“Ele foi sequestrado no dia 24 de março, nesse dia certinho. É fácil de lembrar porque nesse dia a gente não vai à escola. É o Dia da Memória.” O 24 de março ao que o fragmento se refere aconteceu no ano 1976, quando um golpe militar derrubou Isabel Perón (1974-1976) na Argentina. Nesse dia, Gastón Gonçalves foi levado por agentes do governo recém-instaurado e seu corpo, encontrado em abril do mesmo ano no acostamento de uma estrada, foi enterrado como indigente.
Gastón é o pai de Manuel Gonçalves, um dos 109 netos que as Avós da Praça de Maio conseguiram localizar nos 36 anos de busca por bebês sequestrados ou nascidos em cativeiro durante a última ditadura (1976-1983). A história desse bebê – hoje um homem de 37 anos – não se parece com os livros que pais e mães leem aos filhos para fazê-los dormir. Mas, contada por ele mesmo, virou um dos relatos de um livro infantil lançado na Argentina pela editora Calibroscopio.
Os quatro pequenos capítulos de ¿Quién Soy? (“Quem sou?”, em tradução livre) são inspirados em depoimentos de seus protagonistas e narram o reverso dos contos de fadas em forma de aventura, suspense e, também, terror. Cada história foi adaptada ao universo infantil por escritores e ilustradores que, sem meias palavras e com imagens fortes – mas, cheias de sensibilidade – contam às crianças de hoje esse capítulo difícil da história argentina. Ao final de cada narrativa, o autor ou autora explica, à parte, como aquela experiência real se transformou na história que aparece no livro.
A compilação de “relatos sobre identidade, netos e reencontros” – subtítulo da obra – é uma aposta para falar seriamente com as novas gerações sobre o que aconteceu com a de seus pais. As Avós da Praça de Maio estimam que cerca de 500 bebês nascidos entre 1975 e 1980 foram registrados como filhos próprios ou adotados em orfanatos onde foram deixados sem informação sobre sua procedência. Elas acreditam que as 400 crianças que elas ainda procuram são hoje adultos, alguns
A essa nova geração, nascida depois de quase 30 anos de democracia ininterrupta na Argentina, as Avós querem transmitir a necessidade de se continuar buscando, de encontrar as verdadeiras famílias, de conhecer a história, ainda que não seja um conto de fadas. “Para você, para vocês, (…) que entendem desde sempre o valor de viver em liberdade, é mais fácil que para muitos adultos. As Avós sabem. Sabem que, se encontrarem seus netos, é possível que encontrem seus bisnetos. E que em vocês a luz da verdade é brilhante. MUITO brilhante”, diz o epílogo de Paula Bombara, autora do primeiro relato, “Manuel não é o Super-Homem.”
Histórias reais
Manuel foi sequestrado em novembro de 1976 na capital argentina, no mesmo operativo em que sua mãe, Ana Maria, foi assassinada. Quando nasceu, em junho do mesmo ano, seu pai já estava desaparecido e seus restos só foram identificados em 1996. Manuel foi encontrado por agentes da ditadura dentro de um armário, chorando, no fim do tiroteio em que sua mãe foi morta. Foi levado a um hospital onde passou quatro meses isolado, custodiado por membros das forças de segurança. Manuel cresceu em Quilmes, na Grande Buenos Aires, e sempre soube que havia sido adotado, mas nunca em que circunstâncias.
Ilustração de Irene Singer para o capítulo que conta a história de Manuel em ¿Quién Soy?
A história de Jimena Vicario é parecida. Aos oito meses, foi sequestrada junto à mãe, que tentava sair do país, em Buenos Aires. No mesmo dia, 5 de fevereiro de 1977, seu pai foi sequestrado em Rosário, onde a família morava. Jimena foi abandonada em um orfanato e adotada por uma funcionária, até que, em 1986, sua família a encontrou. A protagonista do capítulo inspirado por sua história é uma menina que conversa com o cachorro sobre as angústias de uma criança que se vê obrigada a escolher Buenos Aires e Rosário, entre uma mãe adotiva que ama e uma avó que a buscou por quase 10 anos.
Athos, seu companheiro canino, é o único confidente sobre o que sente ao descobrir que tem uma avó, que seus pais estão mortos e sobre a raiva que sente do juiz que determina que ela passe metade da semana em cada cidade – onde é chamada por nomes diferentes (seu nome adotivo era Romina) e tem dois cachorros diferentes. Jimena aprendeu a andar aos três anos de idade e todos acreditavam que, até os quatro anos, não era capaz de falar. Mas Iris Rivera, autora de seu relato, conta que a menina mantinha conversas secretas com seu cachorro e com seus brinquedos, mesmo que se recusasse a falar com seres humanos.
Irmãos separados
O relato epistolar de Mario Mendez revela a história de Sabrina Negro Valenzuela, que escreve a seu irmão gêmeo, de quem ainda hoje não se sabe o paradeiro, para falar de sua vida e de como foi bom reencontrar-se com Sebastian, o irmão mais velho por parte de mãe. Seus pais, Raquel Negro e Tulio Valenzuela, eram militantes importantes na hierarquia dos Montoneros, guerrilha e movimento popular de raiz peronista.
Raquel, Tulio e Sebastian foram sequestrados na cidade litorânea de Mar del Plata, em janeiro de 1978, quando a mulher estava grávida de cinco meses. Os três foram levados a um centro clandestino de detenção em Rosario, a “Quinta de Funes”, um dos cenários macabros do livro Recuerdo de la muerte (Lembrança da morte, em tradução livre), do jornalista e militante montonero Miguel Bonasso.
Em quase 500 páginas, Bonasso conta a história do sequestro de Jaime Dri, sobrevivente de vários centros clandestinos de detenção, que conseguiu escapar na fronteira da Argentina com o Paraguai, aonde foi levado por agentes da ditadura para que “marcasse” (denunciasse) outros militantes. O depoimento de Dri e o livro de Bonasso foram fundamentais para que Sabrina soubesse que junto a ela nasceu outro bebê, um menino.
Sabrina escreve ao irmão gêmeo desconhecido/ Reprodução
Seu pai foi levado ao México para que exercesse uma função parecida à que os militares designaram a Dri. Tulio Valenzuela deveria fazer contato com a cúpula dos Montoneros, muitos exilados no país norte-americano, e ajudar os militares a chegar até eles. Tulio escapou e, junto aos líderes do movimento, organizou uma coletiva de imprensa onde contou sua história e a de Raquel, que havia ficado sob custódia na Quinta de Funes, como garantia de que Velenzuela cumpriria sua parte no acordo.
Essa história aparece na carta de Sabrina ao irmão gêmeo, escrita por Mario Mendez. “A mamãe, querido gêmeo, estava presa e já havia sido condenada. O papai estava longe, sofrendo com o que sabia que ia acontecer, desesperado.” Raquel foi vista pela última vez quando ia dar à luz no hospital militar da cidade de Paraná. Tulio retornou à Argentina de forma clandestina, ainda durante a ditadura, e está desaparecido até hoje.
Outra história de irmãos separados pela repressão a militantes de resistência à ditadura é a de María de las Victorias e Marcelo. Ele tinha quase quatro anos e ela menos de dois quando foram abandonados em orfanatos de Cordoba e Rosario, com uma placa pendurada no pescoço com a mensagem “meus pais não podem me criar” ao lado de seus nomes. A família foi sequestrada em maio de 1980, depois de ter estado exilada na Suíça, onde María de las Victorias nasceu. Os pais, Silvia Dameri e Orlando Ruiz, continuam desaparecidos.
A escritora Maria Teresa Andruetto, que adaptou o relato dos jovens, narra a lembrança que Marcelo tem de viajar em um Peugeot 404 vinho, de mãos dadas com sua irmã, assustados pelos dois homens desconhecidos que sentavam na parte dianteira do carro. Ambos foram adotados por famílias que os criaram sem esconder o que sabiam de suas histórias e Marcelo foi localizado em 1989. Maria de las Victorias foi identificada dez anos depois, quando procurou as Avós da Praça de Maio depois de se reconhecer em um jornal que publicou uma foto em que aparece ainda bebê ao lado da mãe.
Silvia estava grávida de cinco meses quando foi sequestrada. A terceira filha do casal, Laura, nasceu durante o cativeiro da mãe e foi encontrada em 2008. Juan Antonio Azic, um dos integrantes do aparelho repressivo que atuava em um dos maiores centros clandestinos de detenção da Argentina, a Esma (Escola Superior de Mecânica da Marinha) se apropriou de Laura, que foi criada como irmã de outra filha de desaparecidos, a hoje deputada federal Victoria Donda, identificada em 2004.
Hoje, Azic está internado em um hospital psiquiátrico depois de uma tentativa de suicídio. Foi condenado por participação no plano sistemático de sequestro de bebês e também cumpre pena pelo julgamento conhecido como “Megacausa Esma”, local onde foi visto torturando um bebê de 20 dias para que o pai delatasse companheiros de militância.
“Dá pra ver que os adultos não gostam de falar da ditadura. Eu gosto. É ruim que tenha existido, mas, sei lá. Também não sinto medo, porque quem fez isso tem que estar preso”, pensa o narrador-personagem da história de Manuel. O menino relata o que ouviu de sua amiga Martina, verdadeiro nome da filha do jovem encontrado em 1997, bisneta de Matilde Pérez, uma avó que reencontrou seu neto.
Fonte – Opera Mundi