Torturado por agentes do regime militar ainda bebê, Carlos Alexandre passou a sofrer de fobia social e nunca se recuperou do trauma. Na semana passada, aos 39 anos, ele se suicidou
Ele fora anistiado e recebeu uma indenização de R$ 100 mil. Do total, R$ 40 mil foram gastos em uma cirurgia para corrigir o maxilar deslocado por um militar
Pouco antes de atentar contra a própria vida ao ingerir medicamentos em excesso, Carlos Eduardo Alexandre escreveu um e-mail para um amigo à 1h30 do sábado 16. Nele, justificava o ato, assumindo não enxergar mais perspectivas na vida. Queixava-se do pouco dinheiro que ganhava com o trabalho e listava os bens que deixaria: um computador, um HD externo, uma coleção de histórias em quadrinhos e outra de CDs. Na sequência, consumou a ação fatal. Cacá, como carinhosamente era chamado pelos familiares, suicidou-se aos 39 anos, no apartamento em que morava com a mãe e a irmã, em São Paulo. Mais correto, porém, é afirmar que a vida lhe foi tirada pelos excessos do regime ditatorial que mancharam de sangue a história do País entre 1964 e 1985. “Ele foi suicidado, na verdade, uma vez que a morte dele foi a consequência de todo o processo de angústia que ele viveu nesses anos todos após ser torturado”, afirma seu pai, o jornalista e cientista político Dermi Azevedo, que mora em Belém, no Pará.
A cena é kafkiana, mas aconteceu com Carlos Alexandre. Em 14 de janeiro de 1974, com apenas 1 ano e 8 meses, ele recebeu choques elétricos e foi vítima de outras sevícias nos porões do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), em São Paulo. Ali, ele, a mãe, a pedagoga aposentada Darcy Angozia, e o pai foram torturados pelos agentes da ditadura. “Cacá apanhou porque estava chorando de fome. Os policiais falavam que ele já era doutrinado e perigoso”, revelou Darcy, em 2010, em entrevista exclusiva à ISTOÉ. A vida de Carlos Alexandre jamais voltaria a entrar nos eixos depois desse episódio. Em meio à pressão por crescer em um ambiente em que seus pais eram tachados de bandidos e terroristas pela vizinhança e vigiados pelos militares, ele desenvolveu um transtorno conhecido como fobia social. Ao sofrer dessa perturbação, a pessoa, temendo ser rejeitada e humilhada, torna-se reclusa. Na infância, o garoto fazia birra para não ir à escola, porque não queria interagir com outras crianças. Foi na adolescência, porém, entre os 13 e os 20 anos, que a situação piorou. Passou esse período, praticamente, dentro de casa. Acessos de fúria o faziam quebrar o que via pela frente. Na época, também tentou o suicídio.
MEMÓRIAAcima, Carlos, aos 3 anos, com a família. Seu pai, Dermi (à esq.)publicou um texto em homenagem ao filho no Facebook
Carlos Alexandre começou a descobrir o seu passado por volta dos 10 anos de idade – as histórias eram reveladas aos poucos pelos pais. Desde então, ele frequentou sessões de psicoterapia. “Os efeitos da ditadura não passam para quem saiu da tortura”, diz Ivan Seixas, coordenador do escritório paulista da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Já na fase adulta, Carlos Alexandre prestou serviços de informática como autônomo. Em 2010, foi anistiado. Recebeu uma indenização de R$ 100 mil e gastou R$ 40 mil em uma cirurgia para corrigir o maxilar, que fora tirado do lugar por um militar que o levou de casa. “O ex-delegado Josecyr Cuoco, que participou da tortura do Cacá, vende doces e salgados em Santos”, lembra o pai, que, aos 63 anos, preferiu não ir ao enterro do filho. Achou melhor guardar a imagem de Carlos Alexandre vivo. Para homenageá-lo, o jornalista escreveu um texto publicado em sua conta no Facebook. “Meu filhinho, você sofreu muito. Só Deus pode copiosamente banhar-te com a água purificadora da vida eterna”, diz um trecho.
Fonte – Isto É