Livro escrito nos calabouços do Navio foi lançado ao mar
“Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras”, foi a justificativa do Coronel ao seu autor
Impresso em 1965, o livro “Navio Presídio: A Outra Face da Revolução”, obra do jornalista Nelson Gatto, um dos presos do Raul Soares, que foi escrito no cárcere flutuante, foi apreendido pelo Dops sem chegar às livrarias.A Justiça Civil mandou devolver o livro que, em seguida, foi apreendido pela Aeronáutica. No Superior Tribunal Militar, mais uma vez – e desta por 10 a 0-veio ordem para que fosse liberado, pois o relator, general Mourão Filho, nada viu de pernicioso em seu texto. Mas o então coronel da Aeronáutica, Francisco Renato de Melo, não obedeceu à ordem: invadiu a gráfica, apreendeu toda a edição e lançou-a ao mar.
Poucos exemplares escaparam e um deles está com este jornalista e autor, que o guarda como uma raridade. A obra retrata o clima entre os presos no interior daquela lúgubre embarcação.
Depois o coronel justificaria a Nelson Gatto: “Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras”.
Impresso em 1965, o livro “Navio Presídio: A Outra Face da Revolução”, obra do jornalista Nelson Gatto, um dos presos do Raul Soares, que foi escrito no cárcere flutuante, foi apreendido pelo Dops sem chegar às livrarias (Foto: Divulgação)
“O depoimento que ora torno público, escrito em papel de embrulho num cárcere imundo de um dos sombrios navios-prisão em que brasileiros foram trancados, tratados como criminosos, é a explicação que dou aos meus amigos. Sem qualquer pretensão literária, é apenas um documento a retratar o Brasil numa época desgraçada.”
Assim começa o livro Navio Presídio que poucos leram, ao contrário do que seu autor, o jornalista Nélson Gatto, pretendia. Escrito em 65, foi apreendido pelo Dops ( Delegacia de Ordem Política e Social) sem chegar às livrarias. A Justiça Civil mandou devolver o livro que, em seguida, foi apreendido pela Aeronáutica. No Superior Tribunal Militar, mais uma vez – e desta por 10 a 0 – veio ordem para que fosse liberado, pois o relator, general Mourão Filho, nada viu de pernicioso em seu texto. Mas o então coronel da Aeronáutica, Francisco Renato de Melo, não obedeceu à ordem: invadiu a gráfica, apreendeu toda a edição e lançou-a ao mar. Poucos exemplares foram salvos.
Depois o coronel justificaria ao autor: “Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras”. Gatto, que havia passado 43 dias no navio-presídio, voltou a ser preso em 67, para responder sobre o livro, conforme prometera o então capitão dos portos, Júlio de Sá Bierrembach.
O texto, do jornalista Carlos Mauri Alexandrino, menciona que os velhos ferros rangiam com as oscilações noturnas das marés, estalavam com os leves balanços que o banco de areia onde fora encalhado o navio ainda permitia. Som monótono quebrado pelas tosses doentias dos que já escarravam sangue, que tossiam para fora os pulmões corroídos pela umidade e pelo frio. Era o único ruído que se permitia atravessar as portas trancadas e vencer os sombrios corredores.
Os que mesmo sem cobertas conseguiam dormir sobre imundos colchões úmidos, vencidos pelo cansaço, eram despertados muitas vezes pelo exército de pulgas, baratas e percevejos que insistiam em entrar nos narizes, bocas e orelhas adormecidas. Na maioria das celas, entretanto, enfrentar o colchão era menos desconfortável que ficar em pé, com água gelada pelo tornozelo.
De repente, uma patrulha abria a porta e lançava para dentro a luz de uma lanterna elétrica, sempre secundada pelos canos ameaçadores das metralhadoras portáteis. Os homens da Polícia Marítima entravam levantando os prisioneiros e revistando tudo, como se fosse possível esconder alguma coisa. Os escritos eram apreendidos para ser anexados aos processos ou então para abertura de novos inquéritos: uma poesia podia significar mais algumas semanas no imundo navio-prisão.
Às seis horas soava a sirena, a ordem para que todos se levantassem. Em pouco tempo era servido o café e um pedaço de pão. Eram colocados fora das celas que eram abertas o tempo suficiente para que o preso apanhasse a caneca, sob a mira das metralhadoras, para que não conversasse ou lançasse qualquer olhar sobre o vizinho de infortúnio. Às onze horas, era servido o almoço, no convés, para onde os presos eram encaminhados em fila indiana, sob mira das armas também.
Cada um pegava sua bandeja que era enchida com uma pasta de arroz e feijão-preto, na maioria das vezes, azeda e malcheirosa, que provocava diarréias incontroláveis e dores de estômago. Não havia talheres para todos e por isso eram obrigados a comer com as mãos.
Alguns se recusavam a esse tratamento, exigindo o tratamento digno de um preso político: esses simplesmente não comiam mais, contentando-se com a banana ou a laranja servida como sobremesa. O jantar era uma sopa intragável feita com os restos do almoço, servida lá pelas 16,30 horas.
As saídas das celas eram limitadas a uma ida diária ao banheiro e aos chamados arejamentos que não eram diários e, preferencialmente, nos dias chuvosos e frios, quando os presos eram colocados no convés para caminhar ou fazer exercícios forçados incompatíveis com suas condições físicas. Muitos presos, em cinquenta dias de prisão, não chegaram a sair para arejamento dez vezes, meia hora em cada uma. Nada de conversa: era proibido.
A ida ao banheiro eram sempre acompanhadas por soldados armados com metralhadoras que exerciam forte vigilância nos presos, que tinham que fazer suas necessidades fisiológicas com a porta aberta e sempre com a metralhadora empunhada pelo soldado, voltada ameaçadoramente para seus corpos, numa situação humilhante e degradante.
Fonte – Diário do Litoral