‘Infância clandestina’: a longa sombra da ditadura sobre o cinema argentino

A partir de quantos lugares é possível olhar a tragédia da ditadura militar argentina que arrasou o país entre 1976 e 1983? Quantos filmes já foram feitos para abordar e processar a dor e quantos ainda restam para serem feitos?

Quando parece que já se disse tudo o que se pode dizer, o cinema sobre a ditadura volta a remexer as velhas feridas e, contra prognósticos voluntariamente agoureiros, demonstra uma vez mais que ainda há muito o quê dizer.

A última prova de que a ditadura segue estendendo sua longa sombra sobre o cinema argentina é “Infância Clandestina”, a obra-prima de Benjamim Ávila, protagonizada por Natalia Oreiro e César Troncoso.

Como ocorreu em seu momento com “A história oficial” (1985) e com “O segredo de seus olhos” (2009), ambos vencedores do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em Hollywood, e, até o momento, os melhores expoentes do “cinema da ditadura”, o que importa em “Infância Clandestina” é o ponto de vista desde o qual se conta a tragédia.

Enquanto que em “A história oficial”, o drama é protagonizado pela esposa de um militar que havia se apropriado de uma das crianças subtraídas dos detidos nos campos de concentração, e em “Segredo de seus olhos” a ditadura aparece tangencialmente em uma violenta história de amor transcorrida nos corredores judiciais da Argentina, nos anos de chumbo, em “Infância Clandestina”, o núcleo do drama se centra nos olhos de Juan, um menino de onze anos, filho de uma família de militantes da organização armada Montoneros, que regressaram clandestinamente ao país em 1979 com o objetivo de resistir ao regime.

O episódio que desencadeia a ação não é banal: a famosa “contraofensiva” da organização Montoneros foi a última pedra de toque de uma estratégia fracassada que colocou a luta armada acima da luta política, com catastróficas consequências para o peronismo de esquerda que escolheu o caminho das armas no início dos anos setenta.

A medida foi tomada no exterior e implicou o retorno, através das porosas fronteiras argentinas, de centenas de militantes que regressaram ao país com o objetivo de continuar a luta contra a ditadura e que acabaram com seus ossos nos campos de extermínio ou nas emboscadas preparadas pelo aparato de inteligência do Estado. A trágica decisão implicou o fim dos Montoneros como organização armada e permitiu ao governo do general Videla falar pela primeira vez de “vitória” em sua desapiedada luta contra o “terrorismo”.

Diante dos olhos de Juan se desenrola um drama que ele não pode compreender, mas que implica um jogo perigoso com a identidade, já que o menino se vê obrigado a mudar seu nome na escola e a sustentar uma história familiar falsa, um jogo cujo limite é a morte e cujas implicações ele não pode compreender plenamente.

A partir desta trama, que reflete tangencialmente a história do próprio diretor, o filme entra em um jogo onde as perguntas são mais importantes que as respostas e que abandona logo o politicamente correto para se perguntar sobre a validade das violentas lutas políticas dos anos setenta, arrastando o espectador a uma inesperada reflexão.

A primeira imagem que explode pelos ares é a dos combatentes armados da guerrilha. Contra todo romantismo, o filme mergulha na intimidade e na loucura que implica ter tomado uma decisão sobre esse estilo para a vida de uma família, fazendo com que o público se pergunte: eu teria feito o mesmo no lugar deles? Valia a pena levar as coisas a este extremo?

As respostas provavelmente não serão as mesmas para todos os que entrarem a fundo no filme e, em muitos casos, talvez sequer mereçam ser chamadas de “respostas”, já que se parecem mais com uma interrogação gigante, aberta eternamente.

Mas o que resulta evidente é o enorme compromisso a partir do qual se construiu o relato, um compromisso com a história de todo o continente e com um passado que segue interrogando o presente e demonstrando que as feridas ainda estão abertas e que às vezes só é preciso o bisturi de um bom diretor de cinema para que voltem a palpitar lacerantes ante os olhos de um público contemporâneo que, em muitos casos, não tinha sequer nascido quando todas essas histórias aconteceram.

 

Por Oscar Guisoni – colunista da Carta Maior

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