada do seu namorado ou marido que desaparecera nos porões do terror. Notícias em que se alternavam a alegria de um informação do parente preso, e tantas tristezas no relato da morte do filho, do marido, do pai…

Encontro cara a cara com a morte – nos necrotérios diante dos jovens cadáveres seviciados – nos cemitérios na exumação de um suposto indigente para ser sepultado secretamente pelos familiares.

Encontro constante com a repressão, seja no DOPS, no DOI-CODI, na Casa de Detenção do Recife e nas inúmeras sessões dos Tribunais Militares e seus famigerados IPM’s. Como da vez que diante do diretor da Casa de Detenção, defendendo um cliente, ouviu a pergunta        “  – Por que se importa com esses comunistas ? Eles são uns animais – como cavalos ! “, ao que retrucou prontamente, “ Diretor, o senhor cuide dos seus, que eu defendo os seres humanos ! “

Falar e rememorar a trajetória profisional, política e ética da Dra Mércia Albuquerque é um ato de reparação histórica, não só com ela, mas com toda uma geração de advogados, em sua maioria anônimos, que combateram a repressão nos tempos mais difíceis. É também falar do presente, pois a luta pelos Direitos Humanos é cotidiana e sempre premente.

Homenagear a luta da Dra Mércia Albuquerque é lembrar que a Liberdade é algo que se conquista !

 

Felipe Gallindo – Historiador

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