Cinquenta anos da ditadura militar é relembrada com lançamento de livros

Confira alguns dos títulos mais interessantes a serem lançados até o final do mês

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Efemérides são sempre bem-vindas no mercado editorial, mesmo que nem sempre sejam motivo de celebração. O golpe que conduziu o Brasil em direção ao regime militar em 1964 completa cinco décadas este mês e as editoras já começaram a se movimentar para ocupar as prateleiras com títulos relacionados ao tema. Da polêmica de Marco Villa — defensor de uma releitura que reduz de 20 para menos de 10 os anos do período de ditadura — à dramaticidade dos pequenos contos ficcionais de Bernardo Kucinski, a variedade de gêneros e abordagens oferece ao leitor um cardápio equilibrado.

As narrativas de Kucinski são ficção, mas estão ancoradas em uma realidade tão crua que é difícil não se emocionar. O escritor estreia no romance com ‘K. relato de uma busca’, sobre um pai em busca da filha desaparecida durante o regime militar. Em ‘Você vai voltar pra mim’, pequenos contos ligados pelo contexto da ditadura e da repressão narram histórias rápidas de personagens que, de alguma forma, foram afetados pela condição política do país. Na visão do autor, escrever ficção sobre um episódio traumático é fundamental para entender o ocorrido.

“Creio que a ficção permite a catarse. E a catarse ajuda a suportar o trauma. O relato factual é mais próximo de um ajuste de contas com a história, com os outros. A ficção é mais adequada a um ajuste de contas consigo mesmo”, diz. “A ditadura militar brasileira não traumatizou a totalidade da sociedade como ocorreu na Argentina e no Chile, e sim alguns de seus segmentos. Por isso, não houve incorporação de um fato traumático à memória coletiva. E também por isso, foi fácil aos setores dominantes, que apoiaram a ditadura e se mantém dominantes, apropriar-se também da sua história e transformá-la rapidamente em “história antiga”, embora muitos de seus protagonistas e suas vítimas ainda vivam.” Kucinski é, ele mesmo, uma das vítimas. O autor perdeu a irmã e o cunhado durante o regime militar.

 

 

Entrevista com Bernardo Kuncinski

Quando termina a escrita de um trauma? Ela termina?

A forma como o trauma nos afeta muda muito com o passar dos anos, mas ele nunca nos abandona. Assim, a sua escrita também não tem um ponto final.

Escrevemos pouca ficção sobre a ditadura no Brasil?

Não sou um especialista, mas me parece que o tema pouco aparece na ficção brasileira contemporânea. Os ficcionistas jovens preferem outros temas, familiares, intimistas, ou aspectos da alienação e estupefação da pós-modernidade. Entre os que foram da geração que viveu a ditadura, especialmente entre os que lutaram contra ela, houve um predomínio – uma profusão mesmo – de relatos pessoais, como se cada um sentisse forte necessidade de registrar sua experiência. Muitos são bem escritos, mas raramente ultrapassam o plano do relato factual simples. Não atingem dimensão literária, diferentemente das memórias de um Primo Levi ou de um Aharon Applefeld sobre suas experiências no holocausto. Ultimamente surgiram as biografias , que também são relatos factuais e que igualmente não atingem dimensão literária. Quarup, para lembra um dos primórdios da ditadura ficou sendo o precursor de um nada.

Depois de K., você sentiu a necessidade de escrever mais sobre a ditadura? Por que?

A partir das reações a K. e dos trabalhos das várias comissões da verdade, fui tomado pela dramaticidade de outras histórias pessoais e achei que deveria partir delas para realizar minha nova ambição de ser um escritor de ficção. Achei que era a coisa certa a fazer, e que nessas histórias estava o material humano mais importante que poderia me mover e me inspirar neste momento. Mas também tenho escrito ficções com outros temas.

Como você encara o trabalho da Comissão da Verdade? Qual o papel dela hoje?

Sou muito cético quanto aos seus resultados, tendo em vista as limitações de seu mandato e de seus poderes. Dela, na verdade não espero quase nada. Vejo como um dos poucos aspectos positivos de sua criação a proliferação de comissões da verdade pelo pais em todos os niveis.

Entrevista com Marco Villa

Qual a ideia do livro?

A ideia do livro é aproveitar o momento dos 50 anos, que acaba adquirindo importância para os leitores e para a discussão política da história do Brasil. Tentei ser o mais simples possível, mas colocando questões que considero essenciais. A ditadura do Estado Novo matou muito mais que a ditadura militar e foi muito mais violenta que a ditadura militar, porém na memória ela foi apagada. Ninguém fala da barbárie do Estado Novo nas capitais, a ação da polícia, a morte de dezenas de prisioneiros sob tortura. Eventualmente, lembram da Olga Benário, mas se esquece de toda a barbárie. No caso do Estado Novo, se esquece da barbárie em relação aos direitos humanos e se prioriza os êxitos econômicos. E, no caso do regime militar, é o contrário: esquece-se dos avanços econômicos e prioriza-se a barbárie.. Então, o que procuro mostrar é que as características especiais do regime militar brasileiro não têm nenhuma relação com os países do cone sul. Nenhuma, zero. Quem falar que tem é caso de voltar para os bancos escolares, porque no caso da Argentina, a ditadura argentina desestatizou a economia. O regime militar brasileiro estatizou a economia, fez o inverso. Enquanto o regime militar argentino acabou com a universidade pública, o regime militar brasileiro expandiu o ensino de terceiro grau. Muitas universidade federais foram criadas durante o regime militar. A concepção do regime militar brasileiro era autoritária? Evidente que era. Mas era uma concepção derivada do positivismo. As ditaduras do cone sul têm uma forte marca na área estatista que não tinha no Brasil. A concepção da formação do exército brasileiro vem do positivismo, que consagra um estado autoritário, verdade, como mostro diversas vezes no livro. A coisa do livro é remar contra a corrente, contra explicações pré-concebidas, leituras equivocadas, contra a construção de uma memória que não existiu.

Em que consistiu a ditadura no Brasil, na tua opinião?

O período de ditadura mesmo é o da vigência do AI5. Quando se restabelece as imunidades parlamentares a partir de 1969, não é possível falar em ditadura, isso é um paradoxo conceitual. Se o parlamentar não pode ser cassado, tem seus direitos resguardados, não se pode chamar de ditadura. Há problemas conceituais: a expressão do debate político acabou invadindo um espaço da reflexão sobre o período do regime militar. É um equívoco que acabou sendo repetido. E como somos um Brasil que tem uma intelectualidade um pouco preguiçosa e pouco afeita aos debates e com enorme temor de remar contra a corrente, então fica mais fácil ficar repetindo. Não temos tradição de uma reflexão crítica, independente, polêmica. Essa visão, nós tivemos até anos 1970 no século 20. Essa questão da polêmica, que era uma prática do Brasil na esfera pública desde o final do Império até os anos 1960, isso acabou. Infelizmente , não temos polêmica no Brasil. Se você acompanhar os últimos 10, 20 anos, acho que sobra dedo na mão para contar as polêmicas políticas, históricas e sociológicas que nós tivemos.

A que você atribui essas leituras equivocadas?

Acho que tem a ver com o processo de redemocratização entre 1979 e 1980, em que começou a se fazer uma leitura no calor da hora do que tinha ocorrido ainda no governo Figueiredo, o crescimento econômico, que é uma das razões do fim do regime. O regime suprimia as liberdades, mas em troca dava o crescimento econômico, e fez isso durante uma década. Porém, no regime Figueiredo, a economia teve uma crise mundial e perdeu um pouco da legitimidade. Acho que, em parte, foi a hegemonia de uma leitura daqueles que tentaram enfrentar o regime fora do campo da política através da guerra, o pessoal da luta amarada. Eles tiveram a hegemonia dessa leitura do passado, de transformar todo o período num período de regime ditatorial. E também porque o regime militar brasileiro não conseguiu construir seus intelectuais orgânicos, não conseguiu construir ou ter intelectuais que legitimassem o seus supostos êxitos, diferente do Estado Novo, que teve os intelectuais no aparelho de Estado, quase todos, inclusive de esquerda, que colaboraram com o Estado Novo. O regime militar não conseguiu fazer a cooptação dos intelectuais de forma eficaz como fez o Estado novo porque era um momento histórico, o momento da guerra fria, e isso acabou criando dificuldades para a cooptação dos intelectuais.

Se escreve pouco sobre a ditadura e o regime militar no Brasil? Ou se escreve muito, mas a mesma coisa?

Se escreve sempre a mesma coisa. Não é possível dizer que se escreve pouco porque, em certos momentos , quando retornaram os exilados e banidos, houve uma literatura enorme que foi publicada sobre o tema. Mas depois disso, acabou caindo no esquecimento, veio a Nova República, que fracassou, e tudo acabou caindo no relativo esquecimento. Ficou essa leitura dos anos de chumbo, como se anos de chumbo fosse de abril de 1964 até março de 1985. Mostro, reiterada vezes, que não foi isso. Isso não significa em momento algum diminuir a gravidade do que houve em relação aos direitos humanos no período. Ao contrário, isso é sempre destacado, mas tento enfrentar também uma outra questão de falácias que foram sendo construídas sobre esses 20 anos e uma delas, sei que é um terreno minado, é a questão da luta armada. A luta armada, em nenhum momento colaborou com a luta pela democracia porque todos os grupos de luta armada defendiam a ditadura do proletariado, ou de viés chinês ou de viés albanês ou de viés socialista. Ninguém fala em democracia em nenhum momento,. Alguns trechos do manual da luta armada do Marighella são uma barbárie. Quebro um pouco essa ideia de que existe um suposto socialismo humanista na luta armada. Pelo contrário. No enfrentamento, se abandona a política e se vai para a guerra. E isso não tem nada a ver com a luta pela democracia. Quem lutou pela democracia? Muita gente. Mas a luta armada foi o caminho para a ditadura do proletariado. Sairíamos da ditadura militar para a ditadura do proletariado. A memória vitoriosa é que a luta armada levou à democracia. Ela não levou.

Trecho de Ditadura à brasileira, de Marco Villa

Veio 1964. E de novo foram construídas interpretações para uso político, mas distantes da história. A associação do regime militar brasileiro com as ditaduras do Cone Sul (Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai) foi a principal delas. Nada mais falso. O autoritarismo aqui faz parte de uma tradição antidemocrática solidamente enraizada e que nasceu com o Positivismo, no final do Império. O desprezo pela democracia foi um espectro que rondou o nosso país durante cem anos de República. Tanto os setores conservadores como os chamados progressistas transformaram a democracia em um obstáculo à solução dos graves problemas nacionais, especialmente nos momentos de crise política. Como se a ampla discussão dos problemas fosse um entrave à ação.

O regime militar brasileiro não foi uma ditadura de 21 anos. Não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 (até o AI-5), com toda a movimentação político-cultural que havia no país. Muito menos os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei de Anistia e as eleições diretas para os governos estaduais em 1982. Que ditadura no mundo foi assim?

Nos últimos anos se consolidou a versão de que os militantes da luta armada combateram a ditadura em defesa da liberdade. E que os militares teriam voltado para os quartéis graças às suas heroicas ações. Em um país sem memória, é muito fácil reescrever a história. A luta armada não passou de ações isoladas de assaltos a bancos, sequestros, ataques a instalações militares e só. Apoio popular? Nenhum.

Argumenta-se que não havia outro meio de resistir à ditadura a não ser pela força. Mais um grave equívoco: muitos desses grupos existiam antes de 1964 e outros foram criados pouco depois, quando ainda havia espaço democrático (basta ver a ampla atividade cultural de 1964-1968). Ou seja, a opção pela luta armada, o desprezo pela luta política e pela participação no sistema político, e a simpatia pelo foquismo guevarista antecederam o AI-5 (dezembro de 1968), quando, de fato, houve o fechamento do regime.

O terrorismo desses pequenos grupos deu munição (sem trocadilho) para o terrorismo de Estado, e acabou sendo usado pela extrema direita como pretexto para justificar o injustificável: a barbárie repressiva.

 

Fonte – Divirta-se

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