A investigação sobre os cúmplices econômicos da ditadura que governou a Argentina entre 1976 e 1986 marca um momento de maturidade da democracia que a sucedeu. No julgamento das Juntas Militares, em 1985, essa cumplicidade foi analisada com certo detalhe, mas sem que isso tivesse consequências penais ou administrativas, porque a democracia argentina era frágil e o neoliberalismo prevalecia no mundo.
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A investigação sobre os cúmplices econômicos da ditadura que governou a Argentina entre 1976 e 1986 marca um momento de maturidade da democracia que a sucedeu.Foi logo depois da crise de final de século e da bancarrota desse modelo que se tornou possível incluir na necessária prestação de contas os instigadores do golpe militar, os autores de seu programa de reformatação econômica da sociedade, os participantes dos crimes e os beneficiados das políticas aplicadas. Em 2012, o ex-ditador Jorge Videla decidiu falar sobre aqueles anos em termos diferentes dos habituais. Em entrevistas a um jornalista espanhol e dois argentinos, disse que, com a reeleição da presidente Cristina Kirchner, havia perdido as últimas esperanças, por isso desejava deixar clara sua posição sobre o regime que conduziu enquanto chefe do Exército e da Junta Militar e presidente interino.
Pela primeira vez, admitiu que entre sete e oito mil pessoas detidas e desaparecidas foram assassinadas, e revelou que, para isso, os militares contaram com a ação de importantes setores da sociedade. Entre eles mencionou o setor empresarial “que nos pedia que matássemos outros 10 mil”. Para chegar a esta confissão foi necessário percorrer um longo caminho, que pode ser dividido em duas grandes etapas. Os primeiros vinte anos da democracia argentina, entre 1983 e 2003, foram de afirmação de princípios e valores, mas de forte condicionamento por parte dos poderes interinos. A partir de 2003 foi possível sustentar a primazia da vontade popular soberana acima dos interesses particulares e dos poderes corporativos.
Conadep e Obediência devida
O presidente Raúl Alfonsín teve o enorme mérito de criar a primeira Comissão da Verdade, a Conadep, que investigou o destino dos detidos desaparecidos, cujo informe serviu de base para o julgamento das Juntas Militares. Consciente de sua vulnerabilidade, aquele governo concebeu o julgamento como uma forma de manter os militares sob controle e impedir que voltassem a opinar sobre a política econômica, sobre a cultura, os costumes, um caminho que, a partir de 1930, produziu um golpe de Estado por década, um mais sangrento que o outro.
No mesmo dia de outono de 1985 em que se iniciou o julgamento, Alfonsín recebeu em Olivos duas dezenas de grandes empresários, que lhe prometeram que apoiariam a ação da Justiça contra os ex-comandantes, mas exigiam que modificasse a política econômica que propiciava uma reparação dos danos causados pela ditadura sobre amplos setores da sociedade, coisa que um governo encurralado pela inflação e por um sindicalismo hostil devia aceitar. A promotoria de Julio César Strassera e de Luis Moreno Ocampo contou com o apoio econômico de grandes empresários que tinham sido firmes aliados do poder ditatorial. Nessas condições, qualquer avanço sobre os cúmplices do poder ditatorial seria ilusório.
Alfonsín pretendia, com a condenação a Videla, Massera & Cia encerrar esse processo. Mas os juízes que em dezembro de 1985 firmaram a condenação também abriram, no ponto 30 da sentença, a possibilidade de novos julgamentos contra aqueles oficiais que tiveram capacidade de decisão nas delegacias de Áreas de Segurança ou contra alguns cargos de especial relevância. Desse modo, em 1986, foi julgado e condenado o ex-chefe de política da Província de Buenos Aires, o general Ramón Camps, e em 1987 foram abertos os processos da Escola de Mecânica da Armada – a “megacausa Esma” – e do 1º Corpo do Exército, quando foi ordenada a prisão de oficiais de distintas hierarquias, alguns deles ainda em atividade. Isto provocou um protesto de caras pintadas da Semana Santa de 1987, originando a Lei de Obediência Devida, que deixou sem efeito o processo contra centenas de oficiais.
Indultos e neoliberalismo
Eleito em meio à primeira hiperinflação e aos saques em Rosário e na Grande Buenos Aires, o presidente Carlos Menem deu indulto a todos os militares condenados e em julgamento e aderiu com entusiasmo às políticas de desregulamentação, privatização e à abertura irrestrita do Consenso de Washington, aprofundando a transformação econômica e social iniciada durante a ditadura. Tanto as leis de anistia de Alfonsín quanto os decretos de indulto de Menem excluíram dois crimes: a apropriação dos filhos dos detidos desaparecidos e o roubo de seus bens. Tais janelas ficaram abertas durante anos, sem que os juízes se servissem delas para avançar, para além de algumas medidas de instrução penal.
Quando parecia que a questão tinha desaparecido do interesse público, a confissão do membro da Marinha Adolfo Scilingo, em março de 1995, causou uma profunda comoção. O capitão de fragata da Armada narrou como havia atirado no mar 30 pessoas ainda com vida de aviões em dois voos destinados a eliminar prisioneiros da Esma. Soma-se às repercussões desta confissão a gigantesca mobilização popular de 24 de março de 1996, ao completarem vinte anos do golpe.
O presidente fundador da organização Centro de Estudios Legais e Socialis (Cels), Emilio Mignone, defendeu que as leis de impunidade impediam de castigar os responsáveis, mas não suprimiam a obrigação do Estado de informar o que aconteceu com cada uma das vítimas, conforme Scilingo havia demonstrado ser possível. A Câmara Federal da Capital lhe deu razão e assim ficaram formulados dois direitos concorrentes: o individual – dos familiares, de saberem o destino sofrido por seus entes queridos – e o coletivo – da sociedade, de conhecer o que aconteceu durante o terrorismo de Estado e quem foram os responsáveis. Concomitantemente aos julgamentos pela verdade, em diferentes países aconteceram processos baseados no princípio da soberania, pelo desaparecimento ou pelo assassinato na Argentina de cidadãos da França, da Itália ou da Alemanha.
A maior inovação foi promovida pelo promotor espanhol Carlos Castresana, que impulsionou em Madri o julgamento de militares argentinos por crimes cometidos contra cidadãos argentinos na Argentina. O juiz Baltasar Garzón aceitou este princípio de justiça ou de jurisdição universal, segundo o qual os crimes contra a humanidade podem e devem ser perseguidos onde for possível, independentemente da nacionalidade das vítimas e dos repressores, e abriu um processo pelo qual solicitou a extradição de uma centena de militares argentinos, rejeitada por Menem e por seu sucessor, o presidente Fernando de la Rúa, da União Cívica Radical (UCR).
A anulação das leis
Aplicando o mesmo princípio, Garzón conseguiu que o ex-ditador chileno Augusto Pinochet fosse preso em Londres em 1998. Tive o privilégio de assistir a uma das audiências do julgamento de extradição, em Westminster, durante a qual a advogada de defesa de Pinochet disse que deveria ser aplicado a ele o princípio da imunidade soberana. Na ocasião, deu o pior exemplo imaginável, quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos estava para completar 50 anos. Disse que, se Hitler tivesse sobrevivido à guerra e quisesse tomar chá na loja Harrods, a Justiça britânica não o poderia ter prendido.
O tribunal máximo de Justiça britânico pediu a extradição de Pinochet para a Espanha, mas os governos da Inglaterra e do Chile concordaram em enviá-lo a Santiago mediante o compromisso de que ali seria julgado, como aconteceu, apesar de ter falecido antes da sentença. Estes processos incentivaram os juízes argentinos que, em poucos meses, ordenaram a prisão dos ex-ditadores Videla e Massera, em duas causas que logo somariam uma única investigação sobre o plano sistemático de roubo de bebês. A audiência nacional de Madri condenou Scilingo a 640 anos de prisão.
Em 1998, como sugestão da filha do escritor e militante detido desaparecido Rodolfo Walsh, o Congresso derrubou as leis de Ponto Final e Obediência Devida, mas não conseguiu os votos necessários para declarar nula sua aplicação prévia. Nesse contexto, o CELS pediu à Justiça que anulasse as leis e os decretos de impunidade, considerando que, ao se aproximar do 25º aniversário do golpe, a crescente mobilização social equilibraria as pressões secretas dos poderes interinos. Assim foi e, em março de 2001, um juiz as declarou nulas e inconstitucionais, razão para reabrir os processos encerrados.
Poucos dias depois, a Corte Interamericana de Direitos Humanos pronunciou uma sentença similar no caso peruano de Barrios Altos, estabelecendo que as graves violações aos direitos humanos não podiam ser anistiadas nem prescreverem pelo passar do tempo. A decisão se repetiu em distintos lugares do país e foi apoiada por diversos juízes de primeira instância, câmaras de apelações e pela Procuradoria Geral da Nação. Três precedentes importantes eram as sentenças da Suprema Corte que, durante os governo de Alfonsín, Menem e De la Rúa, declararam imprescritíveis os crimes cometidos pelos criminosos nazistas Franz Leo Schwammberger, Erik Priebke e pelos agentes da ditadura chilena em Buenos Aires.
Em 2003, ao assumir a presidência, Néstor Kirchner tinha cerca de uma centena de chefes das Força Armadas e de Segurança sob custódia pelo roubo de bebês, de bens e por conta da reabertura dos processos. Faltava, porém, a confirmação da Suprema Corte de Justiça, que chegou em 2005, para que esses processos chegassem à instância do debate e da sentença.
Memória, Verdade e Justiça
Kirchner produziu uma ruptura nítida com a política seguida até então. Em sua primeira semana de governo, aposentou as cúpulas das três Forças Armadas, que tentavam reaparecer como Partido Militar e convalidar as leis de impunidade; pediu ao Congresso que anulasse tais leis e baseou sua política nos princípios de Memória, Verdade e Justiça. A proposta do Cels ordenou ao chefe do Exército descer os quadros dos ex-ditadores Videla e Benito Bignone da galeria de honra do Colégio Militar, do qual tinham sido diretores, e recuperou o prédio da ESMA para que ali fosse erguido o Museu da Memória, cuja criação fora determinada pela Legislatura portenha.
A partir de 2006, tribunais de todo o país começaram a emitir sentenças pelos crimes da ditadura. Desde então e até dezembro de 2013, foram pronunciadas 494 condenações e 47 absolvições, ou seja, quase 10%. Apenas 41% das condenações foram à prisão perpétua. Entre os processados, 43% aguardam a sentença em liberdade. E 15% morreram antes da sentença, porcentagem não maior do que o número de vítimas e de familiares que morreram sem que a Justiça se pronunciasse. Os 541 processos concluídos com uma sentença são apenas 26% do total das causas que estão em condições de serem levadas a julgamento.
Tudo isto mostra que se trata de julgamentos em que se respeita o devido processo legal e o direito de defensa dos acusados, em que ninguém é condenado sem sólidas provas, apesar de todas as demoras e das dificuldades de organização – em boa medida devido à reticência do Poder Judiciário. Muitos de seus integrantes resistiram em processar aqueles que os governaram com sua colaboração naqueles anos, e estes julgamentos foram bem-sucedidos na reformulação do rol militar da sociedade. Nem sequer nos momentos de intensa crise política, social e econômica algum setor das Forças Armadas contemplou a possibilidade de desalojar as autoridades civis.
Os desafios à institucionalidade democrática vieram, em contrapartida, dos mesmos setores sociais e econômicos que acompanharam a ditadura, motivo por que ninguém lhes pediu as contas. Isto se tornou evidente em 2008, quando a Sociedade Rural declarou um extenso lockout em protesto pelo aumento dos impostos nas vendas de grãos e oleaginosas para o exterior, organizando piquetes e bloqueio de rotas em todo o país com o expresso propósito de desabastecer as grandes cidades, conforme confessou o presidente da Sociedade Rural Hugo Biolcati, forçar a renúncia da presidente Cristina Kirchner. Os jornais Clarín e La Nación, sócios na feira de negócios agropecuários Expoagro, que cada ano move transações de 300 milhões de dólares, apresentaram a atividade destituinte como um gesto histórico.
No ano passado, fui depor como testemunha no julgamento por crimes cometidos na região de Rosário. Argumentei que os militares e policiais que cometeram os crimes não eram lunáticos ávidos por sangue que agiram por maldade, mas sim executores de um plano nacional que teve autores e beneficiados no poder econômico. No dia seguinte, um dos militares processados pediu para ampliar sua declaração e disse que as visitas ao comando de “gente da sociedade, eclesiásticos, empresários e da justiça” eram constantes.
No novo contexto nacional começaram a progredir em diferentes pontos do país os julgamentos contra homens de negócios que colaboraram com a ditadura, seja entregando listas de trabalhadores e ativistas sindicais para serem sequestrados porque suas demandas prejudicavam a produção ou aumentavam os custos; emprestando as instalações de suas fábricas para o funcionamento de campos de concentração ou carros para fazer sequestros e as transferências dos presos. Mas falta uma leitura sistemática desses acontecimentos que, além de individualizar os responsáveis, detecte pautas de comportamento e traga um panorama global do que aconteceu.
Na semana passada, o deputado nacional Héctor Pedro Recalde apresentou um projeto de lei para criar uma comissão bicameral investigadora que faça essa tarefa que propusemos no livro “Cuentas pendientes” (Contas pendentes). Foi acompanhado no ato público de apresentação do presidente da Câmara dos Deputados, Julián Domínguez, e entre outros que assinaram o projeto, como os deputados Eduardo De Pedro, Juliana Di Tulio, Adela Segarra, María Teresa García, Andrés Larroque, Carlos Kunkel, Nancy Parrilli, Verónica Magario, Jorge Rivas, Adriana Puiggros, Edgardo De Petris, Juan Cabandié, Horacio Pietragala e Carlos Raimundi. Esta é a rota para democratizar a democracia
(Por Horacio Verbitsky, na Página/12* Tradução: Daniella Cambaúva, na Carta Maior)
Fonte – Vermelho