Militares mantêm silêncio sobre anos de chumbo e ainda chamam golpe de revolução

Desde que o regime deixou o poder, em 1985, nenhum dos seis governantes civis – nem mesmo a ex-guerrilheira Dilma – teve forças para exigir esclarecimentos como demanda de Estado

Arquivo Brasil Nunca Mais

Passados 50 anos do golpe, militares ainda se recusam a esclarecer episódios sombrios do regime

Os 30 anos contínuos de governos civis – o mais longo da República – blindaram a liberdade e tornaram a democracia mais protegida contra escândalos e aventuras golpistas. Mas não foram suficientes ainda para subordinar de fato as Forças Armadas ao poder civil.

“O primeiro capítulo do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) deve tratar do mutismo militar”, disse o ex-ministro dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi, ao participar, em São Paulo, de um dos seminários sobre os 50 anos do golpe de 1964. “A cultura das Forças Armadas ainda é a do período da Guerra Fria”, emendou.

A observação é uma reclamação unânime na CNV e em todas as entidades que trabalham nas investigações sobre os anos de chumbo: além de se recusar a abrir informações que levem ao paradeiro dos desaparecidos políticos, segundo Vanucchi, as Forças Armadas ainda se guiam pelos mesmos manuais da Escola Superior de Guerra que ensinam às novas gerações militares que o golpe foi uma revolução (a “redentora”) para salvar o país do comunismo.

Nem de longe os militares cogitam um pedido de desculpas por ter derrubado um governo legítimo (a bem da verdade, com o apoio dos meios de comunicação, empresários e muitos políticos que hoje pousam de democratas) para instalar uma ditadura de 21 anos. Também não reconhecem que prenderam arbitrariamente, mataram, torturaram e sumiram com os corpos de ativistas.

Documentos destruídos

Num encontro recente com representantes dos grupos de direitos humanos, ao ser questionado sobre os arquivos militares do período, o ministro da Defesa, Celso Amorim, preferiu seguir a palavra de ordem dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. Reafirmou que os documentos da ditadura foram destruídos, mas não mostrou os protocolos sobre a incineração, obrigatórios em qualquer procedimento do gênero.

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Desde que o regime se retirou do poder, em 1985, nenhum dos seis governantes civis que se alternaram no poder – nem mesmo a ex-guerrilheira Dilma Rousseff, que criou a CNV – teve forças ou vontade política determinante para confrontar o argumento e exigir os esclarecimentos como uma demanda de Estado.

Os militares simplesmente se recusam a tocar no assunto. “Eles precisam obedecer o poder civil e entregar os documentos”, cutuca Heloísa Starling, professora de história da Universidade Federal de Minas Gerais e assessora da CNV.

Os documentos “destruídos” apareceram frequentemente em livros, textos publicados a conta-gotas em sites e blogs da extrema direita ou são exaustivamente explicados e contextualizados por remanescentes da ditadura. Uma dessas publicações é conhecida como “Orvil” (livro ao contrário), que condensa parte dos documentos – mas omite propositalmente o essencial –, e é o livro de cabeceira dos oficiais entrincheirados em entidades como o Clube Militar, no Rio de Janeiro.

Um deles, Sebastião Rodrigues de Moura, o famoso major Curió, “desovou” parte desses papéis para explicar, num livro biográfico sobre sua trajetória – Mata!, do jornalista Leonêncio Nossa – dezenas de execuções de prisioneiros da Guerrilha do Araguaia. Mas ainda não abriu o que sabe e nem disse o que foi feito com os restos mortais dos prisioneiros executados no Araguaia.

Arquivos vivos

Convocado a prestar depoimento em abril numa audiência pública, Curió é, aliás, uma das apostas de revelação da CNV. O comportamento do ex-militar demonstra que se Exército, Marinha e Aeronáutica tivessem disposição de virar a página dos anos de chumbo, os pontos ainda obscuros poderiam ser reconstituídos pelo simples depoimento dos remanescentes.

Curió acompanhou todas as fases da repressão ao Araguaia e, depois de eliminada a guerrilha, instalou-se na região para, a pretexto de administrar o garimpo de Serra Pelada, exercer vigilância permanente no circuito do conflito. Lá usou as terras que pertenciam a militantes do PCdoB para fazer uma reforma agrária ao seu modo e fundou até uma cidade em sua homenagem: Curionópolis, na mesma área da guerrilha, onde foi prefeito várias vezes.

Boa parte dos militares que estiveram na linha de frente da repressão urbana e rural ainda está por aí. Gravita em torno de personagens como o general Nilton Cerqueira, o então comandante que matou Carlos Lamarca no sertão da Bahia e depois comandaria a operação que exterminou a Guerrilha do Araguaia. Os principais oficiais que atuaram na linha de frente da repressão ocupam hoje cargos no Clube Militar.

O que mais intriga os cientistas políticos que analisam os 50 anos do golpe é a postura da atual geração militar que, mesmo não tendo vínculos com os autores da quartelada ou com quem torturou e matou prisioneiros indefesos, adotou a cumplicidade do silêncio. Paulo Vannuchi acha que uma das explicações pode ser a falta de trabalhos de fôlego sobre o papel das Forças Armadas.

“Temos a Celina (Maria Celina D’Araújo, da FGV), o Cavagnari (coronel Geraldo Cavagnari, da Unicamp), mas os estudos acadêmicos, no geral, são pobres”, diz o ex-ministro. Sem maiores referência, as novas gerações que ingressaram nas Forças Armadas depois da ditadura consumiram as teses de autores da própria caserna, a maioria sem distanciamento ou isenção. Ele acha que sem um novo conteúdo acadêmico, que inclua direitos humanos, dificilmente os militares farão uma revisão sobre os equívocos da ditadura. Um desses ideólogos, autor de vários textos, vem a ser o general Álvaro de Souza Pinheiro, o mesmo que admitiu o uso de bombas de napalm no Araguaia, uma história que os militares esconderam por décadas.

Exorcizados

Se há algo que une todos os estudiosos é a constatação de que, depois de um golpe sem motivo justificável, os fantasmas foram exorcizados e os militares já não representam uma ameaça à democracia. “O Lula é mais radical que era o Jango”, diz o cientista político Fernando Limongi, da USP. “A transição foi conservadora demais”, acrescenta Marcos Nobre, da Unicamp, para explicar que, sem rupturas, o longo período de redemocratização – encerrado, na sua opinião, com as manifestações de 2013 – se encarregou de evitar sobressaltos.

A tática do silêncio adotada pelos militares se mantém, mesmo depois de duas decisões judiciais transitadas em julgado – uma na Corte Interamericana de Direitos Humanos e outra na Justiça Federal de Brasília – determinarem o esclarecimento das violações através de condenações impostas ao governo brasileiro.

Preocupado com a onda de manifestações, num ano de Copa do Mundo e de eleições, o Palácio do Planalto sinaliza que não quer problemas com a caserna. Mesmo a CNV patina, sem inspirar resultados concretos, já que está subordinada a uma legislação amparada na interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal, em 2010, a um pedido de revisão da Lei da Anistia.

Omisso durante toda a ditadura, o STF reafirmou que a Anistia de 1979 não permite levar ao banco dos réus quem violou direitos. Nenhuma Comissão da Verdade tem poder de punir, mas poderia, como se fez na África do Sul, ter feito um acordo com os militares em nome da verdade sobre as violações.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos considera a Lei da Anistia o principal entrave para se esclarecer os crimes da ditadura e diz que a decisão do STF está dissociada dos textos das convenções de que o Brasil participou, foi signatário dos documentos e se comprometeu a seguir. A entidade já condenou o Brasil e pede que o governo adeque sua legislação para punir autores de crimes considerados imprescritíveis, como tortura e desaparecimentos forçados.

Poder militar

As condenações não abalaram o poder militar. O artigo 142 da Constituição de 1988 deu às Forças Armadas não apenas o poder sobre a defesa da pátria ou a manutenção da ordem e da lei. Os militares ficaram com o Poder Moderador, o que equivale a dizer que em nome da lei e da ordem, requisitados por um dos Poderes, têm amparo constitucional para intervir.

O poder das Forças Armadas ficou demonstrado em episódios recentes, quando os órgãos de inteligência e segurança discutiram os grandes eventos. Os militares – e não a Polícia Federal, que tem acordos de cooperação com as agências de segurança e informação do mundo inteiro – ficaram com o comando da segurança dos grandes eventos.

O orçamento federal de 2014, com todas as restrições impostas, reservou para o Ministério da Defesa R$ 72 bilhões, o quarto da Esplanada, equivalente a 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB), dos quais R$ 16,1 bilhões serão gastos por Exército, Marinha e Aeronáutica.

O curioso é que depois de quatro governos civis (José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso), foi justamente na gestão petista, iniciada com Luiz Inácio Lula da Silva, que a Defesa teve seu orçamento melhorado. O patamar atual pode ser baixo diante do alegado sucateamento da Força, mas é bem razoável para um País que não tem inimigos externos e apresenta baixíssimos níveis de IDH.

O gesto de boa vontade mais simbólico de um governo formado, em boa parte, por remanescentes da esquerda armada, foi manifestado em dezembro do ano passado, quando a presidente Dilma e seu ministro da Defesa, Celso Amorim, desengavetaram o Projeto F-X2, batendo o martelo pela sueca Saab na disputa pela compra dos 36 caças Gripen NG. Com o negócio, o governo transferirá para a Força Aérea Brasileira R$ 4,5 bilhões.

A subordinação ao Ministério da Defesa é, desde que a pasta criada no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1999, apenas formal. As três forças só perderam o status de ministério, mas não o poder, caracterizado pelo persistente silêncio sobre as violações.

Voz que não se cala

A CNV já fez diversas incursões tentando estabelecer um diálogo produtivo sobre a localização dos desaparecidos, mas a resposta é sempre a mesma: não existem mais arquivos. Uma segunda alternativa recorrente é pedir a análise de documentos cifrados, produzidos pelos órgãos de informação da própria Força.

Os órgãos militares colocam analistas para atender as demandas, mas as respostas não ajudam. “Infelizmente não obtivemos nenhuma grande descoberta”, diz a pesquisadora Glenda Mezarobba, da CNV. Há poucos dias a Marinha devolveu 34 mil páginas de documentos analisados. Algumas das informações mais relevantes apenas confirmam a passagem de ativistas por determinados estabelecimentos militares ou policiais.

O jurista José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça e um dos coordenadores da CNV, diz que o relatório final, previsto para dezembro deste ano, certamente tratará do silêncio das Forças Armadas e trará recomendações sobre a necessidade de mudanças na cultura militar.

“Vamos reescrever a história com todos os acentos”, diz o advogado, sem garantir, no entanto, se haverá resposta aos familiares que há 40 anos aguardam informações sobre o paradeiro dos militantes desaparecidos.

Vannuchi lembra que uma das alternativas para se esclarecer os episódios seria um documento simples, a folha de alteração militar – onde fica registrado local, data e a tarefa desempenhada desde que um soldado senta praça até a sua morte. Mas nem isso as Forças Armadas disponibilizam para a CNV.

Derrotada no enfrentamento, a esquerda ganhou a guerra da informação, mas não consegue avançar além da denúncia. “Nós podemos dizer o que fizemos e por que fizemos. Eles (os militares), não. Por isso, escondem o passado”, diz o jornalista e ex-preso político Ivan Seixas, detido aos 16 anos junto com o pai, Joaquim Seixas, torturado até a morte na sede da Operação Bandeirantes, na Rua Tutóia, Paraíso, na capital paulista.

O pouco que se sabe sobre o período tem chegado à CNV mais pelos familiares dos militantes mortos ou sumidos nas mãos dos agentes da ditadura, do que por resultados da investigação. “Os familiares são o único grito, uma voz que nunca se calou ao longo de todos os últimos 50 anos”, diz Ivan.

 

 

Fonte – IG

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