Generais omitiram, na resposta de 455 páginas em que negam que houve tortura nas dependências militares, até os 22 dias que a presidente Dilma Rousseff amargou no DOI CODI; quem está mentindo?
O Exército, a Marinha e a Aeronáutica mobilizaram durante quatro meses seus oficiais-generais mais qualificados para desfechar o mais canhestro ataque militar dos últimos tempos no Brasil — fuzilando o bom-senso, torpedeando a inteligência, bombardeando a memória nacional e condenando ao extermínio a verdade segregada nos campos de concentração erigidos pela mentira
Para atender a um minucioso requerimento de 115 páginas enviado em 18 de fevereiro passado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), as Forças Armadas (FFAA) reuniram suas tropas para produzir um monumento à insensatez e ao deboche: um palavroso, maçante, insolente, imprestável conjunto de 455 páginas de relatórios militares que não relatam, de sindicâncias que não investigam, de perguntas não respondidas, de respostas não perguntadas e de conclusões nada conclusivas, camufladas em um cipoal de decretos, leis, portarias, ofícios e velhos recortes de jornais falecidos.
Um histórico fiasco que passou em branco pela indolente imprensa brasileira, confinada a um registro burocrático, preguiçoso, sobre o sonso documento de resposta das FFAA.
A maçaroca militar ignorada pelos jornalistas tem de tudo. Tudo para defender o indefensável, para sustentar o insustentável, para dizer o indizível na novilíngua dos generais: nunca houve tortura, nunca aconteceu nenhuma grave violação aos direitos humanos nos quartéis nos 21 anos do regime militar imposto em 1964 pelas Forças Armadas que derrubaram o presidente João Goulart.
A sindicância das FFAA lembra, mais pela tragédia do que pela piada, a histórica charge do humorista e jornalista Millôr Fernandes (1923-2012) na edição de maio de 1974 da revista Veja, que mostra um preso esquálido pendurado na parede de uma masmorra.
Da fresta na porta da cela surge o comentário consolador do carcereiro: “Nada consta”. Por causa da piada, a ditadura sem graça dos generais endureceu ainda mais a censura sobre a revista então dirigida por Mino Carta.
Em resumo, é a pilhéria que repetem exatos 40 anos depois os militares brasileiros, diante das indagações da CNV sobre tortura e morte em seus quartéis: “Nada consta”.
Para expor esta cômica contradição em termos, que põe em dúvida até a existência da ditadura, os generais brasileiros recorreram a um arsenal de papel concentrado em 268 páginas do relatório da Marinha, 145 da Aeronáutica e 42 do Exército, um conjunto sem serventia que a Comissão Nacional da Verdade fuzilou sem dó nem piedade:
“Deplorável, lamentável”, definiu com firmeza a CNV, em uma desalentada nota oficial assinada pelos seis comissários. Aturdida pela ‘completa incorreção’ da conclusão das FFAA, a CNV lembrou aos generais distraídos que o Estado brasileiro reconhece desde 1995, por lei aprovada pelo Congresso, as condutas criminosas de militares e policiais durante a ditadura, “incorrendo inclusive no pagamento de indenizações por conta justamente de fatos agora surpreendentemente negados”.
Durante meses, os pesquisadores da CNV, auxiliados por especialistas da Universidade de São Paulo (USP), juntaram documentos, testemunhos e perícias para montar um consistente relatório que prova a ocorrência de graves violações aos direitos humanos nos sete endereços mais notórios da repressão coordenada pelos militares, situados no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco.
São cinco quartéis do Exército, uma base da Marinha e outra da Aeronáutica, com os nomes, sobrenomes, datas, depoimentos e horrores sobre nove casos de mortes sob tortura e outros 17 presos políticos torturados.
Por recato, talvez, a CNV não incluiu entre eles o nome de uma guerrilheira que sobreviveu às torturas em um dos sete endereços que marcam a face mais terrível da repressão brasileira: a rua Tutoia, na capital paulista, sede da pioneira ‘Operação Bandeirante’ (OBAN), sucedida ali pelo sangrento DOI-CODI do II Exército, sob o comando do então major Carlos Alberto Brilhante Ustra.
No início de 1970, naquele lugar listado pela CNV, padeceu durante 22 dias de suplício uma estudante mineira de 22 anos, integrante dos quadros de comando do grupo guerrilheiro Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares), onde era conhecida pelos codinomes de ‘Estela’ ou ‘Vanda’. Na ficha da polícia, ela era identificada como Dilma Vana Rousseff, ou Linhares, seu nome de casada.
Passadas quatro décadas, a guerrilheira, presa e martirizada ‘Estela’ tornou-se a presidente da República Dilma Rousseff. Foi investida assim, pela força da democracia, na condição de Comandante-Suprema das Forças Armadas. A torturada Dilma é, desde 2011, a chefe incontestável dos comandantes militares que hoje negam a tortura. Cria-se, assim, uma insuperável contradição ética e institucional entre a autoridade máxima do País e seus comandados de farda:
Quem está dizendo a verdade? A presidente da República ou os comandantes das FFAA?
Ou, dito de outra forma, quem está mentindo? Dilma ou os generais?
AL CAPONE E ARISTÓTELES
Com a sutileza possível, a CNV evitou no seu relatório a pergunta direta que pressupunha a não-resposta militar de sempre: quem torturou?, quem matou?
Em vez disso, os comissários preferiram um atalho legal, buscando inspiração talvez no exemplo de investigação lateral que deu certo contra Al Capone (1899-1947), o maior gangster dos Estados Unidos que aos 30 anos, no auge da Lei Seca, faturava o equivalente hoje a US$ 1,3 bilhão anuais.
Dono de um império criminoso que controlava o jogo, corridas de cavalo, clubes noturnos, bordéis, cervejarias e destilarias clandestinas, Capone sobreviveu impune à lei, até tropeçar num esperto agente do Tesouro americano, Eliott Ness, que vasculhou deslizes no Imposto de Renda que levaram o chefão da Máfia de Chicago aos tribunais e, dali, a uma pena de 11 anos de prisão.
Como ‘Os Intocáveis’ de Ness, os comissários da CNV miraram a burocracia da ditadura, pedindo aos comandantes militares o “esclarecimento das circunstâncias administrativas que levaram ao desvirtuamento do fim público estabelecido para aquelas instalações militares”.
De forma elegante, a CNV admitia a generosa hipótese do ‘desvio de finalidade’ dos centros de tortura, abrindo a brecha legal para que os atuais comandantes, reconhecendo o ‘desvio’, mostrassem cabalmente que as Forças Armadas da democracia nada têm a ver ou a dever às Forças Armadas da ditadura.
Uma chance preciosa para mostrar que as FFAA de 2014 de Dilma Rousseff não guardam nenhum elo com as FFAA de 1970 do general Garrastazú Médici. Até o recruta mais inexperiente entenderia a educada exceção que os comissários cravaram no ofício enviado ao ministro da Defesa, Celso Amorim:
“Não se pode conceber que próprios públicos, afetados administrativamente às Forças Armadas, pudessem ter sido formalmente destinados à prática de atos tidos por ilegais, mesmo à luz da ordem jurídica vigente à época da ocorrência das graves violações de direitos humanos, objeto de investigação”, ressalvaram os comissários.
Os generais, que deixaram de ser recrutas há meio século, preferiram se fazer de desentendidos — e responderam, em um sincronizado exercício de ordem unida, que “não houve desvio”. Caíram assim na armadilha do silogismo de Aristóteles em que duas premissas verdadeiras levam a uma conclusão inescapável, terrível.
Premissa maior:
A CNV prova que havia tortura e morte nos sete endereços militares apontados.
Premissa menor:
As FFAA respondem que não houve desvio de finalidade nestas instalações.
Conclusão:
Logo, tortura e morte eram a finalidade daqueles lugares das FFAA.
Foi a melancólica conclusão do jornalista Jânio de Freitas, na sua coluna na Folha de S.Paulo [‘O que as palavras dizem’, 22/junho/2014], assim expressa:
“Se os chefes militares consideram que nessas práticas não houve desvio de finalidade, está implícita a concepção de que tortura, assassinatos e desaparecimentos são uma finalidade do Exército, da Marinha e da Aeronáutica em suas instalações. E salve-se quem puder”.
A CNV relacionou, para a Aeronáutica, uma morte e quatro casos de tortura na sua mais famosa instalação, a base aérea do Galeão, ao lado do aeroporto Tom Jobim, no Rio de Janeiro, onde estão baseados os cinco esquadrões de transporte que operam os 23 Hércules C-130 da FAB.
Resposta do tenente-brigadeiro do ar Juniti Saito, comandante da Aeronáutica, na conclusão da sindicância:
“Encaminho a Vossa Excelência os autos da sindicância, informando não houve desvirtuamento do fim público estabelecido para a Base Aérea do Galeão, no período em questão, que pudesse configurar desvio de sua finalidade regulamentar”.
A CNV apontou, para a Marinha, dois casos de torturas na base naval da Ilha das Flores, encravada na Baía da Guanabara. Resposta do almirante-de-esquadra Júlio Soares de Moura Neto, comandante da Marinha, na conclusão da sindicância:
“Enfim, à luz da ordem jurídica vigente à época, não se pode falar em desvirtuamento do fim público estabelecido para a instalação em comento, justamente porque esse local foi criado com o fim específico de se constituir em estabelecimento prisional”.
A CNV indicou, para o Exército, oito mortes e 11 casos de tortura em cinco quartéis diferentes, em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte. Resposta do general Enzo Martins Peri, comandante do Exército, na conclusão da sindicância:
“Uma vez que estes destacamentos eram órgãos oficialmente instituídos, foram formalmente instalados nos imóveis destinados ao seu funcionamento, não havendo qualquer registro de utilização dos mencionados imóveis para fins diferentes do que lhes tenha sido atribuído; portanto, não se verificou o alegado desvio de finalidade”.
O chefe do Exército se referia sem desvios aos Destacamentos de Operações de Informações (DOI), o braço executor dos temidos DOI-CODI, a coordenação repressiva que sucedeu em 1970 a Operação Bandeirante (OBAN), criada no ano anterior em São Paulo com o financiamento de empresários e banqueiros, articulados pelo ministro da Fazenda do Governo Médici, Delfim Netto.
A CNV relacionou os três DOI mais ativos da ditadura, instalados nos IV Exército (Recife), II (São Paulo) e I (Rio de Janeiro). Os próprios documentos secretos do Exército garimpados pela CNV provam, sem ironias, as finalidades sem desvio dos destacamentos de busca e apreensão montados pela repressão militar.
Os DOI paulista e carioca, os mais importantes do país, concentram nas duas maiores capitais brasileiras quase um quarto (23,8%) das vítimas oficiais da ditadura brasileira. Morreram ali, segundo documentação recolhida pela CNV, pelo menos 81 das 339 pessoas assassinadas sob tortura na ditadura — 51 no DOI-CODI da rua Tutoia, 30 no DOI-CODI da rua Barão de Mesquita.
Esperava-se que o Exército, bem mais poderoso e equipado do que a CNV, pudesse trazer dados ainda mais completos em sua sindicância, após disparar uma rajada de 10 diligências que se desdobraram em quatro ofícios para apurar os fatos.
A péssima pontaria da sindicância — presidida pelo general de divisão José Luiz Dias Freitas e deglutida em seco pelo comandante do Exército e pelo Ministro da Defesa — pode ser comprovada já nos dois ofícios (DIEx números 01 e 02, de 28 de março passado) enviados aos Comandos do Leste e Sudeste (antigos I e II Exércitos), solicitando informações sobre os DOI da Tutoia e da Barão de Mesquita “no período compreendido entre 18 SET 1946 e 5 OUT 1988?.
Não é preciso nenhum curso elementar da caserna para saber que o DOI-CODI foi criado apenas em 1970, tornando inúteis os 24 anos anteriores citados pelo general.
UM RESUMO INFAME
Apesar dos aparentes esforços, os militares parecem pouco diligentes em sua investigação. Na ‘Parte Expositiva’ de seu relatório (folha 159), o general sindicante chega a uma espantosa conclusão: “…não foram encontrados registros institucionais sobre a criação dos DOI”.
Um fracasso monumental, já que o Exército alega ter realizado pesquisas em seis acervos oficiais: os do Arquivo Nacional no Rio e Brasília, a biblioteca do STM (Superior Tribunal Militar) e três centros de Pernambuco. Para sua inepta pesquisa foram feitas, diz o general, “pesquisas históricas em publicações, livros, jornais, artigos e mídia em geral”. Apesar de tanto esforço, a sindicância conseguiu não descobrir nada.
A prova suprema do enorme malogro da pesquisa do Exército, que beira a má-fé e zomba da inteligência do povo brasileiro, está expressa em uma citação mais enxuta que caberia em uma única mensagem de Twitter — exatos 128 toques com espaço, apenas 17 palavas — extraída com o bisturi da maldade pelo general sindicante na página de um só livro, talvez o mais importante sobre a repressão.
Dali, o Exército pescou duas míseras linhas, que nada esclarecem, mas tudo sugerem sobre o flácido relatório da força terrestre:
No livro Brasil: Nunca Mais, em sua página 74, encontra-se o seguinte texto:
“[…] Dotados de existência legal, comandados por um oficial do Exército, providos com dotações orçamentárias regulares, os DOI-CODis […]”.
Se o responsável pela pesquisa do Exército fosse um pouco menos desleixado, tentaria não tropeçar nas reticências salvadoras da frase acima e teria transcrito todo o parágrafo, que acrescenta oito linhas essenciais à verdade dos fatos. Eis o que diz, além da omissão medida pelas reticências, o trecho completo da página 74 do Brasil: Nunca Mais que a distraída sindicância militar esqueceu de reproduzir na íntegra de sua resposta à CNV:
“[…] Dotados de existência legal, comandados por um oficial do Exército, providos com dotações orçamentárias regulares, os DOI-CODIs passaram a ocupar o primeiro posto na repressão política e também na lista das denúncias sobre violações aos Direitos Humanos. Mas tanto os DOPS (Departamento de Ordem Política e Social, de âmbito estadual) como as delegacias regionais do DPF (Departamento de Polícia Federal) prosseguiram atuando também em faixa própria, em todos os níveis de repressão: investigando, prendendo, interrogando e, conforme abundantes denúncias, torturando e matando. […]”
A falha evidente não é só da transcrição incompleta, indecorosa. Faltou ao Exército a sensibilidade para dar a devida importância à sua fonte. O “Brasil: Nunca Mais” não é apenas um livro. É um marco de resgate histórico, um empreendimento corajoso que avança sobre a memória da repressão política no país. O Projeto Brasil: Nunca Mais vai muito além das parcas 17 palavras selecionadas com fino tato pelos generais para não melindrar os quartéis.
Começou em plena ditadura, em 1979, quando um grupo de advogados passou a coletar informações e evidências de violações aos direitos humanos praticados pelo aparato repressivo do Estado. Realizaram esse trabalho justamente nos arquivos insuspeitos do Superior Tribunal Militar (STM), aproveitando o prazo de 24 horas que cada advogado tinha para a custódia provisória dos autos.
Em uma secreta operação de inteligência que faria inveja aos generais, o grupo se organizou sob a liderança em São Paulo dos respeitados comandantes de três credos distintos: o cardeal Paulo Evaristo Arns, o pastor presbiteriano Jaime Wright e o rabino Henry Sobel.
Com os recursos captados em Genebra junto ao Conselho Mundial de Igrejas – organização ecumênica de 120 países onde se espalham 500 milhões de fiéis de 340 igrejas diferentes -, o grupo alugou discretamente uma sala com três máquinas xerox em um prédio do centro de Brasília, próximo à sede do STM.
Começou então o revezamento diário para retirar e vasculhar milhares de pastas de processos dos arquivos do STM. Durante mais de cinco anos, atravessando madrugadas, os advogados reproduziram pacientemente naquela sala discreta quase um milhão de páginas de 710 processos políticos que transitaram pela Justiça Militar entre 1964 e 1979.
Todo o material foi fotocopiados em 543 rolos de microfilme. Era um tesouro: a história viva contada nas próprias cortes castrenses pelas vítimas da tortura e da repressão impostas pelo regime militar brasileiro — sem desvios de finalidade — para extrair as confissões sangradas de seus presos políticos.
Tudo isso rendeu um documento de 6.891 páginas de horrores distribuídos por 12 volumes do Projeto A, dos quais se fizeram 25 cópias para serem guardados em segurança no exterior, longe da censura do regime.
O cardeal Arns, preocupado com a disseminação dessas informações para o grande público, pediu um Projeto B, um resumo da vasta pesquisa em um único livro. A edição, em espaço de texto que correspondia a 5% do original, foi realizada pelo jornalista Ricardo Kotscho e pelo frei Betto, autores do texto final de enxutas 312 páginas do livro “Brasil: Nunca Mais”, lançado em julho de 1985 — quatro meses após a saída, pela porta dos fundos do Palácio do Planalto, do último general-presidente da ditadura, João Figueiredo.
O livro, um sucesso editorial que já teve mais de 40 edições no Brasil, foi lançado nos Estados Unidos, um ano depois, sob o título de Torture in Brazil, pela editora Random House.
Toda essa épica aventura, de números superlativos e coragem inaudita, ganhou um infame resumo de meras 17 palavras na sindicância do Exército, que passa com cara de paisagem pelo técnico, certeiro relatório da CNV.
Não há, na resposta militar, nenhuma alusão ou reação aos casos de tortura e morte alinhados pela Comissão da Verdade com minúcia de nomes, datas e locais. Se prestasse atenção pelo menos ao sumário do livro Brasil: Nunca Mais, o Exército poderia ter notado a ênfase dos títulos, nada ficcionais, dos seis capítulos da obra prefaciada pelo cardeal Paulo Evaristo Arns:
Primeira Parte > Castigo Cruel, Desumano e Degradante
Segunda Parte > O Sistema Repressivo
Terceira Parte > Repressão Contra Tudo e Contra Todos
Quarta Parte > Subversão do Direito
Quinta Parte > Regime Marcado por Marcas da Tortura
Sexta Parte > Os Limites Extremos da Tortura
Se tivessem a audácia de consultar o Sumário A, com a íntegra das quase 7 mil páginas dos 12 volumes do Projeto Brasil: Nunca Mais, os generais descobririam que três volumes do Tomo V têm o mesmo título: “As Torturas”. O volume 4 tem um tema ainda mais radical: “Os Mortos”.
O EXÉRCITO INSUBORDINADO
Mas os generais nem precisariam perder tempo lendo o livro que desprezaram. Poderiam ter acessado o arquivo digital do Brasil: Nunca Mais, no link http://bnmdigital.mpf.mp.br/, que desde 2013 dá acesso universal aos seus arquivos, em uma parceria entre o Ministério Público Federal e o Arquivo Público de São Paulo.
Lá, curiosamente, os documentos não consultados pelo Exército identificam e registram os termos que o Exército não conseguiu localizar em seus registros. Basta teclar em qualquer computador com acesso à internet e o milagre se faz. Aparecem 638 indicações no acervo digital quando se busca o desaparecido ‘destacamento’ — 134 entradas para a palavra ‘Destacamento de Operações de Informações’ e outras 504 para a dupla ‘DOI-CODI’.
A ilustre antecessora aparece 927 vezes quando se tecla ‘Operação Bandeirante’ (285 ocorrências) ou simplesmente OBAN (642 registros). Quando não há desvio de finalidade em uma pesquisa honesta, ela revela muita coisa, ou quase tudo.
O Exército deveria ter seguido a metodologia séria da CNV, que já na apresentação de seu relatório preliminar identifica as fontes principais de sua pesquisa: são documentos produzidos pelo próprio Estado brasileiro que o Exército parece não levar a sério.
A CNV se valeu dos processos deferidos pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e, para nomear os presos políticos mortos por torturas aplicadas por agentes do Estado em instalações militares, foram pesquisados processos aprovados pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Ali mesmo, onde dá expediente a Comandante-Suprema das Forças Armadas, que na juventude sentiu na carne as torturas, infelizmente não registradas pelo Exército .
Não é novidade, aliás, o desprezo que as Forças Armadas da democracia dedicam aos trabalhos que visam apurar os abusos praticados pelas Forças Armadas da ditadura, que durante duas décadas montou um aparato repressivo estimado em 24 mil agentes que prenderam por razões políticas cerca de 50 mil brasileiros e torturaram algo em torno de 20 mil pessoas – quase três a cada dia do regime militar.
Os militares já tinham reagido mal, em agosto de 2007, quando o Palácio do Planalto lançou o livro “Direito à Memória e à Verdade”, um fundamental trabalho de 11 anos da Secretaria Especial de Direitos Humanos, iniciado ainda no Governo Fernando Henrique Cardoso (secretário José Gregori) e concluído no Governo Lula (secretário Paulo Vannuchi), reconhecendo pela primeira vez a responsabilidade do Estado brasileiro na violência oficial, com a lista de 339 mortos e desaparecidos pela repressão política.
Acintosamente, nenhum chefe militar compareceu à cerimônia solene presidida no Planalto pelo comandante-em-chefe das Forças Armadas, o então presidente Lula. Eram os mesmos chefes militares — o general Peri, o brigadeiro Saito e o almirante Moura Neto — que Lula deixou como legado a Dilma e que permanecem em seus postos desde 2007, há mais tempo do que um mandato presidencial.
São os mesmo chefes militares que, em maio de 2012, se mantiveram acintosamente estáticos, mãos no colo, enquanto a plateia no salão principal do Palácio do Planalto aplaudia com emoção o ato da presidente Dilma Rousseff que instalava oficialmente a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de investigar sem desvios os abusos praticados, entre outros, pelas Forças Armadas. [Veja revista Brasileiros, edição nº 78, de janeiro de 2014]
O “Direito à Memória e à Verdade”, um indesmentido livro-relatório de 500 páginas — preciso pelos fatos e comovente pelos horrores que descreve —, é acintosamente ignorado pelo Exército, que não o cita uma única vez em sua sindicância. Mas, como outros, já está disponível na internet, no portal do Governo Federal (http://portal.mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_direito_memoria_verdade/), com todos os dados que o Exército não conseguiu encontrar em seus registros.
O DOI, por exemplo, aparece em 683 citações. A dupla DOI-CODI surge 283 vezes no arquivo digital. A OBAN ou Operação Bandeirante, outras 46 vezes. Palavras inequívocas como ‘tortura’ (523 citações), ‘torturador’ (47) e ‘pau-de-arara’ (21) aparecem na pesquisa digital sempre associadas aos DOI e às instalações militares que, sem desvio de função, eram administradas e operadas pelas Forças Armadas.
Os dados que o Exército estranhamente não conseguiu descobrir em seus próprios arquivos ou não procurou nos acervos abertos do próprio Governo foram encontrados pelo mesmo Exército em duas ‘obras literárias’, na maliciosa expressão pinçada pela sindicância militar para definir ‘literário’. Segundo o paisano Dicionário Houaiss, o adjetivo traduz, no seu sentido figurado, “uma imagem artificial da realidade”.
MIOPIA E AMNÉSIA
A primeira fonte ‘literária’ é um livro insuspeito, “Rompendo o Silêncio”, do coronel reformado de Artilharia Carlos Alberto Brilhante Ustra, por acaso o criador e primeiro comandante do DOI da Tutoia, o endereço mais letal do Exército e que, por conclusão de seus comandantes, nunca teve o “alegado desvio de finalidade”.
A segunda é “A Ditadura Escancarada”, do jornalista Elio Gaspari, que sustenta boa parte de sua autópsia em quatro volumes da ditadura nos alentados arquivos do general Golbery do Couto e Silva, cérebro da conspiração que levou à derrubada de João Goulart.
Só ali o desatento Exército brasileiro conseguiu afinal garimpar a secreta Diretriz Presidencial de Segurança Interna que o general Garrastazú Médici inventou, em março de 1970, para unificar a repressão sob o comando da força terrestre. Dali nasceriam seis meses depois, na primeira quinzena de setembro de 1970, os DOI, “todos sob a coordenação do próprio Comandante de cada Exército”, como registra o sagaz coronel Brilhante Ustra.
Alguém precisa apresentar os arquivos do mais notório comandante do DOI da Tutoia aos atuais chefes militares, que aparentemente não estão lendo as coisas devidas.
O Exército justifica sua estrábica pontaria alegando que não existem nos seus arquivos os documentos das décadas de 1960 e 1970 classificados como sigilosos. Mais do que miopia, o caso aqui envolve amnésia coletiva.
Nenhum oficial com estrelas no ombro parece ter lembrado de recorrer a um acervo precioso, e até hoje intocado: os arquivos do Centro de Informações do Exército (CIE), o serviço secreto da força, o braço operacional que está na linha de frente da repressão à esquerda armada.
Os nomes mais afamados dos DOI, como os coronéis Brilhante Ustra (II Exército) e Paulo Malhães (I Exército) eram egressos do CIE. Os registros do Centro de Informações certamente dariam o conteúdo que falta à sindicância do Exército porque, afinal de contas, o CIE mais do que fazia. O CIE, por dever de ofício, sabia.
O general sindicante, que diz pouco saber, confessa que não conseguiram encontrar nenhum registro sobre a destinação administrativa e o uso dos imóveis destinado ao DOI no Rio e no Recife. E dá a razão: “Tal fato se deve ao caráter sigiloso dado aos documentos que tratavam sobre Segurança Interna à época. Salienta-se que essa documentação foi legalmente destruída, bem como os eventuais Termos de Destruição, tudo devidamente apurado por meio do Procedimento Investigatório”.
Traduzindo o militarês: os documentos que poderiam detalhar o uso de instalações transformadas em centros de tortura e morte foram despedaçados e os documentos que permitiram esse abuso de lesa-memória também foram destroçados. Simples assim.
Não são apontados os nomes dos responsáveis por essa dupla destruição e as razões que privam o país, agora, de conhecer detalhes escabrosos de seu passado recente.
Do sangrento DOI de São Paulo, o único documento que sobreviveu a este apagão burocrático não é militar, é civil. Conforme a sindicância, sobrou apenas o “Memorial Descritivo” da prefeitura de Paulo Maluf, de agosto de 1971, formalizando a concessão de uso ao então Ministério do Exército, ‘a título precário’, do imóvel que tornaria notória a esquina das ruas Tutóia e Tomás Carvalhal, no bairro paulistano de Vila Mariana.
Derrotado em seu hercúleo esforço de busca e apreensão de documentos úteis que pudessem atender à CNV, o Exército chega a esta opaca conclusão:
“Portanto, infere-se que, do ponto de vista administrativo, os DOI constituíam órgãos de segurança interna, criados e instalados legalmente, de modo a permitir-lhes o exercício de suas atividades, conforme previsto na Diretriz Presidencial de Segurança Interna. Nesse sentido, no acervo pesquisado não foram encontrados registros formais que permitam comprovar ou mesmo caracterizar o uso de suas instalações para fins diferentes dos que lhes tenham sido prescritos”.
Para responder à intrigante questão sobre a alocação de pessoal para estas “instalações afetadas às Forças Armadas e utilizadas para perpetração de graves violações de direitos humanos”, conforme o título do relatório preliminar da CNV, o general dá uma resposta intrigante. Diz:
“O termo Destacamento, adotado pelo Exército Brasileiro, caracteriza parte de uma força, separada de sua organização principal, destinada a cumprir missão em outra região, com efetivo normalmente reduzido e organização variável, dependendo da situação. Coerente com tal definição, os DOI não possuíam constituição fixa”.
“Em decorrência disso, os militares das Forças Armadas eram passados à disposição para desempenhar atividades temporárias, os quais eram oriundos de diversas Organizações Militares (OM) do país; tal qual ocorria com policiais civis, policiais militares e integrantes do Departamento de Polícia Federal. Destaca-se que o ato de passagem à disposição de militar para o Destacamento, visando o cumprimento de missão ou atividade temporária, prescindia de registro”.
OS ‘DOUTORES’ E SUAS FERRAMENTAS
A inusitada confissão do Exército à CNV sugere uma bizarra liberalidade do Alto Comando da época sobre a linha de frente da repressão. Dá a imagem assustadora de uma tortuosa cadeia de comando que estimulava ações encobertas e ilegais e garantia, no futuro, o anonimato e a clandestinidade, premissas básicas da impunidade que ainda hoje protege os agentes da ditadura.
É no mínimo estranha a noção de uma corporação fundada na lei, na ordem e na hierarquia, como é o Exército, convivendo com um Destacamento de segurança interna caracterizado como “parte de uma força separada de sua organização principal” e sem limitação de fronteiras.
Pior ainda. Pela sindicância do Exército, o DOI era “parte de uma força … destinada a cumprir missão em outra região com efetivo normalmente reduzido e organização variável, dependendo da situação” (sic).
Na prática, essa elástica e imprecisa definição confirma os depoimentos de ex-presos e sobreviventes da ditadura sobre o braço longo e ilimitado do DOI-CODI, um aparato nada estático e muito errático, de “atividade temporária”, que juntava militares das três Forças Armadas, policiais civis, homens da Polícia Militar e agentes da Polícia Federal agindo de forma coordenada e combatendo onde fosse necessária a repressão — “destinado a cumprir missão em outra região”.
Entende-se, daí, que comandos do DOI da rua Tutóia, baseado no II Exército de São Paulo, pudessem agir sem qualquer restrição geográfica — por exemplo, no Rio de Janeiro, onde está baseado o DOI do I Exército, instalado na rua Barão de Mesquita. E vice-versa.
Apesar de atuar na primeira trincheira de combate à luta armada, o efetivo de ferro e fogo alistado pelo DOI do Exército em vários quartéis e organismos de segurança do país não tinha cara, nem nome, nem posto, nem identidade, já que estranhamente essa tropa tão lancinante e variada “prescindia de registro” (sic) .
A imprevista derrapada do general sindicante, nessa expressão de renúncia explícita à identidade, reconhece oficialmente que o Exército engajado na repressão tinha o anonimato como opção preferencial para sua tropa. Era uma conduta esquiva reforçada nos torturadores pelo disfarce dos codinomes (o coronel Brilhante Ustra era o Dr. Tibiriçá no DOI do II Exército em São Paulo, o coronel Paulo Malhães era o Dr. Pablo no DOI do I Exército no Rio de Janeiro) ou camuflada pelo uso sistemático do capuz nos torturados, nos momentos mais terríveis do ‘pau-de-arara’, da ‘cadeira-do-dragão’, do choque elétrico da ‘pimentinha’, da palmatória, das sessões de afogamento nas masmorras.
Os encobertos agentes do DOI, que ali atuavam sem o ‘alegado desvio de finalidade’, na palavra oficial do Exército, acabariam contaminando pelo menos uma instância da própria Justiça Militar com sua obsessão pelo encoberto, pelo oculto, pelo escondido.
Aconteceu em novembro de 1970, na 1ª Auditoria Militar do Rio de Janeiro, justamente com uma vítima do DOI paulistano, o centro de torturas da rua Tutoia. Uma guerrilheira do grupo VAR-Palmares, ‘Estela’, codinome de Dilma Rousseff, então com 22 anos, aparece em uma foto no momento em que era ouvida pelos juízes militares.
O flagrante em preto e branco resgatado pelo jornalista mineiro Ricardo Amaral para seu livro, “A Vida Quer É Coragem”, é a imagem mais emblemática de uma época cinzenta conhecida pelo chumbo quente da tortura, que a literária sindicância do Exército não registra.
O que chama atenção na foto não é a jovem guerrilheira em primeiro plano, uma Dilma quase menina. O que avulta na foto são os dois personagens em segundo plano, juízes fardados da Corte militar, cobrindo o rosto para não serem identificados.
Na falta de um capuz, os magistrados, bem mais velhos do que a jovem à sua frente, usam as mãos para ocultar o rosto diante do fotógrafo. Os dois julgadores, em uma impiedosa inversão de papéis, escancaram ali a dolorida consciência de que podem até condenar, mas não serão absolvidos pelo juízo inapelável da História.
Pela desonra da imagem, eles é que parecem ser os réus, apequenados diante de uma julgadora implacável. Pelo inusitado da cena, os dois juízes que se escondem se assemelham aos anônimos beleguins que atuavam nos DOI, como eles prescindindo de registro — principalmente fotográfico.
O homem à esquerda é um capitão, o da direita exibe nos ombros os galões de major. Fora da foto, quase em frente à jovem, senta-se o presidente do tribunal, um coronel. Na outra ponta da bancada acomodam-se mais dois juízes militares, os vogais.
O fotógrafo anônimo, por alguma razão, estava ali autorizado pelo coronel para fazer o registro da audiência e os dois juízes flagrados por sua lente sabiam do perigo iminente da foto.
Por isso, trataram de esconder suas identidades, na esperança de que essa tentativa de fuga à responsabilidade lhes assegurasse o pleno anonimato e a eterna impunidade. Livraram a cara e deixaram seus nomes na clandestinidade, como era hábito e licença entre os agentes do DOI.
Assim, contudo, delataram na cena muda das mãos a verdadeira face do regime que representavam naquele tribunal de exceção armado por militares para julgar civis, marca distinta de todo regime autoritário que não se desvia de suas finalidades. Não atentavam para um profundo pensamento marxista, que ensina: “Justiça militar é para a justiça o que música militar é para a música”, pregava Groucho Marx (1890-1977), perigoso comediante estadunidense, líder da ativa organização anarquista conhecida no cinema como ‘Irmãos Marx’.
O INSEPARÁVEL DOI-CODI
A resposta do Exército à CNV é contraditória, quando afirma que o DOI é uma “força separada de sua organização principal”. A Diretriz Presidencial de Segurança Interna do general Médici, de 1970, nega esta separação, como enfatiza o próprio comandante do DOI da Tutoia, coronel Brilhante Ustra, curiosamente citado na sindicância militar com este trecho incisivo, extraído da página 125 de “Rompendo o Silêncio”:
“De acordo com essa Diretriz, em cada Comando de Exército, que hoje se denomina Comando Militar de Área, existiria:
– um Conselho de Defesa Interna (CONDI);
– um Centro de Operações de Defesa Interna (CODI);
– um Destacamento de Operações de Informações (DOI); todos sob a coordenação do próprio Comandante de cada Exército.
Este Grande Comando Militar, quando no desempenho de missões de Defesa Interna, denomina-se Comandante de Zona de Defesa Interna (ZDI)”.
É o mesmo trecho que o general sindicante do Exército cita e extrai do Tomo 1, página 136, de uma obra literalmente de fôlego, com quase seis mil páginas e 10 kg de peso: a “Historia Oral do Exército. 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e a sua história”, organizada pelo general de brigada Aricildes de Moraes Motta.
A edição de 2004 da História Oral, publicada em 15 volumes, continua sendo publicada pela insuspeita Biblioteca do Exército, a Bibliex, que tem o seu conselho editorial presidido justamente pelo general Aricildes.
A confortável versão que define o DOI como ‘uma força separada de sua organização principal’, como sustenta o relatório do Exército de 2014, não expressa o que pensava o Exército de 1975, no auge da repressão militar.
No DOI-CODI mais funesto do país, o do II Exército na rua Tutoia, duas mortes de repercussão internacional em menos de três meses provaram que, de acordo com a Diretriz Presidencial de Segurança Interna ordenada em 1970 pelo general Médici, os DOI-CODI estavam “sob a coordenação do próprio Comandante de cada Exército”, como lembra até o coronel Brilhante Ustra.
Às 8h da manhã de 25 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura de SP, ingressou no prédio da Tutoia, convocado no dia anterior para prestar depoimento.
Sete horas e muitas torturas depois apareceu morto na cela do DOI, enforcado com o cinto do macacão que seus carcereiros esqueceram de retirar, para inflar a tese de ‘suicídio’.
Em março do ano passado, a mentira de 37 anos foi desfeita pela Justiça que, a pedido da Comissão Nacional da Verdade, mandou refazer o atestado de óbito de Herzog, agora reconhecido como morto “em decorrência de lesões e maus tratos sofridos durante interrogatório em dependências do II Exército (DOI-CODI)”.
Em um primeiro momento, o general Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II Exército, sobreviveu ao ‘suicídio’ de Herzog. Menos de três meses depois, outro ‘suicídio’ abreviou a carreira do general.
Ao meio-dia de sexta-feira, 16 de janeiro de 1976, o metalúrgico Manoel Fiel Filho foi preso na fábrica e levado por dois agentes do DOI-CODI. Lá aguentou longas 25 horas. Uma nota oficial do II Exército anunciou que, às 13h de sábado, 17 de janeiro, o operário era a mais nova vítima do surto de ‘suicídio’ da ditadura.
Dessa vez, na falta de um cinto, tinha se enforcado com as meias, dizia a nota, embora calçasse chinelos sem meias na hora da prisão. Na contagem do jornalista Elio Gaspari, que o general sindicante não lembrou de citar, “Manoel Fiel Filho fora o 39º suicida do regime, o 19º a se enforcar”.
Era o mesmo DOI-CODI que, afirma o Exército hoje, não tinha desvios de finalidade.
Apesar de ser uma “força separada de sua organização principal”, conforme a inovadora definição lava-rápido do Exército, o DOI e sua peste de ‘suicídios’ geraram na época um tremendo desarranjo entre os generais da “organização principal”.
Preso na sexta 16, o operário morreu no sábado 17. Na segunda 19, sem qualquer consulta ao general Sylvio Frota (ministro do Exército), o general Ednardo foi demitido do comando de São Paulo por ato sumário do general Ernesto Geisel, o chefe supremo de todos eles.
No mesmo dia da demissão, Frota convocou a Brasília os 14 generais de quatro estrelas que integravam o Alto Comando para uma tensa reunião de duas horas realizada na quinta, 22 de janeiro.
Os comandantes de Porto Alegre (Oscar Luís da Silva, do III Exército) e do Recife (Moacyr Barcellos Potyguara, do IV Exército), bufaram contra a demissão de Ednardo. Até o chefe do Estado-Maior do Exército (Fritz Azevedo Manso), o número 2 da força, assoprava no balão da rebeldia.
O comandante do Rio (Reynaldo Mello de Almeida, do I Exército), com o apoio de outros quatro generais, botou água na fervura, lembrando que o Alto Comando não tinha competência para discutir a decisão sumária de Geisel.
Três dias depois, o ministro da Justiça, Armando Falcão, mandou um relatório secreto a Geisel, com base em conversa com o general Reynaldo. O relato de Falcão mostrava que o general Sylvio Frota estava agitado demais para um ‘suicídio’ de rotina em uma ‘força separada de sua organização principal’.
Diagnóstico de Falcão: “O Ministro [Frota] está nervoso. Sabe-se que teve um ligeiro desmaio em Brasília. Não consegue dormir direito”. O documento em duas páginas, com manuscrito de Geisel —”Do Falcão. Conversa com Reynaldo” — , acabou exilado no baú de preciosidades do general Golbery do Couto e Silva.
Uma semana depois da reunião do Alto Comando, o próprio Geisel, que não via o DOI-CODI como uma força separada do Exército, resolveu separar outro comandante da força: exonerou o general de brigada Confúcio Danton de Paula Avelino da chefia do Centro de Informações do Exército (CIE), o serviço secreto da corporação.
Este quadro de chiliques, insônia e nervos estressados entre os generais mais estrelados e experientes do Exército brasileiro, só por conta de dois ‘suicídios’ em São Paulo, torna ridícula a versão do relatório sobre o caráter do DOI assassino como ‘força separada’ de seu braço principal — o próprio Exército.
Todos esses fatos, ignorados pelo general sindicante, poderiam ter sido rapidamente acessados na internet, no arquivosdaditadura.com.br, um sítio precioso organizado por Elio Gaspari com base em papéis oficiais do general Golbery do Couto e Silva.
Lá, o Exército aprenderia com os documentos do próprio Exército como separar a força da realidade das ciladas da fantasia.
AS MORTES NA ESCOLA
Se o arquivo de Golbery não agrada, o Exército poderia recorrer a outra fonte, talvez mais confiável: a própria força do DOI-CODI. Umas das estrelas principais do bando barra-brava da repressão, coronel de Cavalaria Freddie Perdigão Pereira, produziu uma inédita estatística da repressão, que confirma tudo o que o Exército não conseguiu descobrir sobre ele mesmo.
Bastaria ao incansável general sindicante buscar este trabalho na internet no endereço http://www.eceme.ensino.eb.br/eceme/, no ícone Biblioteca da página oficial da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), localizada no bairro carioca da Urca, onde oficiais entre capitão e coronel se preparam para chegar, sem desvios, ao generalato.
Ali é possível ler na íntegra o texto confidencial da monografia 1137 de 30 páginas apresentada em 1978 no curso da ECEME.
No trabalho, o então major Perdigão faz uma simpática biografia sobre os DOI, incluindo na página 28 uma tabela sem precedentes sobre os números de terror e sangue do DOI-CODI paulistano da rua Tutoia em seus primeiros sete anos de vida, tortura e morte, até 19 de maio de 1977.
O levantamento de Perdigão aponta que, naquele período, 2.541 pessoas foram presas pelo DOI do II Exército, 1001 foram encaminhadas ao DOPS para processo, 201 foram destinadas a ‘outros órgãos’, 1.289 acabaram liberadas e 51 foram mortas.
Perdigão, falecido em 1997, é um nome mitológico na repressão brasileira. Circulava pelo DOI da Barão de Mesquita, no Rio, e na ‘Casa da Morte’ de Petrópolis sob o codinome de ‘Dr. Nagib’. Frequenta a ‘obra literária’ do “Brasil: Nunca Mais” como notório torturador. Em 30 de abril de 1981, quando aconteceu o frustrado atentado do Riocentro, estava lotado justamente na Agência Rio do SNI.
O general Newton Cruz, chefe da Agência Central do órgão no Governo Figueiredo, admitiu que Perdigão lhe falou do atentado horas antes que ele ocorresse.
A bomba planejada pelo SNI e armada pelo DOI-CODI carioca explodiu minutos antes ainda no estacionamento, dentro do Puma onde estavam dois agentes do DOI do I Exército. Matou o sargento do DOI Guilherme Pereira Rosário, que a levava no colo, e feriu gravemente o motorista ao seu lado, o capitão do DOI Wilson Machado.
Em 2011, 30 anos após o atentado, o repórter Chico Otávio, do jornal O Globo, localizou a pequena agenda telefônica que o sargento Rosário – um especialista em explosivos do DOI – levava no bolso de trás da calça na hora da explosão e que o Exército não registrou na sua resposta cheia de desvios à CNV.
Lá estavam os nomes reais, não codinomes, de 107 integrantes do ‘Grupo Secreto’, organização paramilitar de direita que desencadeou uma série de atos terroristas na tentativa de deter a abertura política.
O bando reunia desde oficiais graduados a soldados, de delegados a detetives, com os contatos do sargento do DOI em setores estratégicos, como o Estado-Maior da PM e a chefia de gabinete da Secretaria de Segurança do Rio, além de amigos ligados a setores operacionais, como fábrica de armamento e cadastros de trânsito.
Na letra P da agenda, depois de Prieto, Pedroso, Paulinho, Pena, Paulo e Pedro Rosa, perfilava-se o nome dele, o Perdigão.
O sargento do DOI no Riocentro: bomba no Puma e agenda no bolso com o nome do coronel Perdigão
O Exército perdeu a oportunidade, agora, de esclarecer à CNV e ao Brasil se a agenda e o ‘Grupo Secreto’ do explosivo sargento do DOI caracterizam ou não um ‘desvio de finalidade’ do DOI.
O desastrado atentado do Riocentro, que o Exército nunca assumiu nem como desvio de conduta, só não se transformou em uma tragédia nacional por conta da incompetência dos terroristas.
No final de abril passado, a Comissão Nacional da Verdade apresentou ao país a pesquisa “Riocentro: Terrorismo de Estado contra a população brasileira”, também disponível no site da CNV.
Lá, com todas as letras que evitam desvios, os comissários concluem que o atentado foi “um minucioso e planejado trabalho de equipe realizado por militares do I Exército e do Serviço Nacional de Informações (SNI) e o que o primeiro inquérito policial militar (IPM) sobre o caso, aberto em 1981, foi manipulado para posicionar os autores diretos da explosão apenas como vítimas”.
Para o coordenador da CNV, Pedro Dallari, o caso Riocentro foi o último de uma série de 40 atentados ocorridos entre janeiro de 1980 e abril de 1981, “que visavam dificultar a abertura política iniciada em 1979 e dar uma sobrevida ao regime militar”.
O almirante Júlio de Sá Bierrenbach, que depôs na CNV sobre o caso, era ministro do Superior Tribunal Militar (STM) quando o inquérito policial militar sobre o Riocentro chegou ao tribunal para ser julgado. O caso já veio arquivado da auditoria militar onde tramitou e o militar da Marinha foi o único a votar contra o arquivamento do processo e pedir que o capitão Machado continuasse como investigado e a apuração, retomada.
Para Bierrenbach, “o IPM (do Riocentro) foi uma vergonha e isso é facilmente demonstrável”.
Ele afirmou considerar absurdas a absolvição e a promoção até coronel que Wilson Machado, co-autor do atentado, recebeu na carreira. “Vítimas, uma ova! Eles fizeram o atentado. O capitão vai ao Riocentro com uma bomba, a bomba explode. O colega morre. E ele é promovido. Isso é um absurdo!”, torpedeou o almirante.
Segundo o relatório da CNV, apresentado pelo gerente de projetos Daniel Lerner, cerca de 20 mil pessoas estavam no Riocentro na noite de 30 de abril de 1981 para assistir um show organizado por Chico Buarque de Hollanda para o Dia do Trabalhador.
O grupo que planejou o atentado conseguiu até que a Polícia Militar recebesse uma ordem para não realizar policiamento dentro do espaço onde ocorria o show.
A MORTE DA MPB
Os dois militares terroristas do DOI-CODI — o sargento morto e o capitão socorrido com as vísceras de fora — não foram as únicas baixas da ditadura. A evisceração do regime foi ainda mais notável nos meses seguintes.
O general João Figueiredo infartou na presidência, o general Golbery do Couto e Silva demitiu-se da Casa Civil, o general Octávio Aguiar de Medeiros (chefe do SNI) implodiu como virtual candidato a uma sexta presidência fardada e o regime militar definhou até morrer, sem choro nem vela, no remanso do Colégio Eleitoral que sagrou Tancredo Neves como primeiro presidente civil desde 1964.
O RIOCENTRO NO COLO DA DITADURA
Figueiredo, presidente, infartado… Golbery, ministro da Casa Civil, demitido… Medeiros, chefe do SNI, implodido.
Naquela noite, data do maior ‘acidente de trabalho’ da escalada terrorista do DOI-CODI do Exército, o número de mortos e feridos do atentado poderia ser muito maior. Além da bomba que explodiu no estacionamento, outro artefato explodiu na casa de força do Riocentro.
O objetivo era o corte de energia que impedisse o show e causasse tumulto, mas o artefato não causou o efeito desejado. Depoimentos apontam que duas bombas sob o palco foram retiradas do local antes de serem detonadas e testemunhas afirmam que havia outras duas bombas no Puma do DOI-CODI, que foram retiradas da cena do crime.
O tumulto previsível de explosões coordenadas em recinto fechado, com as portas de saída criminosamente trancadas com cadeados, certamente provocaria uma tragédia amplificada na platéia de 20 mil pessoas.
E as bombas sob o palco, detonadas no momento esperado do encerramento, quando todos os artistas se reúnem para a apoteose final do show, produziriam uma hecatombe na Música Popular Brasileira.
Junto com Chico Buarque, lá estavam 30 dos mais famosos e carismáticos astros da MPB. Entre eles, Paulinho da Viola, Luiz Gonzaga e o filho Gonzaguinha, Cauby Peixoto, Clara Nunes, Gal Costa, Ivan Lins, João Bosco, Alceu Valença, Elba Ramalho, Djavan, Fagner, Moraes Moreira, Ângela Ro-Ro, Simone, Zizi Possi, MPB-4 e Beth Carvalho.
“A ditadura militar fez isso. Ia matar todos nós, artistas”, lembrou Beth Carvalho.
Traduzindo: a missão do DOI-CODI naquela noite também mataria a MPB. O Exército infelizmente não esclarece, na resposta à CNV, se o eventual sucesso de seu braço terrorista naquele atentado meticulosamente planejado poderia ser enquadrado como uma finalidade sem desvios do DOI-CODI.
O Exército que não consegue ver a essência do DOI-CODI, em sua precária sindicância, deveria ter o método de trabalho e a seriedade de gente como o pesquisador Pedro Estevam da Rocha Pomar, que em 2000 descobriu uma preciosidade no acervo do DOPS paulista, hoje depositado no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
É o RPI 06/75, o Relatório Periódico de Informações do II Exército, reconhecendo a morte de 50 presos no DOI-CODI da rua Tutoia, de 1969 até fevereiro de 1975.
O registro, classificado como ‘confidencial’, foi produzido dias depois, em março de 1975, e as 23 páginas do RPI são rubricadas pelo ‘Gen d’Ávila’. É o nome do comandante do II Exército na época, o general Ednardo d’Ávila Mello, que acabaria exonerado um ano depois por Geisel, após o ‘suicídio’ de Manoel Fiel Filho no DOI-CODI.
O RPI 06/75 rubricado pelo general Ednardo reconhece 47 mortos entre os “presos pelo DOI” e outros três mortos “recebidos de outros órgãos”. O repórter Mário Magalhães, da Folha de S.Paulo, que revelou a descoberta de Pomar há 14 anos, fez uma arguta observação sobre o documento:
“Os 47 mortos (não há descrição de nomes e das condições das mortes) são um subitem do item ‘presos pelo DOI’, e não um item à parte. Pela lógica, foram presos e, depois, mortos. […] Os três mortos entre os ‘recebidos de outros órgãos’ reforçam a impressão de que morreram na rua Tutóia, a não ser que o DOI-CODI recebesse cadáveres”.
Apesar dessas provas documentais, o criador e comandante do DOI da Tutoia em seus primeiro quatro anos, coronel Brilhante Ustra, insiste na tese da finalidade sem desvios abraçada pelo Comandante do Exército e pelo Ministério da Defesa: “No meu comando, meu senhor doutor Fonteles, ninguém foi morto lá dentro do DOI”.
“Todos foram mortos em combate. Os que o senhor diz que foram mortos dentro do DOI, não é verdade. Eles foram mortos pelo DOI em combate, na rua. Dentro do DOI, nenhum!”, gritou Ustra irritado, socando a mesa, diante da pergunta do ex-procurador-geral da República e então comissário da CNV, Cláudio Fonteles, na audiência pública realizada em maio de 2013 em Brasília.
Um bom exemplo da disparidade entre a Comissão Nacional da Verdade e as Forças Armadas, na busca da verdade e dos fatos, está no método utilizado por uns e outros para cumprir sua missão legal e ética diante da Nação brasileira. A CNV atua de forma aberta, transparente, direta, sem desvios. As FFAA, não.
O pedido formal de informações sobre a ‘ocorrência de graves violações de direitos humanos em instalações administrativamente afetadas às Forças Armadas’ foi apresentado pela CNV em sessão aberta, em 18 de fevereiro passado, com a distribuição do texto do relatório preliminar, detalhando fatos, nomes e testemunhos de 11 ocorrências de tortura e de 8 casos de morte, incluindo fotos e croquis dos quarteis e bases militares utilizados para o ‘alegado desvio de finalidade’.
A PÁTRIA DE COTURNO
A CNV fez mais, e fez melhor. Apresentou sua demanda em uma entrevista coletiva de imprensa de 72 minutos, transmitida pela internet e disponível no site da comissão.
Lá, a certa altura, o comissário e ex-ministro da Justiça de FHC José Carlos Dias ensinou: “Temos o direito de exigir informações. É obrigação das autoridades buscar a verdade”.
O comissário Paulo Sérgio Pinheiro enfatizou o absurdo da situação criada pela ditadura: “Havia um arquipélago de centros de tortura em instalações do Estado brasileiro, em todo o território nacional, à custa do contribuinte. Era uma violação sistemática, contínua, rotineira. Imaginem a cena! Enquanto havia gente numa sala batendo à maquina, fazendo seu trabalho burocrático, na sala ao lado tinha um pessoal usando o pau-de-arara nos presos”.
E como reagiram as FFAA? Mal, muito mal. Gastaram quatro meses para produzir sua oca sindicância de indulgência plenária, que nega qualquer abuso com o requinte de não responder a nenhum dos casos concretos laboriosamente levantados pela CNV. E a equipe do ministro da Defesa escolheu entregar o material em junho passado.
Não optou nem pela segunda-feira 16, nem pela quarta 18. O ministro Celso Amorim preferiu exatamente a estratégica tarde de terça-feira, 17 de junho, para mandar um emissário entregar a resposta dos chefes militares.
Para quem não lembra, era a tarde em que 200 milhões de brasileiros, todos juntos, formavam aquela corrente pra frente de olho grudado na TV para assistir ao empate em zero do Brasil contra o México em Fortaleza, o segundo jogo da seleção no Grupo A da Copa do Mundo.
A ardilosa pátria de coturno esperou que a distraída mãe gentil, a pátria de chuteiras se dedicasse à bola redonda da seleção verde-amarela, para remeter o quadrado pacote de documentos à CNV.
A tática, aparentemente, funcionou. Mais fascinada pelo goleiro mexicano Ochoa que travou o ataque de Neymar & cia, a imprensa canarinho de olho fixo no jogo em Fortaleza não deu pelota para a bola fora do esquadrão de Amorim em Brasília. E ninguém deu cartão vermelho para as botinadas do time brucutu das FFAA na equipe de verdade da CNV.
Na entrevista de quatro meses antes, em fevereiro, Paulo Sérgio Pinheiro tinha dito que as sete instalações militares escolhidas pontualmente pela CNV eram “uma pequena amostra’ da estrutura de Estado montada para torturar e matar”. Não era uma licença poética. Dois meses depois, a CNV foi além dos sete locais malditos.
Apresentou a lista e o endereço de outras 17 ‘casas da morte’, centros clandestinos de tortura espalhados por casas, chácaras e sítios particulares cedidos à brutalidade sem constrangimentos da repressão.
É um criterioso trabalho de pesquisa da CNV coordenado pela historiadora Heloísa Starling, da Universidade Federal de Minas Gerais e, como sempre, solenemente ignorado pelo generalato.
A CNV mapeou a cadeia de comando de sete desses centros, mostrando como operavam sob ordens de altas patentes do Exército e da Marinha. Foram localizados, com nomes e fotos, os locais de quatro Estados: três em São Paulo (fazenda 31 de Março, Itapevi e Ipiranga), um em Belo Horizonte (Casa do Renascença), um no Pará (a ‘Casa Azul’, o QG da repressão à guerrilha do Araguaia) e dois no Rio (‘Casa da Morte’, de Petrópolis, e a casa de São Conrado, bairro nobre da Zona Sul do Rio).
Os outros centros, deliberadamente ocultos até da legislação de exceção e agora sob investigação da CNV, se espalham por oito Estados.
As duas instalações clandestinas mais letais da lista eram operadas justamente pelo Centro de Informações do Exército (CIE), o serviço secreto que pairava acima dos DOI-CODI, sobre os quais o Exército diz não ter nenhum registro.
A ‘Casa da Morte’ – um simpático sobrado de dois andares em estilo alemão no bairro Caxambu, no pé da serra em Petrópolis, Rio de Janeiro – foi emprestada ao Exército pelo dono, o empresário Mário Lodders.
Entre 1971 e 1974, foi administrada pelo DOI-CODI do I Exército e pelo CIE. É muito estranho que o general sindicante não tenha localizado nada sobre ela, já que a casa é reconhecida até pelo general Adyr Fiúza de Castro no denso depoimento que deu a Maria Celina D’Araújo e Gláucio Ary Dillon Soares, para o livro “Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão” (ed. Relume-Dumará, 1994, pp. 35-80).
Fiúza, expoente da linha dura do regime, foi um dos criadores do CIE em 1969, quando ainda coronel chefiava a Divisão de Informações (D2) do ministro do Exército, Aurélio de Lyra Tavares. Em 1974, como braço-direito do general Sylvio Frota no comando do I Exército, assumiu a chefia do DOI-CODI do Rio de Janeiro. Ele chama docemente de ‘aparelho especial não oficial’ o que a CNV rotula, sem desvios, como clandestino.
A versão de Fiúza:
“Nós [do CODI] cedemos umas dependências na Barão de Mesquita ao CIE para eles fazerem uma espécie de ‘cela preta’ que aprenderam nos Estados Unidos e na Inglaterra. Mas o CIE tinha autonomia para trabalhar em qualquer lugar do Brasil. Eles tinham aparelhos especiais, não oficiais, fora das unidades do I Exército, para interrogatórios (…). Como a casa de Petrópolis”.
No seu relato, Fiúza descreve o procedimento inicial no DOI na chegada do preso, com as fotos, impressões digitais e primeiras perguntas de praxe sobre nome, filiação, origem. O general descreve uma repartição que, acima do do terror e do medo, tinha obsessão literal pela higiene, pela limpeza.
Fala Fiúza:
“[…] Eles não podiam ficar com a roupa que estavam, porque podiam esconder qualquer coisa. Então, eram mandados se despir, e era fornecida uma roupa especial, uma espécie de macaquinho. Para as moças, também era dado imediatamente um modess, porque a primeira coisa que acontece com a mulher quando ela é submetida a essa angústia da prisão é ficar menstruada. E fica escorrendo sangue pela perna abaixo, uma coisa muito desagradável. Em seguida, tomavam um banho, trocavam a roupa. O [Sylvio] Frota fazia questão de que cada cela tivesse roupas de cama limpas [….]”
“[…] Normalmente, o camarada que ‘cai’, ou seja, foi preso, entra num estado de pânico e de perturbação muito forte. Só aqueles mais estruturados, mais seguros é que mantêm o domínio de si mesmos. O restante, vamos dizer 90%, a primeira coisa que faz é ter uma disenteria brutal, de escorrer pelas pernas abaixo. Qualquer homem que já leu algum relato de combate sabe que, quando o sujeito é submetido a um bombardeio, suja as calças”.
“Porque os esfíncteres não seguram os excrementos quando se está submetido a um medo muito grande. Então o medo é realmente um fator muito favorável ao interrogatório quando este é feito logo que o camarada ‘caiu’ […][…] o medo é um grande auxiliar no interrogatório […] tirando a sua roupa, fica-se muito agoniado, num estado de depressão muito grande. E esse estado de desespero é favorável ao interrogador”.
“O Frota não concordava muito com isso, mas usava-se. É uma técnica praticamente generalizada. E também por uma questão de limpeza, porque o prisioneiro se suja, suja o chão… É impressionante. Não se pode parar um interrogatório e convidar: “Vamos mudar a roupa?”. E o cheiro fica terrível. Interrogando o preso despido, é mais fácil qualquer limpeza […]”
Na ‘Casa da Morte’, mais do que no higiênico DOI de Fiúza, a limpeza extrema devia ser proporcional ao terror, ainda maior. Lá desapareceram para sempre ao menos 14 militantes da esquerda, segundo a CNV.
É o inferno onde viveu durante terríveis 96 dias a única sobrevivente do lugar, Inês Etienne Romeu, dirigente do mesmo grupo guerrilheiro de Dilma Rousseff, a VAR-Palmares.
Acusada de participar do sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher em 1970, foi presa no ano seguinte e condenada à prisão perpétua, pena depois reduzida a oito anos. Nos três meses de suplício na casa, entre 8 de maio e 11 de agosto de 1971, Inês Etienne foi torturada, estuprada, injetada com pentotal sódico (o chamado ‘soro da verdade’) e, depois de cada uma de suas duas tentativas de suicídio, medicada para recuperar as forças e receber novas sevícias.
Dois de seus torturadores mais graduados na casa, apesar dos codinomes, foram identificados pela CNV. O Dr. Roberto era o major Freddie Perdigão, o Dr. Teixeira era o major Rubens Paim Sampaio, hoje tenente-coronel na reserva.
As dores de Etienne:
“[…] Fui conduzida para uma casa […] em Petrópolis […] O Dr. Roberto, um dos mais brutais torturadores, arrastou-me pelo chão, segurando pelos cabelos. Depois, tentou me estrangular e só me largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me pancadas na cabeça […] Fui várias vezes espancada e levava choques elétricos na cabeça, nos pés, nas mãos e nos seios. A certa altura, o Dr. Roberto me disse que eles não queriam mais informação alguma; estavam praticando o mais puro sadismo, pois eu já havia sido condenada à morte e ele, Dr. Roberto, decidira que ela seria a mais lenta e cruel possível, tal o ódio que sentia pelos ‘terroristas’
[…] Alguns dias depois […] apareceu o Dr. Teixeira, oferecendo-me uma saída ‘humana’: o suicídio […] Aceitei e pedi um revólver, pois já não suportava mais. Entretanto, o Dr. Teixeira queria que o meu suicídio fosse público. Propôs então que eu me atirasse embaixo de um ônibus, como eu já fizera […] No momento em que deveria me atirar sob as rodas de um ônibus, eu me agachei e segurei as pernas de um deles, chorando e gritando.
[…] Por não ter me matado, fui violentamente castigada: uma semana de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, ‘telefones’, palmatórias. Espancaram-me no rosto até eu ficar desfigurada. […] O Márcio invadia minha cela para ‘examinar’ meu ânus e verificar se o Camarão havia praticado sodomia comigo. Esse mesmo Márcio obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante esse período fui estuprada duas vezes pelo Camarão e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos mais grosseiros e obscenidades […]”.
Outros craques da repressão no time barra-brava daquela casa infernal, que o Exército nem lembrou de citar em sua sindicância como ‘desvio de finalidade’, eram o tenente da reserva Antônio Fernando Hughes de Carvalho, codinome Alan, e o então capitão Paulo Malhães, o Dr. Pablo.
Em fevereiro passado, o coronel da reserva Armando Avólio Filho contou à CNV ter visto Hughes pulando sobre o corpo de um preso torturado na carceragem do DOI da Barão de Mesquita, em janeiro de 1971.O preso era o ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido até hoje. O tenente morreu em 2005.
Um mês depois de Avólio contar sobre Alan, foi a vez do Dr. Pablo falar. Em março passado, num estarrecedor depoimento à CNV reproduzido até no Jornal Nacional da Rede Globo, e que deve ter passado desapercebido do general sindicante, Malhães reconheceu ter organizado a casa clandestina de Petrópolis em nome do DOI-CODI e assumiu uma das finalidades – sem desvios – daquele tétrico endereço de um Exército envergonhado que não ousa dizer seu funéreo apelido.
Falou Malhães:
“Naquela época não existia DNA, concorda comigo? Então, quando o senhor vai se desfazer de um corpo, quais são as partes que, se acharem o corpo, podem determinar quem é a pessoa? Arcada dentária e digitais, só. Quebravam os dentes e cortavam os dedos. As mãos, não. E aí, se desfazia do corpo”.
A MORTE DO ROBOT
Na manhã de 25 de abril, exatamente um mês após ter chocado o país ao revelar na CNV como se torturava, matava, retalhava e ocultava cadáveres de presos políticos na ditadura, Malhães foi encontrado morto em seu sítio em Marapicu, no interior de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense.
Sucumbiu por infarto, segundo a polícia, às fortes emoções da invasão de sua casa por três ladrões que buscavam as armas antigas que colecionava.
Apesar da forte convicção policial em simples latrocínio, o comportamento dos assaltantes mostrava coisas esquisitas. Ficaram mais de seis horas na casa, com o coronel morto e a mulher amarrada, revistando tudo, especialmente o escritório, deixando filmes e documentos de Malhães espalhados pelo chão.
Um deles falava com frequência ao celular, talvez recebendo instruções. Ao sair, levaram três pastas de documentos e o disco rígido de um dos dois computadores do coronel, itens estranhos para uma simples rapina.
“É um fato grave, porque entra em confronto com a tese de latrocínio”, anotou o advogado Wadih Damous, então presidente da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro.
Um endereço ainda mais letal do Exército ficava no Pará. Apesar do nome, a ‘Casa Azul’ foi o inferno final para 24 pessoas na cidade de Marabá, 500 km ao sul de Belém. Funcionou como o QG da repressão à guerrilha do Araguaia, nos anos 1972-73.
Era a sede do antigo DNER, que ocupava uma grande área arborizada imune a curiosos no bairro Amapá, às margens do km 01 da rodovia Transamazônica.
A coordenação cabia ao coronel do CIE Léo Frederico Cinelli, em linha direta com o temido chefe do CIE em Brasília, o casmurro general Milton Tavares, o Miltinho, pináculo da linha dura no Exército.
Cinelli era chefe do serviço de inteligência do I Exército em 30 de abril de 1981, quando recebeu às 23h45 o relato do fracasso da ‘Missão 115 – Operação Centro’, nome em código do atentado do Riocentro, transmitido pelo próprio comandante do DOI-CODI fluminense, o coronel Júlio Miguel Molinas Dias.
As anotações nervosas daquela noite de quinta-feira no diário do coronel Molinas, assassinado em um assalto em 2012 em Porto Alegre, dão uma ideia da insônia que tomou conta do DOI-CODI, ferido mortalmente pela explosão.
Trechos do diário do coronel Molinas, divulgado pelo jornal Zero Hora:
Quinta-feira, 30 de abril de 1981
Intervalo do jogo do Grêmio x São Paulo, telefonema do agente Reis [codinome]. Disse que um cabo PM telefonara avisando que haveria um acidente com explosivo com uma vítima. Deu o nome quente Dr. Marcos…[codinome do capitão Wilson Machado, chefe da Seção de Operações do DOI-Codi, ferido na explosão].
[…] Por volta das 22h30min, cheguei ao órgão… dirigi-me à vaga n.1 do comando. […] O Dr. Wilson [codinome], que estava na operação, chegou logo a seguir. Reis […] avisou que recebera telefonema […] dizendo que um sargento estava no local, irreconhecível.
23h30min — Na Globo – estouraram duas bombas no estacionamento, destruindo dois carros e uma moto. No segundo carro não houve vítimas. 23h30min — Dr. Araújo (codinome) telefona para saber o que houve. […]
23h30min — Hospital Miguel Couto… [Capitão] Tá sendo operado, vísceras do lado de fora. Estado grave.
23h35min — Uma bomba na casa de força [central de energia do Riocentro] e uma no carro.
23h50min — O Robot [sargento Rosário] está morto. Tem uma granada que estava no carro e botaram no chão.
Sexta-feira, 1º de maio de 1981
0h40min — Coronel Cinelli — Falamos sobre a ida da perícia da PE [Polícia do Exército] à paisana e a retirada do corpo.
1h01min — Tenente-coronel Portella liga ao HCE [Hospital Central do Exército] para receber o corpo do Robot [sargento Rosário].
1h05min — [Capitão]Está sendo operado, dilaceração nas vísceras.
4h24min — Um Chevette aberto cinza metálico com bagageiro placas RT-1719 estava ao lado do carro Puma, com um emblema do 1º BPE.
6h05min — Justifico telefonema dizendo que está na cirurgia, Dr. Marcos (codinome do capitão ferido), ortopédica nos braços.
Domingo, 3 de maio de 1981
8h25min — Telefonema do coronel Prado, dizendo que o JB [Jornal do Brasil] tem reportagem em que um médico diz que o capitão estaria em condições de falar. O assunto é tratado com o coronel Cinelli.
Na ‘Casa Azul’, dez anos antes do Riocentro, Cinelli conviveu com algumas das estrelas mais notórias da repressão. Como chefe do Centro de Informações e Triagem (CIT), cabia a ele enviar as informações que o general Miltinho, em Brasília, repassava aos seus chefes diretos: o ministro Orlando Geisel e, no topo, o presidente Médici.
Abaixo dele, Cinelli teve dois chefes do CIE no Estado-Maior das FFAA no Araguaia: em 1973 o tenente-coronel Wilson Romão (o último militar a dirigir a Polícia Federal, já no Governo Itamar Franco) e, em 1974, o tenente-coronel Flávio Demarco (que em 1975, por ordem de Geisel e Figueiredo, representou o Brasil na criação da Operação Condor, em Santiago do Chile).
Completavam o dream-team da Casa os majores Sebastião Curió, Lício Maciel e José Teixeira Brant. Eles garantiam o serviço. Dos 24 mortos ali, 22 eram militantes do PCdoB, que organizou o foco guerrilheiro, e os outros dois eram camponeses que aderiram à guerrilha, entre 1972 e 1973.
“Ninguém sobreviveu à Casa Azul”, lembrou a historiadora Starling.
CENTRO DE SERIAL KILLER
Os dois centros clandestinos de morte, em Marabá e em Petrópolis, assinalam a opção irremediável do Exército pelo cipoal emaranhado da exceção, na floresta amazônica, e pela escalada íngreme da crueldade, na serra fluminense.
“Não se confundem com quarteis nem com delegacias de polícia. A criação e funcionamento desses centros eram resultado de uma política definida pela FFAA”, explica Starling, que merecia ser ouvida ou lida pelos comandantes antes que produzissem aquele fiasco escrito.
“Tratava-se de uma política de Estado, e não apenas de excessos ou acidentes”, completa o advogado e coordenador da CNV, Pedro Dallari. No gráfico sobre a cadeia de comando da ‘Casa Azul’, montado pela CNV, ficam escancarados os responsáveis da máquina de morte do regime, que ligava desde o Palácio do Planalto em Brasília até os matadores da linha de frente de Marabá.
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Cadeia de comando do CIE em Marabá: a ‘Casa Azul’, dos generais Geisel e Frota ao coronel Demarco e major Curió
Em termos formais, o avassalador relatório da CNV reconhece a face mais terrível da ditadura brasileira: seus centros de tortura e morte, de fato, não constituíam um ‘desvio de finalidade’.
Na verdade, segundo o relatório preliminar da equipe de Starling, aqueles lugares encobertos de sofrimento e reservados ao assassinato eram a própria essência do caráter serial killer do regime.
Alguns trechos marcantes do documento da CNV:
[…] Os centros identificados estavam diretamente vinculados aos comandos dos órgãos de inteligência e repressão do Exército (Centro de Informações do Exército/CIE) e da Marinha (Centro de Informações da Marinha/CENIMAR), bem como aos organismos mistos de natureza militar e policial – os Centros de Operação e Defesa Interna (CODI) e Destacamentos de Operação Interna (DOI). Todos esses órgãos encontram-se vinculados diretamente aos gabinetes dos Ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica. Nem estruturas autônomas ou subterrâneas, nem produto da ação de milícias ou grupos paramilitares; pela natureza dos vínculos de comando, abrangência geográfica e atuação regular, os centros clandestinos eram parte integrante da estrutura de inteligência e repressão do regime militar e obedeciam ao comando das FFAA. […]
Com esse sistema legal adaptado ou criado, o Estado passou a dispor de uma matriz institucional instaurada por um tipo específico de legalidade de exceção, voltada principalmente – mas, não exclusivamente – para as diferentes maneiras de institucionalizar a repressão política sob um regime militar.[…]
A militarização do exercício do poder de Estado, centralizado no governo da União, materializou-se em uma estrutura repressiva ampla, destinada a funcionar como ferramenta de salvaguarda do poder […]
Procedimentos introduzidos pelo Estado na estrutura do aparato de repressão […] demonstram que o regime militar definiu uma política e lançou mão de instrumentos repressivos que expressam uma quebra radical e deliberada com a legalidade de exceção […] São eles:
4.1. A prática da tortura como forma de interrogatório nos quartéis militares, a partir de 1964.
Cabe observar que:
4.1.1. A prática da tortura nos quartéis brasileiros é um procedimento inédito; não
foi utilizado em nenhum outro momento da história do país; […]
4.2. Adoção dos desaparecimentos forçados como estratégia repressiva, a partir do segundo semestre de 1969.
Cabe observar que:
4.2.1. A prática dos desaparecimentos forçados está associada a diversos procedimentos considerados estratégicos pelas FFAA:
4.2.1.1. Encobrir homicídios de prisioneiros políticos;
4.2.1.2. Encobrir uso da tortura em prisioneiros políticos para extorsão de confissões e/ou informações;
4.2.1.3. Provocar incerteza e/ou expectativa nas forças de oposição sobre o destino de militante e/ou de liderança política;
4.2.1.4. Garantir a inimputabilidade dos militares envolvidos na repressão política.
4.3. A criação de centros clandestinos de violação de direitos como órgãos da estrutura do aparato de inteligência e repressão do regime militar […]
Os centros clandestinos foram criados para execução de procedimentos considerados estratégicos pelas FFAA, a partir de uma nova apreciação das forças oposicionistas, realizada pelos órgãos de comando no interior da estrutura de repressão, e iniciada no ano 1970. Nesse contexto, são definidas as atribuições para funcionamento dos centros clandestinos. São elas:
5.1. Executar os procedimentos necessários para desaparecimento de corpos de opositores mortos sob a guarda do Estado. Tais procedimentos incluíam:
5.1.1. Eliminar condições de identificação dos corpos: retirada de digitais e arcadas dentárias;
5.1.2. Eliminar corpos por meio da queima (junto com pneus); do esquartejamento; do lançamento no mar ou em rios;
5.2. Executar procedimentos necessários à prisão e interrogatório de opositores políticos já condenados pela política de extermínio. Tais procedimentos incluíam:
5.2.1. Evitar o reconhecimento da prisão de opositor político pelos órgãos de repressão;
5.2.2. Impedir o ingresso do preso nos esquemas judiciais previstos pela legalidade de exceção;
5.2.3. Criar condições necessárias para suporte e execução da política de extermínio […]
5.4. Criar condições necessárias para alojamento provisório de agentes envolvidos em operações clandestinas;
5.5. Garantir a inimputabilidade dos agentes envolvidos com o aparato repressivo. […]
Poucas vezes se produziu e se leu, na esfera do Estado brasileiro, um documento tão objetivo, tão veraz e tão contundente sobre os desvios institucionais do próprio Estado e seus agentes, atuando sob uma diretriz programada de violência focada em graves violações de direitos humanos que deveriam ser protegidos, não vilipendiados pelo Estado, revelando assim a face agressiva do poder e o carácter agressor da ditadura.
Contra os fatos e argumentos recolhidos com esforço e seriedade pela CNV, as FFAA respondem com o gesto calculado da omissão, o tique enervante do silêncio e a recorrente tática do ‘nada consta’.
TORTURA AO PÉ DA RAMPA
A cadeia de comando que envolveu todos os degraus do poder no regime militar, da Presidência da República ao guardinha da guarita do DOI-CODI, ficou ainda mais evidente com um documento que transcreve cerca de 20 horas de depoimentos de mais de 30 jornalistas submetidos a interrogatórios e torturados em instalações militares do Distrito Federal.
O material inclui o surpreendente relato de quatro jornalistas à Comissão da Memória e da Verdade do Distrito Federal, criada pelo Sindicato dos Jornalistas da capital: Alexandre Ribondi, Armando Rollemberg, Romário Schettino e Hélio Doyle, os dois últimos ex-presidentes do sindicato brasiliense dos jornalistas, revelaram ter sido sequestrados, vendados e agredidos por militares em Brasília no Governo Médici.
Não chegava a ser um desvio da rotina do regime. O espantoso é que tudo isso aconteceu na Esplanada dos Ministérios, a apenas alguns metros do Palácio do Planalto, confirmando as evidências de que as graves violações de direitos humanos não eram excessos dos porões, mas prática tolerada e estimulada pelos escalões estrelados do núcleo do poder.
Em circunstâncias parecidas e épocas distintas, os jornalistas contam ter sofrido torturas no sub-solo dos prédios da Marinha e do Exército na Esplanada, quando ainda mantinham o status de Ministério. Em linha reta, da rampa do Planalto do presidente Médici até a entrada do ministério do general Orlando Geisel, são exatos 1.068 metros de distância na Via S1 do Eixão Monumental, que concentra o poder federal. Outros 93 metros à direita, no prédio ao lado, estava a Marinha do almirante Adalberto de Barros Nunes. Essa ilustre vizinhança ministerial não inibiu as violências do regime em seu quintal mais nobre. Ao contrário, parece ter acobertado.
Conta Alexandre Ribondi:
“…fatos de 1973. Fui preso saindo da biblioteca da UnB. Fui encapuzado e levado para um lugar onde… Ao entrar você descia uma rampa, ao sair subia uma rampa. Um sino tocava no prédio do lado, o da Aeronáutica… Fui torturado, passei por tortura durante dez dias… Fiquei encapuzado, acho que as outras pessoas na cela também ficaram, havia quatro ou cinco pessoas… Fiquei com o capuz e tive sessões de interrogatórios… Eu pedia muito para ir ao banheiro, porque dentro do banheiro eu podia tirar o capuz… Levei choque elétrico o tempo todo, porrada e uma maldita vareta na canela”.
“Na cela, quando a gente sentava, eles entravam e batiam na canela dizendo que tínhamos de levantar, tinha que ficar de pé o tempo todo… Tinha muito soco, muito tapa e roleta russa…Colocavam o revólver do lado do rosto e rodavam o tambor… Eles batiam muito porque eu não mostrava medo da roleta…Hoje desconfio que nem tivesse bala dentro…O sino fica no Ministério da Marinha. … a referência é a rampa da garagem… havia um quebra-mola no final da rampa…Quando a gente era torturado não havia carro lá embaixo, porque havia a cela de tortura…… O sino foi muito marcante… ele sempre tocava na mesma hora…”
Conta Armando Rollemberg:
“(…)numa sexta-feira de dezembro de 1973. Eu era repórter da revista Veja em Brasília. Recebi um aviso da portaria do prédio, alguém queria falar comigo. Desci e fui abordado por dois homens à paisana. Me deram ordem de prisão. Quando cheguei ao carro, uma Veraneio, fui encapuzado, jogado na mala traseira e levado para um local em que o carro entrava de marcha a ré… como se fosse uma ampla garagem…
Fui colocado de pé, encostado na parede, tiraram o capuz e colocaram um esparadrapo no olho. Permaneci nesse local durante umas sete horas….havia outras pessoas sendo torturadas… ouvia gritos, gente sendo interogada. De repente começou o meu… Recebi choques na ponta dos dedos…
No interrogatório reconheci a voz da pessoa ao lado… Era o Alexandre Ribondi…reconheci pelo timbre de voz, ouvia os gritos dele sendo torturado… sofreu terrivelmente… embora encapuzado, percebia que havia uma rampa de descida e que as coisas ecoavam como se fosse um vão amplo… havia um eco que parecia de uma garagem…”
Conta Hélio Doyle:
“(…) final de 1971, era repórter de O Estado de S.Paulo… Saía de casa no final de tarde com minha mulher quando tive o meu carro, um fusquinha, fechado por duas Veraneios, de onde saíram homens com metralhadora em punho…Nos colocaram na Veraneio, sem capuz, mandaram abaixar a cabeça…Quando chegamos, vi que era o Ministério do Exército…Eu lembro que havia uma rampa improvisada, como se fosse de obra, por fora do prédio do ministério…
Subimos por essa rampa até a sobreloja…havia uma série de caras, todos parecidos com a gente, de barba, à paisana, que eram do Serviço Reservado… Fui colocado em uma sala muito pequena, com vidro, totalmente à prova de som… fiquei ali algumas horas, fazendo absolutamente nada, com muito frio…uma hora o cara me chamou e perguntou se eu sabia porque estava preso. Falei que não, não tinha a menor ideia. Ele disse, você sabe, já foi preso outras vezes.
Eu disse, ué, mas não sei porque estou sendo preso agora. Dessa vez não é você, é sua mulher… Era um inquérito da AP, minha mulher tinha militado na Ação Popular. Fomos levados para o PIC [Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do Exército], ficamos lá uns dez dias. Não fui interrogado nenhuma vez, fiquei na cela sem contato com ninguém. Até ser libertado…
Conta Romário Schettino:
“(…)setembro de 1973, em Brasília, foram presas mais de 100 pessoas… fui preso na porta do Banco Central, na saída do expediente…Fui sequestrado por um bando armado com metralhadoras, capuz na cabeça… Me jogaram no banco de trás, algemado, me fizeram abaixar a cabeça com o capuz, tiraram meus óculos… Suponho que me levaram para o subsolo do Ministério do Exército… o que tinha na minha visão era a rampa e aquelas persianas verticais, que eu conseguia ver por debaixo do capuz…”
“Eu ouvia outros presos apanhando, ouvia choros, gritos, era um terror…No segundo dia, veio o choque elétrico. Fiquei completamente nu, tinha um cara que me bolinava, me dava porrada, choque no testículo, nas mãos, tinha aquela maquininha que eu achava um horror…Nesse dia de tortura violenta eu desmaiei…Quando acordei, sentia muita sede, uma sede horrível”.
“Pedi água e um deles ia buscar, quando o outro falou: ‘Não dá água, não. Com a energia que ele tem no corpo, pode provocar uma eletrose’…Fiquei de molho ali um tempão…Fiquei uma semana em uma cela isolada do PIC, suponho que no primeiro andar…Sei porque na cela tiravam meu capuz…estava sem óculos, mas vi que tinha aquele descampado ali no pátio, dava para ver a uma certa distância…”
“O movimento do quartel, o toque de recolher, o toque de chegada do general… Fiquei 25 dias desaparecido, ninguém sabia onde estava…Então, me levaram num camburão para o cerrado, na 313 Norte, e me largaram ali, no meio do mato… me botaram no chão, eu saí correndo…”
As antigas sedes do Exército e da Marinha na Esplanada não estão incluídas entre os locais listados pela CNV como instalações militares utilizadas para violações de direitos humanos nos tempos da ditadura.
O CORONEL ENCABULADO
Seria doloroso repetir, aqui, os nomes e circunstâncias dos nove casos de morte e 17 relatos de tortura em sete instalações das FFAA, zelosamente levantados pela CNV e solenemente ignorados na resposta dos comandantes militares.
Os chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica não confirmaram, não negaram, não comentaram, sequer se deram ao esforço de corrigir eventuais detalhes de cada caso de violência citado no relatório.
Os oficiais-generais das três Armas não se perguntaram nem por quem os sinos dobram, esquecidos que eles dobram justamente por elas, as Forças Armadas brasileiras, na expressão do poeta inglês John Donne (1572-1631), eternizada na obra de Ernest Hemingway.
“A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano”, escreveu Donne em ‘Meditações 17?. Assim basta citar entre os casos listados pela CNV uma única morte, a morte de um homem qualquer que diminui as Forças Armadas como parte e instituição de um Estado comprometido com a verdade, a justiça e a democracia.
Basta lembrar a morte de Chael Charles Schreier em 1969 na 1ª Companhia da Polícia do Exército da Vila Militar, no Rio de Janeiro — uma das sete instalações militares listadas pela CNV como palco de graves violações de direitos humanos —, para desqualificar o arremedo de sindicância apresentado ao país pelas Forças Armadas.
Chael, um estudante de medicina de 23 anos, gordo e alto, militante da VAR-Palmares da guerrilheira Dilma Rousseff, foi detido por agentes do DOPS e militares da PE em casa, no bairro de Lins de Vasconcelos, na zona norte do Rio, junto com dois companheiros de organização: Antonio Roberto Espinosa e Maria Auxiliadora Lara Barcelos, a Dora.
Ela foi a primeira a ser presa, logo ao abrir a porta do sobrado para os visitantes armados. No andar superior, Chael e Espinosa resistiram a tiros e só se entregaram quando a munição acabou.
Presos na noite de sexta-feira, 21 de novembro de 1969, passaram por uma sessão de pancadaria no DOPS até serem repassados à 1h30 da madrugada ao quartel da 1ª Companhia da PE da Vila Militar, na zona oeste da cidade, onde está a maior concentração de força terrestre da América Latina: 51 quartéis com uma guarnição de 60 mil homens, quase um terço do efetivo atual (222 mil homens) do Exército brasileiro.
A Companhia da PE era o endereço mais temido da vila, onde Chael sucumbiu em pouco tempo às torturas. Morreu por volta das 7h da manhã seguinte, atrapalhando o sábado da guarnição que, conforme apurou o Exército, não tem “qualquer registro de utilização (…) para fins diferentes do que lhes tenha sido atribuído” [sic].
A verdade, que o Exército não conseguiu localizar nos seus registros, pode ser melhor avaliada no cru relato de Dora perante a 2ª Auditoria de Marinha, cinco meses após a prisão.
As dores de Dora:
“[…[presa no dia 21 de novembro, …junto a Antônio Roberto e Chael; …em casa, na rua Aquidaban;(…) foram conduzidos ao DOPS; …Chael foi chamado para uma sala do lado, onde Chael foi espancado, ouvindo a declarante os seus gritos; (…) depois dessas duas horas, Antônio Roberto também foi chamado, …de dez horas da noite às quatro da manhã, Antônio Roberto e Chael ficaram apanhando,(…) nesta sala, foram tirando aos poucos sua roupa; (…) um policial, entre calões proferidos por outros, ficou à sua frente, como traduzindo manter relações de sexo com a declarante, ao tempo em que tocava seu corpo, que esta prática perdurou por duas horas;… o policial profanava os seus seios e usando uma tesoura, fazia como iniciar seccioná-los;
…sofreu bofetadas já quando à sala vieram cerca de quinze pessoas;…na sala contígua interpelavam a Chael e Antônio Roberto [sobre] como era a declarante, sob o prisma sexual; (…) pelas quatro horas da madrugada, Chael e Roberto saíram da sala onde se encontravam, visivelmente ensanguentados, inclusive no pênis, na orelha e ostentando corte na cabeça; (…) daí foram transferidos para a Polícia do Exército. (…) que nesta unidade do Exército, os três presos foram colocados numa sala, sem roupas;
…inicialmente chamaram Chael e fizeram-no beijar a declarante toda e em seguida chamaram Antônio Roberto para repetir esta prática, empurrando a cabeça dele sobre os seios da declarante; (…) depois um indivíduo lhe segurou os seios apertando-os, enquanto outros torturadores a machucavam; (…) em seguida Antônio Roberto e Chael foram levados para a sala ao lado onde estava a declarante, que ouvia gritos de Chael dizendo não saber de nada; (…) tais torturas duraram até sete horas da manhã, quando Chael parou de gritar, ficando caído no chão(…)”
[Apelação nº 40.278,págs. 60 e 61, do STM, processo nº 0260/96 da
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos]
A morte de Chael foi comunicada naquela manhã ao coronel Carlos Luiz Helvécio da Silveira Leite, que fazia o plantão no gabinete do ministro do Exército, Orlando Geisel. O coronel perguntou o nome do oficial responsável pelo interrogatório: era o então major de Cavalaria Ary Pereira de Carvalho, figura ilustre das listas de torturadores.
Helvécio mandou à Vila Militar um tenente-coronel do CIE, Murilo Fernando Alexander, com ordens de levar o corpo para o Hospital Central do Exército (HCE). Deu encrenca.
Talvez suspeitando de algum desvio de finalidade inconfessável, o diretor do HCE, general Galeno da Pena Franco, se negou a receber o cadáver: “Não concordaram em aceitá-lo como se tivesse entrado vivo”, contou Hélvécio em 1988 ao jornal O Estado de S.Paulo. Mas, o diretor do HCE reteve o corpo o tempo necessário para fazer a autópsia. Desviado depois para o Instituto Médico Legal (IML), o corpo despido revelou nas feridas o ímpeto das torturas sofridas. “Fiquei encabulado de ver o número de equimoses, as sevícias que o cadáver apresentava”, chegou a confessar o coronel Alexander, do CIE.
O Exército devia ter ficado ainda mais encabulado com as mentiras que contava em São Paulo aos aflitos pais de Chael, Ary e Emília Schreier. Quando saiu a primeira notícia da prisão de Chael, no domingo 23, ele já estava morto de véspera. Os pais viajaram ao Rio naquele dia, na esperança de reencontrar o filho vivo.
Pelo telefone, em contato com um major conhecido da família, foram tranquilizados na segunda 24: “Certamente, seu filho deve estar bem e farei o possível para que possam vê-lo”, disse o militar. Mais serenos, os pais procuraram advogados e um apartamento para o que parecia ser uma longa espera. Na terça-feira 25, novas notícias animadoras:
O Globo informou que o trio estava preso na PE da Vila Militar, fato confirmado pelo major. Até que, às 15h30 daquele dia, veio o choque: a família foi informada que podia visitar o cadáver do filho no IML. Só na quinta-feira 27, quando o corpo havia sido sepultado na tarde de quarta-feira no Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo, é que a imprensa enfim publicou informações sobre a morte ocorrida no sábado.
DEU NO THE NEW YORK TIMES
Pouco antes do enterro, ao abrir o caixão para as cerimônias judaicas de purificação, a família pode ver, além das marcas da autópsia e das costuras no tórax e nas pernas, manchas roxas no rosto e na barriga. Um dos primos de Chael resumiu: “Ele apanhou como um cavalo”.
A versão oficial, registrada em documento do II Exército e encontrada nos arquivos do DOPS, era mais branda: “Reagiram violentamente com disparos de revólver, espingarda e mesmo com bombas caseiras.
Da refrega, os três terroristas saíram feridos, sendo Chael o que estava em estado mais grave. Foram medicados no HCE, entretanto Chael sofreu um ataque cardíaco, vindo a falecer”. A explicação tinha uma cavalar contradição com o relato técnico do atestado de óbito, que descrevia a causa mortis: “contusão abdominal com ruptura do mesocólon transverso e mesentério, com hemorragia interna”.
A história ganhou a capa da edição 66 da revista Veja, de 10 de dezembro de 1969, dedicada a um só tema: “Torturas”. Era um destemido trabalho de investigação de vários meses de um equipe de oito repórteres chefiada por Raimundo Rodrigues Pereira, detalhando três casos de morte e arrolando outras 150 denúncias.
A revista foi apreendida nas bancas. Uma semana antes, a morte de Chael tinha conquistado bancas imunes ao braço longo da censura brasileira em Nova York, Paris e Londres, publicada em três importantes jornais do mundo — The New York Times, Le Monde e The Times.
O dramático depoimento de Dora na Auditoria da Marinha não salvou a vida de Chael — e nem a dela. Incluída na lista de 70 presos políticos banidos e trocados pelo embaixador suíço, em 1971, ela se exilou no Chile e mudou-se depois para a Alemanha.
Em fevereiro de 1976, com as feridas da tortura ainda latejando na alma, internou-se numa clínica psiquiátrica em Spandau. Quatro meses depois, Dora atirou-se na linha do metrô de Berlim. Tinha 31 anos.
No caso de Chael, até o laudo da morte desmentia a tese simplória do ‘ataque cardíaco’, na versão do Exército. A expressão ‘contusão abdominal’ indica ‘lesão produzida nos tecidos pela pancada de corpo duro sem que haja rompimento de pele’. A origem disso, segundo os médicos, pode ser atropelamento, queda violenta, paulada, pontapé.
A CNV foi além das especulações e, 45 anos depois, submeteu o laudo de necropsia do HCE à análise de peritos. Em quatro quadros esclarecedores, a CNV exibe um quadro terrível.
Na cabeça e no pescoço, foram localizadas escoriações e feridas no olho esquerdo, nas pálpebras, no queixo, na maçã do rosto. Havia hemorragia e manchas no peito, no abdome e nas nádegas. O ombro, o braço, a coxa e o punho do lado esquerdo exibiam cinco hematomas e três manchas.
Os sinais internos, segundo o laudo do hospital do Exército, eram ainda mais assustadores: quatro costelas fraturadas no lado direito, seis costelas no esquerdo, hemorragia no couro cabeludo e no reto.
Conclusão da perícia da CNV sobre o laudo do Exército:
“Ao analisar o Laudo Cadavérico de Chael Charles, referente ao exame de necropsia realizado no dia 24 de novembro de 1969, verificou-se a constatação de hematomas (indevidamente denominados escoriações) produzidos nas regiões anterior e posterior da cabeça, do tronco e dos membros, alguns inclusive denotando um formato “ovalar”, fratura com infiltração hemorrágica de várias costelas de ambos os lados e afundamento do rebordo costal esquerdo.
A natureza, forma e distribuição por todo o corpo das lesões descritas no referido Laudo, determinam que Chael Charles foi agredido de forma generalizada e contínua, inclusive tendo recebido socorro médico, face à sutura descrita na região mentoniana.
A variedade de colorações das lesões descritas, aliada à presença de infiltrados hemorrágicos relatados em várias costelas corroboram a ocorrência de agressões reiteradas por todo o corpo.
Verificou-se ainda, que em momento próximo e anterior à sua morte, Chael Charles foi submetido a coleta de impressões papiloscópicas, tendo sido verificadas substância enegrecida aderida às suas poupas digitais. Vale ressaltar que tal procedimento é típico das diligências policiais.
A SUBVERSÃO DA ÉTICA
Tudo isso – fatos, depoimentos, dados, laudos, perícias – integra o consistente relatório preliminar enviado aos comandantes das FFAA, historiando o caso notório de Chael, que a edição apreendida de Veja em 1969 definiu como “a primeira prova real de morte violenta durante um interrogatório policial”.
E o que responderam os generais sobre a mais notória morte por tortura em um quartel do Exército no coração da Vila Militar?
Nada, não responderam nada. Não comentaram, não replicaram, não confirmaram. Como sempre, ‘nada consta’ sobre isso nos registros do Exército.
A frustrante resposta das FFAA à CNV e ao País deixa evidente, mais uma vez, a opção preferencial dos militares pela trincheira oposta a uma nação comprometida com o resgate da memória e da verdade.
É uma postura incompreensível para os atuais chefes das três forças, considerando a limpidez de suas biografias. O general Enzo Martins Peri (72 anos), o almirante Júlio Soares de Moura Neto (70) e o brigadeiro Juniti Saito (70), como as tropas que hoje comandam, nada têm a ver com as truculências cometidas no regime que derrubou Jango e a democracia.
Ao contrário dos camaradas da ditadura que ainda hoje protegem, 29 anos após o fim do ciclo militar, o trio de comandantes tem ficha limpa para avaliar com isenção — ‘sem desvios de finalidade’ — os crimes cometidos no passado. Todos os três chegaram ao generalato no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, quando a ditadura já era defunta há uma década.
O general Peri chegou ao topo da carreira sem envolvimento com repressão e violações aos direitos humanos. De um ramo técnico da força, a Engenharia, era segundo-tenente de 23 anos quando irrompeu o golpe de 1964. O almirante Moura Neto completou 21 anos apenas 12 dias antes da derrubada de Jango em 1º de abril. Só cinco meses após o golpe é que ele vestiu, pela primeira vez, a farda de guarda-marinha. O brigadeiro Saito virou aspirante da FAB apenas no final de 1965, 19 meses após o movimento militar.
Na principal força armada do país, o firmamento das 276 estrelas que comandam a tropa — 14 generais de exército (quatro estrelas), 32 de divisão (três estrelas) e 62 de brigada (duas estrelas) — produz uma luz intensa que pode espantar a treva do passado que envergonha a farda e o país.
Todos os generais foram promovidos sob o regime democrático, o que torna ainda mais estranha a intransigente posição corporativa que preserva a impunidade de quem cometeu graves abusos na ditadura. Se os comandantes das FFAA não se sentem à vontade para responder às questões pertinentes levantadas pela Comissão Nacional da Verdade, deveriam pelo menos cumprir os regulamentos internos que eles mesmos juraram cumprir.
O principal deles é o Estatuto dos Militares, regulamentado justamente pelo Governo Figueiredo, o último do ciclo de generais. A lei nº 6.880, aprovada pelo Congresso em 9 de dezembro de 1980, prevê no estatuto a Seção II do Capítulo I (‘Das Obrigação Militares’), reservada a um item pouco conhecido da carreira: “Da Ética Militar”.
O inciso I do Art. 28 do Estatuto dos Militares, aprovado pelo último presidente da ditadura, estabelece o primeiro preceito da ética militar: “Amar a verdade e a responsabilidade como fundamento de dignidade pessoal”, diz o inciso I.
O inciso III do Estatuto dos Militares determina: “Respeitar a dignidade da pessoa humana”.
O digno relatório da CNV prova, como prega o Estatuto dos Militares, uma busca permanente pela verdade e uma preocupação obsessiva com a dignidade da pessoa humana.
A frustrante sindicância das FFAA, infelizmente, mostra o contrário.
GUERRA NAS ESTRELAS
O Exército nega a tortura que a comandante suprema sofreu
O Exército do general Enzo Martins Peri, subordinado à presidente Dilma Rousseff, acaba de negar oficialmente qualquer tortura praticada no antigo DOI-CODI da rua Tutóia, em São Paulo, onde a guerrilheira Dilma Rousseff foi torturada em 1970 pelo Exército do general Orlando Geisel, subordinado ao presidente Garrastazú Médici.
E agora? Quem diz a verdade? Quem está mentindo?
Mente a presidente da República, comandante suprema das Forças Armadas, ou mente o Exército, a força militar mais poderosa da América Latina, com 220 mil homens e a maior concentração de blindados (2.000 tanques, 500 deles pesados) do continente?
O Exército da democracia de 2014 informou à Comissão Nacional da Verdade (CNV), em junho passado, que não houve torturas nos cinco mais notórios centros de truculência do Exército da ditadura de 1970.
Da lista faz parte o afamado Destacamento de Operações de Informações do II Exército, em São Paulo, localizado no endereço que é o símbolo maior da violência militar instaurada com o golpe de 1964: o DOI-CODI da rua Tutoia.
No ofício 6749 enviado à CNV, o ministro da Defesa, Celso Amorim, baseado na sindicância de 42 páginas firmada pelo comandante do Exército, general Peri, reafirma ao país que não houve qualquer desvio ou abuso nas instalações geridas pela força terrestre no regime militar de 1964-1985.
Nem mesmo no sangrento DOI-CODI onde morreram 51 pessoas, segundo a CNV e conforme documentos confidencias do Exército. Por lá passaram 2.541 presos, dos quais 1.001 foram encaminhados depois ao DOPS.
Uma das sobreviventes daquele inferno foi uma guerrilheira da VAR-Palmares, ‘Estela’, codinome de Dilma Rousseff. Pelos acasos da democracia, que revogou a ditadura daqueles tempos, ‘Estela’ hoje é a presidente da República, a quem se subordinam todos os 14 generais de Exército, os 32 de Divisão e os 62 de Brigada da força terrestre, além do comandante Peri e do ministro Amorim, por força dos códigos militares e imposição categórica da Constituição.
Mais do que tudo, todos eles, como qualquer cidadão, se submetem ao jugo da verdade e da lei, que juraram defender. Apesar das oito mortes e 11 casos de tortura relacionados em cinco quartéis diferentes em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte, o general Peri atestou que não houve ali o “alegado desvio de finalidade” arguido pela CNV — nem mesmo no sangrento DOI da Tutoia.
O ministro e seus generais esqueceram de combinar esta versão com sua comandante, a ex-guerrilheira Dilma, que diz exatamente o contrário. Presa em São Paulo na tarde de 16 de janeiro de 1970, como integrante da VAR-Palmares, foi levada em seguida para a sede do DOI-CODI da Tutoia, ainda agindo sob a grife da temida OBAN, a Operação Bandeirante.
As torturas que sofreu, durante 22 dias, estão transcritas nas páginas 30-31 do processo 366/70 da Auditoria Militar de São, resgatado pelo Projeto Brasil: Nunca Mais. Em junho de 2005, poucas horas antes de trocar a cadeira de ministra das Minas e Energia pela chefia da Casa Civil de Lula, Dilma recordou suas dores num raro desabafo ao repórter Luiz Maklouf Carvalho, da Folha de S. Paulo.
Dilma – “Eu me lembro de chegar na Operação Bandeirante, presa…. Era aquele negócio meio terreno baldio, não tinha nem muro, direito. Eu entrei no pátio da OBAN e começaram a gritar ‘mata’, ‘tira a roupa’, ‘terrorista’, ‘filha da puta’, ‘deve ter matado gente’… E lembro também perfeitamente que me botaram numa cela.
Uma porção de mulheres. Tinha uma menina grávida que perguntou meu nome. Eu dei meu nome verdadeiro. Ela disse: ‘Xi, você está ferrada’. Foi o meu primeiro contato com o esperar. A pior coisa que tem na tortura é esperar, esperar para apanhar. Eu senti ali que a barra era pesada. E foi. Também estou lembrando muito bem do chão do banheiro, do azulejo branco. Porque vai formando crosta de sangue, sujeira, você fica com um cheiro…
Por onde a tortura começou?
Dilma – Palmatória. Levei muita palmatória.
Quem batia?
Dilma – O capitão Maurício sempre aparecia. Ele não era interrogador, era da equipe de busca. Dos que dirigiam, o primeiro era o Homero, o segundo era o Albernaz. O terceiro eu não lembro o nome. Era um baixinho. Quem comandava era o major Waldir [Coelho], que a gente chamava de major Linguinha, porque ele falava assim [com língua presa].
Quem torturava?
Dilma – O Albernaz e o substituto dele, que se chamava Tomás. Eu não sei se é nome de guerra. Quem mandava era o Albernaz, quem interrogava era o Albernaz. O Albernaz batia e dava soco. Ele dava muito soco nas pessoas. Ele começava a te interrogar. Se não gostasse das respostas, ele te dava soco. Depois da palmatória, eu fui pro pau-de-arara.
Dá pra relembrar?
Dilma – Mandaram eu tirar a roupa. Eu não tirei, porque a primeira reação é não tirar, pô. Eles me arrancaram a parte de cima e me botaram com o resto no pau-de-arara. Aí começou a prender a circulação. Outro xingou não sei quem, aí me tiraram a roupa toda. Daí, depois me botaram outra vez [no pau-de-arara].
Com choques nas partes genitais, como acontecia?
Dilma – Não. Isso não fizeram. Mas fizeram choque, muito choque, mas muito choque. Eu lembro, nos primeiros dias, que eu tinha uma exaustão física, que eu queria desmaiar, não aguentava mais tanto choque. Eu comecei a ter hemorragia.
Onde eram esses choques?
Dilma – Em tudo quanto é lugar. Nos pés, nas mãos, na parte interna das coxas, nas orelhas. Na cabeça, é um horror. No bico do seio. Botavam uma coisa assim, no bico do seio, era uma coisa que prendia, segurava. Aí cansavam de fazer isso, porque tinha que ter um envoltório, pra enrolar, e largava. Aí você se urina, você se caga todo, você…
Quanto tempo durava uma sessão dessas?
Dilma – Nos primeiros dias, muito tempo. A gente perde a noção. Você não sabe quanto tempo, nem que tempo que é. Sabe por quê? Porque para, e quando para não melhora, porque ele fala o seguinte: “Agora você pensa um pouco”. Parava, me retiravam e me jogavam nesse lugar do ladrilho, que era um banheiro, no primeiro andar do DOI-CODI. Com sangue, com tudo. Te largam. Depois, você treme muito, você tem muito frio. Você está nu, né? É muito frio. Aí voltava. Nesse dia foi muito tempo. Teve uma hora que eu estava em posição fetal.
Dá pra pensar em resistir, em não falar?
Dilma – A forma de resistir era dizer comigo mesmo: “Daqui a pouco eu vou contar tudo o que eu sei”. Falava pra mim mesmo. Aí passava um pouquinho. E mais um pouco. E aí você vai indo. Você não pode imaginar que vai durar uma hora, duas. Só pode pensar no daqui a pouco. Não pode pensar na dor.
A sra. aguentou?
Dilma – Eu aguentei. Não disse nem onde eu morava. Não disse quem era o Max [codinome de Carlos Franklin Paixão de Araújo, então seu marido]. Não entreguei o Breno [Carlos Alberto Bueno de Freitas], porque tinha muita dó. […] as razões que levam a gente a não falar são as mais variadas possíveis.
Quais foram as suas?
Dilma – Tinha um menino da ALN que chamava ‘Mister X’. Eu o vi completamente destruído. Não sei o que foi feito dele. Nunca vou esquecer o quadro em que ele estava. Primeiro, eu não queria que meus companheiros estivessem numa situação daquelas. Segundo, eu tinha medo que algum deles morresse. Terceiro, porque teve um dia que eu tive uma hemorragia muito grande, foi o dia em que eu estive pior. Hemorragia, mesmo, que nem menstruação. Eles tiveram que me levar para o Hospital Central do Exército. Encontrei uma menina da ALN. Ela disse: “Pula um pouco no quarto para a hemorragia não parar e você não ter que voltar”.
Palmatória, pau-de-arara, choque. O que mais?
Dilma – Não comer. O frio. A noite. Eles te botam na sala e falam: “Daqui a duas horas eu volto pra te interrogar”. Ficar esperando a tortura. Tem um nível de dor em que você apaga, em que você não agüenta mais. A dor tem que ser infligida com o controle deles. Ele tem que demonstrar que tem o poder de controlar tua dor.
Dilma ignorava na época o que a Comissão Nacional da Verdade hoje já conhece: nome, sobrenome e posto de seus torturadores. O então major do Exército Waldyr Coelho, como primeiro comandante da OBAN, ocupava uma sala no primeiro andar do prédio. Homero César Machado, capitão de Artilharia do Exército, era o chefe da Equipe B de interrogatório do DOI-CODI. O chefe da Equipe A, Benoni de Arruda Albernaz, era o pior de todos, como lembra bem Dilma Rousseff.
Também Capitão de de Artilharia, Albernaz justificava a fama: “Ele era o mais violento e o mais doente de todos. Andava com um pedaço de viga de madeira na mão e quando passava nos corredores ia batendo nos presos. Não precisava de sala ou interrogatório para torturar. Ele era o exemplo do diabo”, contou o jornalista e ex-militante da ALN Celso Horta, que passou pelo pau-de-arara da Tutóia.
“Era um homem terrível, o torturador mais famoso da OBAN naquela época”, completa o advogado Carlos Franklin de Araújo, ex-guerrilheiro da VAR-Palmares e ex-marido de Dilma, que dividiu com ela os suplícios da tortura em São Paulo.
No perfil feito pelo repórter Thiago Herdy para O Globo em 2012, Albernaz é descrito como o capitão que “tinha 37 anos, sobrancelha arqueada, riso de escárnio e fazia juras de amor à pátria enquanto socava e quebrava os dentes da futura presidente do Brasil, Dilma Rousseff, na época com 22 anos”.
Apesar da violência em janeiro de 1970, Albernaz ganharia dez meses depois o seguinte elogio em folha de seu comandante, o major Linguinha Coelho: “Oficial capaz, disciplinado e leal, sempre demonstrou perfeito sincronismo com a filosofia que rege o funcionamento do Comando do Exército: honestidade, trabalho e respeito ao homem”. Consolava seus torturados com uma frase inquestionável: “Quando venho para a OBAN, deixo o coração em casa”.
Um pouco mais do desalmado Albernaz se soube quando Dilma abriu o coração em 2001, ainda secretária de Minas e Energia no Rio Grande do Sul, para um sentido depoimento à comissão de Minas Gerais que trata de indenizar vítimas da ditadura. A durona Dilma chorou diante do jovem filósofo Robson Sávio, que a entrevistava, ao lembrar do inferno que viveu no DOI-CODI de São Paulo e que reviveu no quartel da 4ª
Companhia da Polícia do Exército (PE) em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, para onde foi transferida em 1972. Era um detalhe desconhecido para o Brasil, até ser revelado em meados de 2012 pela repórter Sandra Kiefer, do jornal Estado de Minas, ao descobrir o desabafo de Dilma numa caixa de papelão perdida entre 700 processos de presos políticos em uma sala do quinto andar de um prédio no centro de Belo Horizonte, onde funciona o Conselho de Direitos Humanos de MG.
Ali, Dilma revela pela primeira vez ter levado socos no maxilar na sua estadia mineira. “Minha arcada girou para o outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco, o dente se deslocou e apodreceu”, contou a secretária do então governador Olívio Dutra (PT), nove anos antes de se tornar presidente e comandante das Forças Armadas que negam as torturas.
Para combater a dor provocada pelo soco no maxilar, tomava Novalgina em gotas na prisão mineira. Quando voltou para o cárcere em São Paulo, o problema acabou: “O Albernaz completou o serviço com outro soco, arrancando meu dente”, contou.
Albernaz deixou o DOI-CODI no início de 1971. Teve a matrícula recusada três vezes no curso de operações na selva. Foi transferido para o interior do Rio Grande do Sul. Em março de 1974 foi internado em Porto Alegre, vítima de envenenamento. Foi denunciado cinco vezes por fazer dívidas com recrutas e não pagar.
Ao delegado que investigou o caso, mostrou a arrogância dos tempos de terror: “Sou amigo íntimo do presidente da República , foi ele [Médici) quem me deu isso” contou, mostrando a pistola Smith&Wesson. Ainda se vangloriava de ser o número 2 da lista de torturadores do país.
O número 1 era o seu chefe no DOI-CODI da Tutóia, o então major de Infantaria Carlos Alberto Brilhante Ustra. Sem dinheiro para pagar a hipoteca, sofreu quatro ações de execução judicial. O homem que deixava o coração de fora do trabalho sofreu um infarto dentro da casa da namorada, nos Jardins, em São Paulo, em 1992. Chegou morto ao Hospital do Exército que agora o renegava, lembrou o repórter que descreveu a descida de Albernaz ao inferno.
O outro torturador que Dilma, ao contrário do Exército, não esquece, é o capitão do Exército Maurício Lopes Lima. Depois do martírio na OBAN, ela foi transferida para o presídio Tiradentes.
Até que apareceram lá dois militares enviados pelo capitão Maurício, ameaçando um retorno para novas sevícias na Tutóia. Dilma reagiu, perguntando se eles estavam ali com autorização do Poder Judiciário.A resposta do militar resume o deboche daqueles tempos sem lei: “Você vai ver o que é juiz lá na OBAN!…”
Em novembro de 2011, quando a ex-guerrilheira estava prestes a completar seu primeiro ano como presidente da República, o Ministério Público Federal paulista ajuizou ação pública para responsabilizar três oficiais do Exército e um da PM pela morte de seis pessoas e a tortura em outras 20 detidas na OBAN.
O capitão Maurício era um dos denunciados. Um ano depois, com base na Lei da Anistia, montada em 1979 pela própria ditadura para assegurar a impunidade dos agentes que iam trabalhar sem o coração, a Justiça arquivou o caso contra o capitão Maurício.
Ele já tinha um rombudo antecedente. O frei dominicano Tito de Alencar Lima, 24 anos, preso por envolvimento da ordem com a ALN de Carlos Marighella, foi retirado do presídio Tiradentes no início da tarde de 17 de fevereiro de 1970 para ser levado para a OBAN. Acompanhado de outros dois militares, o capitão Maurício avisou Tito: “Você agora vai conhecer a sucursal do inferno!”.
Após sobreviver aos horrores do DOPS do delegado Sérgio Fleury, Tito caiu nas garras infernais da equipe do capitão Maurício. Definhou 14 meses sob as torturas mais diabólicas do sistema repressivo que, segundo diz agora o Exército à CNV, não sofreu nenhum ‘alegado desvio de finalidade’.
Um dos 70 presos trocados em 1971 pelo embaixador suíço Giovanni Bucher, frei Tito andou pelo Chile, Alemanha e Itália. Com o espírito destroçado pelos demônios que viu e sentiu no inferno da repressão, frei Tito só ganhou a paz pelo suicídio, em agosto de 1974, ao se enforcar em uma árvore nos campos de um convento da ordem próximo a Lyon, na França.
Com o cinismo típico dos profissionais da repressão que não ousa dizer seu nome, o capitão Maurício tentou o reconhecimento que Dilma lhe fez como um de seus torturadores: “Ela esteve comigo somente um dia e eu não a agredi, em momento algum”.
Em entrevista ao Portal IG, em 2010, ele fez graça com a desgraça de sua carreira, dizendo que sequer poderia imaginar que veria aquela guerrilheira, um dia, no Palácio do Planalto. “Se eu soubesse naquela época que ela seria presidente, eu teria pedido: ‘Anota meu nome aí. Eu sou bonzinho'”.
Esta parece ser a recomendação seguida, como instituição, pelo Exército, ao ser provocado pela CNV: todos os torturadores, que tiveram seus nomes devidamente anotados, agora parecem ser ‘bonzinhos’.
AFINAL, ONDE ESTÁ A VERDADE?
A Nação merece, agora, um esclarecimento da principal ocupante do Palácio do Planalto, que um dia circulou como presa pela sucursal do inferno, levou soco na cara, perdeu dente, sofreu hemorragia, passou frio, teve fome e sentiu medo, muito medo.
Nem as conveniências de uma dura campanha eleitoral, que recomenda cautelas à direita e à esquerda, justificam o silêncio e a omissão diante desse grave paradoxo: a testemunha mais notável da tortura imposta pelo regime militar e agora negada pelos generais é justamente a comandante-suprema das Forças Armadas.
A presidente da República, que viveu na carne e na alma todo o terror da ditadura, precisa esclarecer ao país, enfim, onde está a verdade, que a CNV busca com o empenho que as FFAA não demonstram.
Afinal, presidente Dilma, quem está mentindo?
Fonte – Brasil 247