O 31 DE MARÇO E AS MÃOS DO GATO

Noves fora os furibundos defensores de tudo o que aconteceu nos 21 anos do regime militar, importa lembrar: a opinião pública não reagiu ao golpe. Pelo contrário, parte da população apoiou,  a maioria apenas assistiu. Insurgiram-se muito poucos, mesmo assim, retoricamente. O governo João Goulart caiu feito um castelo de cartas, em parte por obra e graça do então  presidente, que desautorizou a resistência armada.

Ainda no palácio das Laranjeiras, no Rio, impediu o ministro da Aeronáutica de mandar bombardear com petardos incendiários as ainda insipientes tropas do general Mourão Filho, entre Juiz de Fora e  Petrópolis. Inocentes que habitavam a região seriam queimados, coisa para ele inadmissível. Mandou regimentos da Vila Militar subirem a serra, mas eles aderiram ou voltaram sem disparar um tiro. De São Paulo, o II Exército  apoiou a rebelião e lançou-se na estrada para o Rio. No resto do país, a mesma coisa.

Jango percebeu o perigo de permanecer na antiga capital, já dominada pelos insurgentes. Tentou ficar em Brasília, mas não contou com a   guarnição local. Seguiu  para Porto Alegre, onde o general responsável só podia garantir sua segurança pessoal por poucas horas: a tropa rebelara-se também no Rio Grande. Assim, depois de voar para uma de suas fazendas, em São Borja, um dia depois acabou no Uruguai, sempre preocupado  em não ser  responsável pelo derramamento de sangue. O Brasil deve ao ex-presidente esse gesto.

Hoje, 49 anos depois, com quase todos os personagens daquele 31 de março já mortos, a pergunta que se faz é se poderia ter sido diferente, não em termos de guerra civil, porém politicamente. Afinal, mesmo contaminados pela propaganda anti-comunista, os militares rebelados também não desejavam o conflito armado. Bastou a demonstração de força, com a colaboração da maioria do Congresso, para que tudo se resolvesse mais ou menos  conforme a Constituição vigente, apesar de a luta pelo poder haver conduzido a iniciativas inconstitucionais e violentas, como a cassação de mandatos e as prisões ilegais.

O que veio depois pouco teve a ver com as intenções iniciais dos golpistas, fora certos bolsões radicais que nessas horas assumem iniciativas extremadas, quando estimulados e  não contidos.

É preciso que quase  meio século tenha  transcorrido  para a exegese ainda não  definitiva  da transformação de uma mera quartelada em ditadura cruel e ilimitada. A verdade é que por trás da espada acirrou-se a ambição das elites retrogradas e infensas às reformas sociais que atabalhoadamente  vinham sendo propostas por João Goulart. Os militares, boa parte por ingenuidade, outra por ignorância, foram as mãos do gato com que as elites econômicas tiraram as castanhas do fogo. Houve participação externa, é claro, com os Estados Unidos e  as multinacionais se destacando, mas,  no fundo,  a responsabilidade ficou mesmo com industriais, banqueiros, grandes comerciantes, empreiteiros, especuladores, barões da mídia e demais espécimes nacionais  da fauna que,  de amedrontada  com a sombra das reformas, transmudou-se  em ave de rapina. Ainda há dias um líder trabalhista denunciou a participação da FIESP na banda mais podre do regime instaurado, estimulando a  perseguição e até a tortura nos adversários do golpe. Talvez não fosse a FIESP, como instituição, mas foram montes de seus integrantes.

Os sucessivos generais presidentes que se sucederam  tiveram culpa, é óbvio, pois  preferiram seguir o roteiro preparado pelas forças ocultas atrás do trono, sem reagir. Assim, o regime foi perdendo setores de opinião que o  tinham aceitado: a Igreja, a classe média e  a imprensa, em maioria, passaram de adeptos a indiferentes  e, depois, a adversários. Até parte do empresariado engrossou a fila da discordância e da resistência.

Os 50 anos do 31 de  março merecem, antes de  completados,  uma análise que poderia começar pela leitura dos jornais da época da eclosão do movimento militar até sua débâcle nos anos oitenta.

 

Por Carlos Chagas

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