Secretaria de Direitos Humanos ignora a história e exclui os comunistas e pesquisadores das buscas dos desaparecidos políticos no Araguaia
Assessoria da ministra Maria do Rosário contestou a denúncia de Paulo Fonteles Filho
Um fato inusitado vai marcar o início dos trabalhos do Grupo de Trabalho Araguaia em 2013: a exclusão do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e de ouvidores de instituições científicas federais, tais como o do Museu Paraense Emílio Goeldi e da Universidade Federal do Goiás, no civilizatório intento de localizar os despojos mortais de militantes desaparecidos nos sertões araguaianos.
Tal esforço no sentido de elucidar os desaparecimentos forçados no Araguaia — que se aprofundou a partir de 2009, com a corajosa decisão da Juíza Federal Solange Salgado, de Brasília – vai se iniciar quando muitos dos quadros ministeriais ligados à Maria do Rosário sequer haviam nascido ou estavam em meio às fraldas e mamadeiras.
A Guerra dos Perdidos, o advogado-do-mato, a caravana de 1980
O primeiro sopro da luta pela memória e verdade no Araguaia, de profunda dimensão democrática, ocorre por volta de 1978 quando o advogado comunista Paulo Fonteles, assessor jurídico da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na Prelazia de Conceição do Araguaia (PA) vai atuar e viver na região do Araguaia.
Ex-preso político, com passagens pela Barão de Mesquita (RJ) – principal centro da tortura científica do país – e no Pelotão de Investigações Criminais do Ministério do Exército, em Brasília (DF), é que soube, ao lado da esposa Hecilda Veiga, da existência da guerrilha do Sul do Pará. Ali ingressou, naquelas duras condições, na organização dirigida por João Amazonas, Pedro Pomar e Mauricío Grabois, no Partido da guerrilha.
Na medida em que o clero se posicionava na luta de classes na Amazônia, forjando a resistência camponesa, fruto da revolta popular diante da grilagem de vastíssimas extensões de terras por poderosos grupos econômicos internacionais e nacionais — tais como a Volkswagen, Supergasbrás e Nixdorf – naquela cruenta fronteira de ocupação humana na Amazônia, impulsionada pela pecuária e cobiça mineral, Paulo Fonteles, também conhecido como advogado-do-mato recolhia, em sua área de atuação, o Baixo Araguaia, as primeiras informações sobre a epopéia de figuras heróicas, como a ‘Dina’ e o ‘Osvaldão’.
Ali já se desenvolvia a Guerra dos Perdidos, iniciada em 1976, na região dos Caianos, área onde os comunistas angariaram amplo apoio popular. O fato é que um grupo de posseiros se levantou, em trincheiras, contra os intentos da ‘Brasil-Central’, cujos interesses eram defendidos pelo amálgama dos agentes repressivos do estado e a pistolagem.
Tal encontro, dos agentes do Centro de Inteligência do Exército com o lumpesinato, filhos da miséria e do obscurantismo, projetou no curso do tempo uma a cultura do medo e da violência que faz com que o Pará, até hoje, seja recordista nacional do trabalho escravo e dos crimes políticos mediante paga.
Na medida em que ganhava a confiança dos posseiros nos Perdidos – pela prática justa, de enfrentamento contra as arbitrariedades do latifúndio, das forças de segurança do estado e da corrupção do aparato judicial – e os defendia, inclusive retirando-os das prisões em Belém (PA) e denunciando abusos sexuais cometidos contra crianças e mulheres camponesas é que tais lavradores começaram a se abrir para o advogado comunista.
Até então Fonteles defendia que o esforço do PC do B, apesar do heroísmo, teria sido um foco, que na linguajem militar quer dizer travar a luta sem respaldo ou apoio popular.
Foi nos Caianos, não tenho dúvidas, que as primeiras informações sobre a guerrilha foram prestadas. A visão do advogado-do-mato vai mudar radicalmente e ele passa a defender aquilo que a vida já comprovou no sentido de que aqueles guerrilheiros, vindos de todo o país, inspirados pela revolução chinesa e nas proezas do General Giap do Vietnã, teriam angariado grande simpatia e apoio das massas locais.
Percorrendo as matas rumorosas, conhecendo os sertões e suas gentes, formando, assim, ao lado de figuras como o do camponês Raimundo Ferreira Lima, o ‘Gringo’, dos advogados Gabriel Pimenta e Egydio Salles Filho, dos padres franceses Aristide Camió, Francisco Gouriou e Ricardo Rezende, uma geração de lutadores do povo que, enfim, perdeu o medo das centauras mãos do dinheiro e da malsã influência do ‘Kurtz’ da Amazônia – a figura dantesca do coronel que parece ser o retrato da falência da humanidade interpretada por Marlon Brando, em ‘Apocalypse Now’, de Coppola – o Major Sebastião Curió.
Com base no relato de camponeses e ex-mateiros, recolhidas por Fonteles, — somados aquelas prestadas nas prisões políticas por militantes barbaramente torturados, encarcerados por ligações com a guerrilha, como José Genoíno Neto, Ryoko Kaiano e Elza Monnerat – é que as primeiras informações sobre os eventos que cercavam o esforço de resistência e a violência perpetrada pelo regime terrorista civil-militar, no Araguaia, vieram à tona.
As matérias jornalísticas de Fernando Portela acrescentaram, ainda, um fascínio sobre o intento do Partido Comunista do Brasil (PC do B) que, em 1972, completava 50 anos em meio a mais encarniçada luta contra o regime despótico, sendo-lhe seu opositor mais radical.
A luta pela Anistia e o aparecimento do Centro Brasileiro pela Anistia (CBA), com sede na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro (RJ), em 1978, organizou nacionalmente não apenas a luta pela soltura dos presos políticos ou o retorno daqueles que se encontravam no exílio, mas, sobretudo, as famílias e militantes políticos que se davam conta de centenas de desaparecimentos forçados.
Aquela iniciativa, diante do governo do último general-presidente, João Figueiredo, ainda guarda atualidade porque o país ainda se debate sobre a localização e identificação de mais de uma centena de militantes mortos e sepultados como indigentes.
Tal esforço gerou a primeira caravana de familiares ao Araguaia em 1980, marco fundamental e verdadeiro divisor de águas na luta pelo direito à memória e a verdade no Brasil, parte indivisível do corolário da afirmação dos direitos humanos no país, no sentido dos de segunda geração – filhos da revolução francesa e da queda da Bastilha de 1789 – ou, seja, dos direitos políticos.
As indicações em sítios mortuários, como o cemitérios de Xambioá (TO) e de São Geraldo do Araguaia (PA), são daquela época.
Sob o cutelo do Conselho do Segurança Nacional que, a rigor, iniciava através do Grupo Executivo de Terras Araguaia-Tocantins (GETAT) a militarização das questões fundiárias na imensa área conflagrada da resistência é que irmãos, pais, mães, gente do clero, jornalistas e militantes sociais percorreram sertões, de Marabá até São Domingos das Latas, de São Geraldo até Xambioá, de Araguanã até a Boa Vista do Araguaia.
Para se ter uma idéia: em 1980 das 80 ocorrências de conflitos fundiários registrados no Pará 56 aconteceram em áreas na qual a caravana percorreu, produzindo 37 dos 45 assassinatos registrados em todo aquele imenso estado amazônico.
Todas estas informações estão disponíveis no livro Inventário da Violência – Crime e impunidade no campo paraense (1980-1989) de Ronaldo Barata.
Mas, a saber, quem afinal coordenou aquele ato de rebeldia que desafiou o regime senão o advogado comunista, assassinado poucos anos depois, também por liderar, nos confins da Amazônia, a luta contra a ditadura e o latifúndio?
A base jurídica defendida pelo advogado Luis Eduardo Greenhalgh, que em 1982 ingressou com a ação dos familiares obrigando a União a localizar e identificar os desaparecidos políticos no Araguaia tem, em suas digitais, as contribuições do advogado paraense.
Por fim, em 2007, a União é obrigada através da sentença da Juíza Federal Solange Salgado a dar cabo da localização e identificação daqueles desaparecidos políticos, revelar os seus algozes, locais e horas derradeiras onde a tortura, a mais grotesca das violências, anunciou a morte precoce de toda uma geração de brasileiros.
Novo impulso na luta pela memória e verdade, ex-militares, ameaças e o assassinato de Raimundo ‘Cacaúba’
A investigação federal, iniciada em 2009 pelo Ministério da Defesa, através do Grupo de Trabalho Tocantins (GTT), que findou no primeiro semestre de 2011 e que contava com forte presença militar, além de familiares de desaparecidos políticos, do governo paraense, de técnicos de diversas áreas do conhecimento, de instituições de pesquisa e do PC do B, na figura do veterano dirigente Aldo Arantes – investigou 14 polígonos promovendo mais de 50 escavações, muitas delas identificadas com sinais de ação humana anterior sem que nada, absolutamente nada fosse encontrado, a não ser pequenos vestígios de ossos no Tabocão, Brejo Grande do Araguaia (PA).
O Partido Comunista do Brasil, familiares, pesquisadores de instituições científicas, como é o caso do Museu Goeldi, passam a defender o entendimento, comprovado meses depois por ex-militares de que houve, de fato, as ‘operações-de-limpeza’ ou, como se diz no jargão militar, ‘operações-contato’.
O foco, então, passa a ser o trabalho em sítios mortuários de Xambioá (TO) e São Geraldo do Araguaia (PA). Em 2010, algumas áreas são localizadas, como é o caso do ‘cimento’, polígono no cemitério tocantinense. Ali, um ano depois, duas ossadas seriam retiradas e enviadas à Brasília.
Em fevereiro de 2011 os comunistas Aldo Arantes, Paulo Fonteles Filho e Sezostrys da Costa são indicados, pelo Ministério da Defesa, para coletar depoimentos de ex-soldados e agentes da repressão.
Nos mais de 40 depoimentos tomados, inclusive através de áudio-visual, aqueles homens confirmaram a tais ‘operações-contato’, revelando comando e modus-operandi, além do corte-de-cabeças – muitas delas enviadas até Belém (PA) -, torturas em treinamentos militares e o assassinato de mais de 300 pessoas na região do conflito, entre 1972-1975. Isso sem falar do tratamento dispensado aos militantes comunistas, de terríveis relatos, que fariam corar o mais empedernido dos fascistas.
Acontece que, diante das descobertas, as pressões só irão aumentar, ao ponto de antigos agentes do aparato repressivo passam a ameaçar ex-soldados, dentre eles um antigo motorista do Major Curió, e aos próprios militantes comunistas indicados pelo Comitê Central do PC do B, Paulo Fonteles Filho e Sezostrys Alves da Costa.
Em maio de 2011, diante do ingresso do Ministério da Justiça e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República nos trabalhos de buscas, fato que alterou a composição e denominação do esforço federal, passando-se a chamar de Grupo de Trabalho Araguaia (GTA) é que organizamos um conjunto de relatos destes ex-militares, incluindo ex-funcionários da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), além do relato detalhado de nossa atividade, inclusive denunciando firmemente as ameaças, e de Tiuré, o primeiro relato de indígena na Comissão de Mortos e Desaparecidos da SDH.
Naqueles dias, em Brasília, tanto eu quanto Sezostrys passamos a integrar o Programa Federal de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, ligado a pasta de Maria do Rosário.
Em fins de Julho daquele ano de 2011 é assassinado o ex-rastejador Raimundo Clarindo, o ‘Cacaúba’, e tudo indica que foi por queima-de-arquivo, já que o mesmo estava contribuindo com o esforço realizado pelo governo federal no Araguaia.
Em nosso caso, além dos telefonemas anônimos, a ronda de caminhonetes estranhas, uma vela acesa foi deixada no quintal da casa de nosso camarada camponês, tudo isso conosco lá dentro.
Por horas esperamos uma invasão e sentimos o hálito do capeta. Ali, apesar da coragem e abnegação, sentimos medo do que poderia nos ocorrer. Fizemos um extenso documento a Policia Federal em Marabá e denunciamos nacionalmente o episódio.
Acontece que em 2011, o GTA recolheu 5 ossadas e ano passado, 2012, mais 9 despojos mortais que estão sob análise em Brasília (DF), foram retirados dos cemitérios da região.
Então, enfim, qual o sentido da exclusão do PC do B e de instituições de pesquisa do governo federal deste processo de 2013?
A Ministra Maria do Rosário, que deve desconhecer a medida indesculpável dos seus assessores, precisa cercar-se de gente capaz politicamente para não cometer desatinos infantis e sectários, que irresponsavelmente e sem nenhuma justificativa, porque não há mesmo, de alijar os comunistas e pesquisadores em tais esforços.
Querem eles falsificar a história do contencioso ou mesmo mudar a autoria de quem organizou a Guerrilha do Araguaia?
Talvez, na cabeça de alguns, o Osvaldão deixou de ser comunista porque simplesmente um burocrata engravatado de Brasília assim decidiu? Risível!
Mal sabem os ‘professores de deus’ dos esforços para recolher tal memória e localizar os camaradas, que, em nossa cultura militante são como guias espirituais.
Sim, porque os comunistas também têm suas crenças e heróis, além das pequenas e grandes histórias, amores rubros.
O fato é que nunca recuamos diante das pressões e ameaças, nossa presença sempre foi assídua, inclusive buscando revelar ao país fatos ainda desconhecidos da recente história nacional.
Vai me parecendo que a paróquia decide a coisa toda na cabeça dos incautos e o espírito republicano, tão ardorosamente defendido pelo companheiro Lula, fica no fim da fila.
Ai se eles soubessem da epopéia da veterana comunista Elza Monnerat que, no inicio da década de 1980, foi visitar antigos amigos na Faveira, São João do Araguaia (PA).
Na última vez que estive em Marabá (PA), nas filmagens do documentário ‘Osvaldão’, de Vandré Fernandes e Ana Petta, escutei de um camponês sobre as longas caminhadas de Elza, pelo mato ou estradas vicinais, beirando igarapés e o próprio Araguaia. Tudo a pé, sob o sol lancinante da Amazônia.
O Mário Brito, irmão do Lauro – que perdeu o braço pelo estouro de uma granada perdida pelo Exército – disse-me, rindo, que aquela velhinha, a primeira alpinista brasileira, ia sempre à frente deixando-o para traz, a ver navios. O sentido da viagem de Elza era pesquisar o paradeiro de seus camaradas de guerrilha.
Naqueles dias não havia caminhonetes, hotéis confortáveis, internet, celulares ou diárias federais. Só havia chão, poeira, destemor, consciência e meganhas vigiando.
A pequena passagem de Elza é apenas uma das tantas histórias que se somam aos esforços de muitos anos de Diva Santana e do intelectual Romualdo Pessoa, professor da Universidade Federal de Goiás, ambos militantes do Partido Comunista do Brasil.
Um dos mais destacados dirigentes comunistas que o país conheceu João Amazonas, em seu derradeiro desejo, pediu para ter suas cinzas esparzidas ao lado dos seus, no Araguaia.
O ato, portanto, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, sob o comando da Ministra Maria do Rosário, ao excluir os comunistas e demais estudiosos sobre o tema das expedições, revela fragilidade e postura antidemocrática.
A pesquisa sobre o paradeiro dos desaparecidos políticos no Brasil, como, também, desvendar os eventos que marcaram a luta para libertar o país do jugo da tirania e punir seus responsáveis exige amplitude, espírito republicano, unidade e decisão política. De imediato a SDH deve corrigir o desatino.
Só assim passaremos, em definitivo, o país a limpo.
****
Resposta da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República:
Olá Conceição, boa tarde.
Conforme conversamos por telefone, o título da matéria “Fonteles Filho: Secretaria exclui comunistas da busca por desaparecidos” é dúbio e não condiz com a realidade. O que o autor está querendo dizer? Que comunistas foram excluídos da equipe que organiza a busca por restos mortais ou que o Grupo de Trabalho Araguaia não está mais procurando corpos de comunistas que lutaram contra a ditadura? Não fica claro.
O Grupo de Trabalho Araguaia, instituído por portaria, é composto por representantes do Ministério da Defesa, do Ministério da Justiça e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Apesar de não haver obrigatoriedade de se convidar esta ou aquela instituição ou pessoa, a expedição que está neste momento no Araguaia conta com pelo menos uma representante de um partido comunista.
Encontram-se sob custódia do Estado, com o acompanhamento da Justiça, 27 conjuntos de restos mortais, todos recolhidos na região onde ocorreu a Guerrilha do Araguaia. A última expedição, realizada no mês passado, recolheu dois conjuntos de restos mortais que estão em processo de análise por peritos.
*****
Discordo radicalmente da postura da Secretaria de Direitos Humanos, de prosseguir as buscas pelos desaparecidos do Araguaia sem o auxílio dos defensores dos direitos humanos filiados ao PC do B. O Partido, da base aliada do governo Dilma, tem o direito histórico de participar das expedições em busca dos restos mortais de seus ex-companheiros de partido, militantes da guerrilha do Araguaia.
Todos aqueles que conhecem a história da Guerrilha do Araguaia sabem das condições em que os guerrilheiros foram executados, quase sempre depois de rendidos. Conhecem também as gravíssimas violações praticadas contra os cadáveres, cuja localização é até hoje desconhecida.
Em minhas duas expedições para entrevistar os camponeses do Araguaia pela CNV, contei com a ajuda preciosa dos colaboradores Paulo e Sezostrys. Minha pesquisa não teria acontecido sem eles, que conhecem profundamente os problemas sociais da região e continuam comprometidos com a busca da verdade histórica.
Fonte – Viomundo