Pela primeira vez, Brasil concede anistia a índio perseguido pela ditadura

Pela primeira vez, o Estado brasileiro concedeu anistia política a um índio perseguido, preso e brutalmente torturado pela ditadura militar. José Humberto Costa do Nascimento, o Tiuré Potiguara, 64 anos, lutou contra a exploração e extinção dos povos indígenas, entre 1970 e 1983, período em que o imperativo da ditadura era, segundo ele, vender a falsa ideia de um projeto desenvolvimentista para espoliar ainda mais os territórios indígenas. Acabou tendo que fugir para o Canadá, onde foi reconhecido como refugiado político. De volta ao Brasil, há três anos, decidiu recuperar sua história.

Apesar da farta documentação que levantou sobre sua trajetória política, teve muitas dificuldades de convencer a Comissão da Anistia da procedência do seu pedido de reparação. As especificidades de seu caso fugiam completamente ao modelo tradicional de perseguido político para o qual o Estado, hoje, está preparado para lidar. O primeiro julgamento, em abril, foi suspenso quando Tiuré, antevendo uma derrota, se declarou em greve de fome no meio do plenário. A segunda sessão, há dez dias, o surpreendeu com o reconhecimento de sua condição de anistiado, embora apenas por um período de três anos, cuja documentação era taxativa.

A título de reparação, Tiuré irá receber uma indenização de 90 salários-mínimos, que já definiu em que empregar: dar o pontapé inicial na criação de uma espécie de Comissão Nacional da Verdade Indígena, com o propósito de levantar os crimes cometidos pela ditadura contra os povos originários do país. “Eu quero começar a pesquisa pelos locais onde passei e vi muita coisa, mas pretendo também estimular outras aldeias e outros povos a aderirem a esta luta”, afirma ele que, no momento, vive em casa de amigos na Aldeia Santuário dos Pajés, no coração de Brasília.

Uma história de luta

Filho de um índio potiguara e de uma branca, Tiuré deixou sua terra natal, a Paraíba, quando era criança. O pai conseguira um emprego de motorista na recém-fundada Brasília, eldorado de pobres e excluídos de todo o país. Morreu alguns anos depois em um acidente de carro até hoje não explicado.  Na capital federal, teve uma educação formal, casou, teve um filho e prestou concurso público para a Fundação Nacional do Índio (Funai), onde foi admitido em 1970, cheio de sonhos de ser útil a seus irmãos. Mas a ditadura militar já dominava o país. E logo se viu frente a um impasse: compactuaria ou não com o projeto desenvolvimentista dos militares que ameaçava inúmeras tribos indígenas?

Por questão de princípios, entendeu que não tinha mais como fugir da luta. Convidado pelo cacique Kohokrenum, decidiu se juntar à tribo gaviões-parkatejês, no Pará, e decretar guerra à ditadura que, naquela época, já dizimava povos indígenas inteiros para viabilizar grandes projetos desenvolvimentistas como Carajás, Tucuruí, Serra Pelada . “Viajei disfarçado, sem documentos, e, por isso, consegui me misturar aos índios da região e não ser reconhecido. Mas logo que a Funai soube que eu estava na área, a Polícia Federal já começou a me procurar por lá até de helicóptero”, relembra.

Na resistência indígena, viveu muitos anos escondido na mata, sem nenhum contato com a família. Foi quando passou por locais em que os índios afirmavam estarem enterrados guerrilheiros do Araguaia mortos nas emboscadas dos militares. Viu o que não devia. Se tornou um perigo para os poderosos de então.

Quando sua permanência na região se tornou insustentável, decidiu voltar para sua tribo de origem, na Paraíba.

Em terras potiguaras, porém, a situação era semelhante a da Amazônia. Os índios começavam a organizar uma resistência à invasão militar que lhe espoliavam as terras e os faziam trabalhar como escravos. “A ditadura tomou um terço das nossas terras para criar o Proalcool, plantar cana e beneficiar os latifundiários. E a Funai corroborava com tudo. Concedeu até uma certidão negativa de presença de índios na área para que o Banco Mundial autorizasse um empréstimo. E isso quando ainda havia três mil índios por lá”, lembra ele.

Em pouco tempo, já era tratado como inimigo número um do poder econômico local. E, consequentemente, logo já encabeçava também a lista de perseguidos políticos do regime. Entre 1980 e 1981, foi sequestrado , preso e torturado.
Quando foi localizado por defensores dos direitos humanos que se mobilizaram em sua defesa, precisou ser internado em um hospital. “Fiquei sem andar por muito tempo”, recorda ele. Para justificar a prisão, a Polícia Federal o acusou de porte ilegal de drogas. Tiuré comprovou sua inocência e foi absolvido na justiça. Mas entendeu que, se quisesse continuar vivo, tinha que fugir do Brasil.

No Canadá, passou por um longo processo de reconhecimento como refugiado político, que levou cinco anos. O caso teve grande repercussão na imprensa do muno inteiro. “Eu considero que esta foi a primeira condenação internacional do Brasil por crime político contra um indígena. Agora, duas décadas depois, sai a primeira condenação aqui no próprio país. E isso abrirá portas para que muitos outros índios, perseguidos e torturados pela ditadura, possam também pedir reparação ao Estado”, avalia.

Um choque de realidades

De acordo com a relatora do processo e vice-presidente da Comissão de Anistia, Sueli Bellato, o processo de Tiuré Potiguara foi o mais complexo que já passou pelas suas mãos, porque fugia completamente ao modelo convencional. “Eu precisei abstrair e me afastar dos conceitos de perseguido político tradicional, porque ele não era o estudante expulso da universidade porque participou de um protesto e nem o operário demitido da fábrica porque fez greve: era alguém que lutava quase que pelo direito de sobreviver”, afirmou ela.

A relatora conta que, à princípio, teve muitas dificuldades para reconhecer a perseguição do Estado à Tiuré. Segundo ela, pelos relatos iniciais, a impressão que ficava era que ele era mais uma vítima do latifúndio privado, a qual não cabe à Comissão de Anistia arbitrar reparação. “Para que nós todos pudéssemos esclarecer nossas dúvidas, transformei a primeira sessão de julgamento em oitiva.


À princípio, o Tiuré não recebeu bem a iniciativa, mas o resultado foi positivo porque pudéssemos formar uma melhor juízo de valor. Meu parecer foi aprovado por unanimidade”, esclarece.

Também contribuíram para a compreensão dos fatos as várias consultas aos arquivos secretos da Polícia Federal e do antigo Serviço Nacional de Informação (SNI), que revelaram a perseguição implacável contra a liderança indígena. Os laudos antropológicos requisitados sobre o caso foram fundamentais, em especial o da antropóloga Iara Ferraz, que trabalhou com os gaviões durante a ditadura e já conhecia a trajetória de Tiuré. “Não restou nenhuma dúvida de que ele foi um perseguido político”, atesta Sueli.

O próprio Tiuré se surpreendeu com o desfecho do julgamento. “Até o representante dos militares, o coronel Henrique de Almeida Cardoso, votou favorável à minha anistia. A indenização que vou receber não paga 40 anos de vida, mas a simbologia é muito importante para todos os parentes que tombaram na luta. E é a todos eles que dedico esta vitória”, acrescentou.

Um novo olhar sobre a anistia política

 

A vice-presidente da Comissão de Anistia não tem dúvidas de que o caso Tiuré  irá estimular novas lideranças indígenas a buscarem reparação do Estado contra os crimes cometidos pela ditadura. Segundo ela, depois que ele deu entrada no seu processo, outros dois grupos indígenas também procuraram a Comissão. Os suruís, que já formalizaram o processo, e os avás-canoeiros, que só fizeram um testemunho inicial das violações sofridas. Em ambos os casos, os índios pedem reparações coletivas, essencialmente a recuperação de suas terras originárias, o que não está previsto na Lei da Anistia.

“Vão aparecendo novas demandas que não se enquadram na anistia tradicional do meio urbano, e nós vamos buscando formas de atendê-las, seja pela adaptação ou até mudança da legislação, como ocorreu no caso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em que o ex-presidente Lula enviou um projeto de lei ao Congresso. O importante é que a gente consiga ajudar a promover a reconciliação nacional. E os índios são parte importante deste processo, porque vem sendo espoliados desde a chegada dos primeiros colonizadores, em 1500”, afirma ela.

 

Fonte – Rede Brasil Atual

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