“Ser reprimido, ser torturado, ser preso, ser assassinado é o resultado de você fazer parte de uma luta contra o sistema. E eu não lutei contra os militares, eu não lutei contra os generais da ditadura. Eu lutei contra o sistema capitalista”. Essa é a afirmação de Derly Carvalho, morador do ABC paulista e ex-militante da Ala Vermelha, sobre seu engajamento durante os anos de ditadura militar (1964-1985).
Centro de Memória do Grande ABC colhe depoimentos de militantes que lutaram contra o regime e prepara materiais para os 50 anos do golpeJunto com Derly estiveram outros depoentes, que compartilharam suas experiências de luta, no dia 27 de março, em evento promovido pelo Centro de Memória do Grande ABC para marcar os 49 anos do golpe militar no Brasil e da resistência do povo da região. Mais de 200 pessoas, entre os quais militantes sindicais, de partidos políticos, da Igreja, além de estudantes, estiveram presentes no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André e Mauá, em Santo André (SP), para ouvirem histórias como as do padre Rubens Chasseraux, preso em cinco ocasiões e torturado pelo delegado Sérgio Fleury.
Feridas da repressão
Padre Rubens Chasseraux, preso cinco vezes – Foto: Gustavo Xavier
Padre Rubens foi preso pela primeira vez em 1968, logo após o ato do 1º de maio. Uma das detenções foi motivada por ele ter lido trechos bíblicos do livro de Isaías, os quais tinham como tema a reprovação de Deus às injustiças praticadas contra o povo. Também foi preso quando militantes políticos assaltaram, certa vez, um automóvel da empresa Swift e, noutra, quando tomaram um carro de polícia. “Já estava ficando acostumado. Porque tudo o que acontecia no ABC, o padre Rubens era o culpado”, conta o padre, embora ele mesmo nunca tenha tocado numa arma. Em todas as prisões, foi torturado. “Mas as torturas físicas não me incomodavam tanto. O que me incomodava era a tortura moral e a tortura psicológica. Essas, sim. Uma delas, inclusive, quase me levou ao suicídio”, relata padre Rubens.
Outro depoimento foi o de Hélio Jerônimo da Silva, irmão de Raimundo Eduardo da Silva, militante da Ação Popular (AP), que foi assassinado nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Raimundo era morador de Mauá, num dos bairros mais atingidos pela repressão, o Jardim Zaíra. Devido a um acidente, teve que passar por cirurgia e, enquanto ainda estava internado, os agentes da repressão ficaram sabendo de seu paradeiro e foram pegá-lo. Hélio lembra que os agentes não tinham ordem oficial para levar Raimundo e, enquanto foram providenciar o documento, Hélio e um amigo montaram um esquema para tirar o irmão do hospital. Porém, o cerco da polícia já estava montado e Raimundo foi levado do hospital para ser preso, torturado e assassinado. Anos depois, na exumação do corpo, a família descobriu que os torturadores tinham tampado o tubo da sonda que Raimundo mantinha após a cirurgia.
A lembrança das atrocidades cometidas pelas forças repressivas emerge ao lado das conquistas alcançadas pelos militantes organizados. “O resultado desta luta foi a democracia que nós temos hoje. E não é a democracia que o povo precisa, não é ainda a democracia do socialismo. Mas valeu a pena toda esta luta, porque nós conquistamos os grandes direitos dos trabalhadores. Quebramos os paradigmas da sociedade anterior. Nós rompemos preconceitos. Nós abrimos caminhos para que as novas gerações possam cometer menos erros do que nós cometemos e conquistem melhores resultados do que este que está aí”, avalia Derly Carvalho.
Memória pedagógica
Evento reuniu cerca de 200 pessoas em Santo André – Foto: Gustavo XavierO encontro faz parte de uma série de esforços da recém-criada Associação Centro de Memória do Grande ABC, reunidos sob o projeto Acorda ABC. Entre seus objetivos, estão os de esclarecer crimes cometidos pela ditadura, buscar o perfil dos torturadores e suas ligações atuais com empresas privadas e instituições públicas.
Devem ser registrados os depoimentos de mais de 100 pessoas que viveram no ABC durante a ditadura militar e que se engajaram contra o regime. Está previsto um livro sobre os movimentos de resistência na região, o “Livro Vermelho do ABC”. Também deve ser editada uma cartilha pedagógica a ser entregue nas escolas públicas. Além de um documentário que será produzido a partir dos depoimentos. O projeto oferecerá, ainda, subsídios para a Comissão Nacional da Verdade.
Aparecido Faria, um dos coordenadores do projeto e ex-militante da AP que esteve exilado durante os anos 1970, conta que devem ser realizadas mais ações públicas nos próximos meses. Para o dia 11 de setembro está previsto um grande ato reunindo chilenos e brasileiros para lembrar os golpes militares em ambos os países. “Devemos passar essas experiências aos jovens no sentido de que fatos semelhantes jamais voltem a acontecer”, conclui Aparecido.
Fonte – Brasil de Fato