Quando o combate à ditadura se travava na barra dos tribunais

162 advogados e advogadas sentaram-se ao longo de mais de 40 anos ao lado dos presos políticos. Muitos deles acabaram por passar de advogados a réus, sendo também perseguidos pelo regime. Alguns são hoje figuras de relevo na política e na advocacia;  outros, após o 25 de Abril, continuaram anonimamente o exercício da sua profissão. Todos, sem excepção, foram homenageados na terça-feira na Assembleia da República. O i assistiu a esta homenagem no anoem que se comemoram os 40 anos do 25 de Abril

A 8 de Janeiro de 1974 começou um dos últimos julgamentos políticos em Portugal. Manuel João da Palma Carlos era um dos advogados dos presos políticos ali julgados – no banco dos réus estavam diversos elementos da ARA, Acção Revolucionária Armada. O advogado teve acesso ao processo 48 horas antes, não tendo assistido a qualquer interrogatório. Presidia à sessão o juiz presidente do tribunal plenário, Fernando Morgado Florindo. Após os trabalhos, a sessão seguinte ficou marcada para 21 de Março, sendo posteriormente adiada para 25 de Abril. Nesse dia, e após contactos com a Direcção-Geral de Segurança, antiga PIDE, esta afirma não ter condições de escoltar os presos até ao tribunal devido às movimentações militares e o julgamento ficou adiado sine die . Já se passaram quase 40 anos.

A forma de reconhecer a bravura de todos os advogados e advogadas que, entre 1932 e 1974, arriscaram a sua vida para defender os presos políticos, primeiro em tribunais militares especiais e depois em tribunais plenários – onde apenas se julgavam crimes políticos -, foi uma homenagem levada a cabo na passada terça-feira pelo movimento “Não Apaguem a Memória” e pela Assembleia da República. Presos políticos do regime e os seus advogados sentaram-se lado a lado e encheram a sala do Senado, uma das salas nobres do parlamento. Vieram ainda as famílias daqueles que não viveram o suficiente para ver este tributo público.

Coube ao movimento “Não Apaguem a Memória” compilar 162 nomes de advogados e advogadas que, ao longo de mais de 40 anos, defenderam quem era julgado por fazer oposição ao Estado Novo. Entre estes defensores da resistência ao regime encontram-se figuras de relevo da política nacional, como os ex-presidentes da República Mário Soares e Jorge Sampaio – escolhido pelos advogados contactados pelo movimento para discursar na cerimónia -, o primeiro primeiro-ministro no pós-25 de Abril, Adelino da Palma Carlos (irmão de Manuel João da Palma Carlos) e Salgado Zenha (ver texto ao lado).

ARRISCAR PELO OUTRO Independentemente do estatuto que adquiriram, mais tarde, através dos seus percursos profissionais e políticos, todos estes advogados defenderam nos tribunais plenários opositores ao regime – um apoio que ultrapassou o âmbito jurídico. Os advogados eram muitas vezes o elo de ligação entre as famílias e os presos que ficavam em isolamento. “Uma frase do preso político trazida pelo seu advogado era garante de segurança para os seus amigos”, disse Helena Pato, presidente do movimento, na abertura da homenagem.

Para além disto, coube a estes advogados, dentro das parcas ferramentas possíveis, defender e lutar pelos direitos dos presos políticos, sob pena de muitas vezes eles próprios serem detidos e interrogados, como aconteceu a Sousa e Castro e Arnaldo Mesquita, lembrou Irene Pimentel, historiadora. Saul Nunes, advogado e preso político, relembra um episódio em que Salgado Zenha pediu no próprio tribunal a prisão de agentes da PIDE que estavam na sala de audiências, temendo que o seu defensor passasse de advogado a réu ali mesmo. Em 1965, agentes da PIDE perseguiram o advogado Artur Cunha Real dentro do tribunal. “Este teve de se barricar na sala da Ordem dos Advogados para fugir”, contou a historiadora na homenagem.

Desafiar o poder judicial no Estado Novo e perante uma “magistratura cativa” – os juízes eram nomeados pela hierarquia do regime -, como muitos dos participantes nesta cerimónia lembraram, não era uma tarefa simples. Para além de os advogados não terem, muitas vezes, acesso aos processos, as provas eram forjadas – ou a prova factual do crime baseava-se na crença do juiz de que o réu era um opositor -, as confissões eram extorquidas à custa de tortura e havia sempre testemunhas de acusação personificadas em agentes da PIDE que, normalmente, não eram os mesmos que capturavam ou acompanhavam o preso político. Francisco Teixeira da Mota, advogado, realçou que nos tribunais plenários os lugares na sala eram antecipadamente preenchidos por agentes da PIDE de modo a diminuir qualquer apoio dos familiares ou dos amigos a quem se sentava no banco dos réus – uma constatação que o escritor Mário de Carvalho atestou por experiência própria.

Ficou ainda a cargo dos advogados a divulgação, a nível internacional, do tratamento dos presos políticos em Portugal. A Ordem dos Advogados aderiu neste período a diversas organizações internacionais que enviaram observadores e registaram o desrespeito pelos direitos fundamentais do Homem. “Defenderam-nos a nós todos e à nossa dignidade enquanto portugueses”, concluiu Teixeira da Mota.

O CASO DE JORGE SAMPAIO Estar presente pelos presos políticos mesmo perante “a completa negação do direito da liberdade e a expressão do branqueamento da tortura” era, para Jorge Sampaio e para todos os outros advogados, “um imperativo”. “Sem prejuízo de todas as outras formas de dizer presente contra a ditadura, todos entendemos que constituía um imperativo ético, moral, político, jurídico estar presente nesse chamado tribunal para apoiar os que lutavam pela liberdade, para denunciar os processos viciados e a tortura, a iniquidade praticada sob a carga de uma pretensa e falsa legalidade. Presentes também para lutarmos, com a nossa profissão e no exercício, embora ali condicionado e oprimido, por um direito criminal renovado e de liberdade democrática”, disse o ex-presidente da República, claramente emocionado, durante o seu discurso.

 

Para recordar o espírito destes advogados, uma placa evocativa do seu serviço à democracia será colocada na sala da comissão de Assuntos Constitucionais do parlamento, mas para o movimento que promoveu esta iniciativa ainda há muito a fazer. “Não existe no nosso país uma verdadeira política da memória. Muito embora um número cada vez maior de jovens se envolva em projectos de salvaguarda da memória, existe ainda muito para fazer para que seja preservada de forma duradoura a memória da resistência de tantas portuguesas e portugueses à ditadura de Salazar e de Marcelo Caetano”, disse ao i Lúcia Esaguy Simões, vice-presidente da “Não apaguem a memória”.

 

Fonte – Jornal I

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