A verdade e o transe

A falsa conciliação, própria dos amigos da ditadura, não deve mais ser aceitável no estágio atual da democracia brasileira

À medida que os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade avançam, chegamos ao momento histórico necessário da colocação em cena pública, para a contemplação e elaboração de quem puder ver, da natureza dos horrores e violências de toda ordem cometidos por agentes de Estado no período ditatorial que tomou o Brasil por 20 anos, de 1964 a 1984.

A clara nomeação da violação dos direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro começa a se configurar com nitidez a partir do trabalho, muito adiado, do Estado Democrático de Direito de hoje. De fato o Estado democrático tem a obrigação ética e legal, para garantir a própria legitimidade, de assumir a violência histórica cometida sistematicamente contra brasileiros pela ditadura militar local, sincronizada com os movimentos da guerra fria global, definida pela muito ativa influência norte-americana.

Neste momento, o processo de elaboração democrática da verdade brutal brasileira é novamente ameaçado com algo do mesmo transe do passado que permitiu as violências, e que não passa, para quem é apegado a ele. É certo que alguns homens deverão gritar em público contra o “revanchismo dos derrotados”, ou seja, a própria Comissão Nacional da Verdade. Esse estado de histeria interessada, que visa a barrar o processo histórico de nomeação do terror de Estado brasileiro, deseja suspender as discriminações, impedir o desenvolvimento da consciência pública e crítica sobre a história nacional e impedir que criminosos sejam oficialmente reconhecidos. Na psicanálise clássica de Freud o momento de elaboração mais profunda de um campo de sintomas implica sua repetição intensa, como real para o neurótico, com o próprio analista. Os criminosos que estão sendo nomeados hoje pela democracia brasileira devem tentar repor os termos do passado, agarrando-se a seu transe que lhes permitiu a barbárie, visando a impedir o desenvolvimento do presente. E o do futuro. E é necessário que o trabalho de elaboração coletiva ultrapasse seu sintoma.

Embora a universalização da tortura como prática política para a sustentação do regime já a partir de 1964 – muito antes do estabelecimento de qualquer oposição armada, que surgiu em 1967 – seja amplamente relatada, e reconhecida pela comissão; embora homens não ligados a grupos que confrontaram a ditadura de modo armado, como o jornalista Vladimir Herzog e o ex-deputado Rubens Paiva, tenham se apresentado pessoalmente em unidades do Exército, e tenham sido rapidamente torturados e assassinados, com os agentes públicos mentindo de modo sistemático sobre o falso suicídio de Herzog e, sempre mentindo, fazendo desaparecer o corpo de Paiva de modo que a família jamais tivesse notícia de seu paradeiro; embora se multipliquem os relatos de assassinatos em dependências do Exército – pelo menos 50 mortes entre 1970 e 1975 apenas no DOI-Codi do II Exército, de São Paulo – além dos relatos bárbaros de torturas didáticas para formação de torturadores, de estupros, da presença de crianças nos porões do terror; embora, já no adiantado da hora de 1981, uma bomba tenha explodido no colo de um sargento e ferido gravemente um capitão do Exército que preparavam um atentado em um show de 1º de Maio onde se encontravam milhares de pessoas; embora o Brasil ainda precise dizer com clareza o que fez, e quem o fez, com os corpos de 354 brasileiros executados e desaparecidos; apesar de tudo isso, e provavelmente ainda mais, homens ligados àquele mundo ainda insistem que o País nada deve fazer a respeito do reconhecido estado de terror da sua ditadura.

Não precisamos dos argumentos metafísicos psicanalíticos, por mais sofisticados e verdadeiros que sejam, a respeito do retorno no real daquilo que não pode ser dito ou elaborado. Apenas o argumento racional que baseia as ações e as leis internacionais sobre direitos humanos é suficiente para sabermos bem o que está em jogo: é a certeza da inimputabilidade, a garantia segura de impunidade, que faz com que o agente público possa cometer atos de terror contra o humano, como os que ocorreram no Brasil. O torturador e o assassino, agente de ditaduras, existem por se acreditarem ao abrigo de toda lei. Por isso esses crimes têm que ser radicalmente imprescritíveis. Só assim a humanidade chegará um dia a punir e a produzir uma política sem o artifício do terror.

O argumento usado para confundir o processo é sempre o da Lei da Anistia, autoconcedida pelo regime ditatorial aos seus agentes. Essa lei foi aprovada pelo Congresso manietado pela própria ditadura, contra a totalidade dos votos da oposição, e não anistiou nenhum opositor condenado, de modo que todos, que não foram mortos, cumpriram as penas por seus crimes, reais, ou supostos. Apenas os torturadores, e suas cadeias de comando e de apoiadores, não conheceram punição por suas violências e terrores. Pelas leis de direitos humanos internacionais, que o Brasil assina, leis de anistia estabelecidas pelas próprias ditaduras em benefício dos próprios agentes não têm validade. Apenas as leis de reparação e o trabalho da verdade construídos em regimes legítimos e democráticos contam para o direito internacional. Torturadores não devem julgar a si próprios.

 

Exatamente por isso o Brasil foi condenado, muito tardiamente, em dezembro de 2010, já no final do governo Lula, pela Corte Internacional de Direitos Humanos da OEA, por nada ter feito de legal em sua retomada democrática a respeito dos crimes contra os direitos humanos da ditadura. Essa condenação, cuja ação foi movida pelos familiares de mortos e desaparecidos, obrigou o País a instaurar sua Comissão da Verdade. A falsa conciliação pelo transe, própria dos amigos da ditadura, não deve mais ser aceitável no estágio atual da democracia brasileira e seus compromissos universais.

 

Fonte – Estadão

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