Documentos sugerem que empresas estrangeiras auxiliaram ditadura no Brasil

Quando João Paulo de Oliveira foi demitido em 1980 pela Rapistan, um fabricante de esteiras transportadoras com sede em Michigan, nos Estados Unidos, seus problemas estavam apenas começando.

Nos anos seguintes, a ditadura militar no Brasil prendeu ou deteve Oliveira por cerca de 10 vezes. Carros de polícia passavam por sua casa nos subúrbios industriais de São Paulo, disse ele, e os oficiais faziam gestos intimidadores ou apontavam armas em sua direção.

O crime aparente de Oliveira: ser um sindicalista durante uma época em que os militares consideravam greves como subversão comunista.

“Eu costumava brincar que a minha casa era a mais segura no bairro com tanta polícia por perto”, disse Oliveira, hoje com 63 anos. “Mas era difícil, realmente assustador, como uma tortura psicológica.”

Pior, disse ele, outras fabricantes locais se recusaram a contratá-lo por muitos anos depois, vagamente citando seu passado. Outros colegas tiveram o mesmo destino. “Nós sempre suspeitamos que as empresas estavam passando informações sobre nós para a polícia”, afirmou. “Mas nunca soubemos com certeza.”

Evidências recentemente descobertas sugerem que as suspeitas de Oliveira eram bem fundamentadas.

Uma comissão apontada pelo governo para investigar abusos durante a ditadura no Brasil de 1964 a 1985 encontrou documentos que diz mostrarem que a Rapistan e outras empresas secretamente ajudaram os militares a identificar suspeitos “subversivos” e ativistas sindicais em suas folhas de pagamento.

Empresas estrangeiras e brasileiras são citadas nos documentos, incluindo algumas das maiores montadoras do mundo: Volkswagen, Ford, Toyota e Mercedes-Benz, unidade da Daimler, entre outras.

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) ainda tem que publicar as suas conclusões, e as empresas não foram até aqui acusadas de qualquer crime. Está em debate se elas colaboraram com a ditadura e se sim, em que medida. No entanto, defensores dos direitos humanos e alguns dos trabalhadores citados nos documentos dizem que podem mover ações cíveis ou legais como resultado das conclusões da comissão.

Alguns trabalhadores querem que as empresas paguem reparações por salários perdidos. Outros, incluindo aqueles que duvidam que o relatório da CNV será conclusivo o suficiente para um caso nos tribunais, dizem que ficariam satisfeitos com um pedido de desculpas.

A CNV foi instituída em 2012 pela presidente Dilma Rousseff, ela própria uma ex-militante de esquerda que foi presa e torturada por militares na década dos anos 1970.

A comissão tem a tarefa de lançar nova luz sobre os abusos cometidos durante essa época, e quem foram os responsáveis por isso. A ditadura apoiada pelos Estados Unidos matou cerca de 300 pessoas, e torturou ou prendeu milhares mais, como parte do que o regime via como uma luta para parar o esforço de esquerdistas de transformar o Brasil em uma versão muito maior da Cuba de Fidel Castro.

Dilma, que está concorrendo à reeleição em outubro, expressou a esperança de que um registro histórico mais completo ajudará a garantir que o Brasil, agora uma democracia próspera e um crescente poder econômico, nunca repita erros daquela época.

As empresas, em geral, se beneficiaram das políticas conservadoras da ditadura. Acadêmicos há muito acreditam que as empresas locais e multinacionais ajudaram o regime a identificar os funcionários que estavam fomentando conflitos trabalhistas ou representavam uma suposta ameaça à estabilidade.

Agora, os investigadores da comissão descobriram evidências que acreditam comprovar tal relação. A CNV planeja incluir as alegações no seu relatório oficial, previsto para sair em dezembro. Seus membros permitiram que à Reuters tivesse acesso a documentos com evidências sobre as empresas à medida que a investigação se aproxima do fim.

“LISTA NEGRA”

Os documentos não fornecem um registro completo da repressão do Estado durante a ditadura. Alguns jornais da época foram queimados pelos militares ou desapareceram; alguns foram encontrados no ano passado nas casas de ex-oficiais depois que eles morreram; outros estão espalhados em arquivos do Estado.

A descoberta mais valorizada da Comissão até aqui é um documento encontrado nos arquivos do governo do Estado de São Paulo que investigadores chamam informalmente de “lista negra”.

A lista datilografada contém os nomes e endereços residenciais de cerca de 460 trabalhadores de 63 empresas do ABC paulista, que às vezes é chamado de “Detroit do Brasil” por ter muitas montadoras estrangeiras baseadas na região.

A lista, que data de início de 1980, foi elaborada pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), uma agência de inteligência da polícia que existia principalmente para monitorar e reprimir os esquerdistas. Historiadores dizem que o Dops deteve um número indeterminado de pessoas, incluindo a presidente Dilma, e torturou muitas delas.

A Volkswagen é a empresa que tem mais funcionários na lista do Dops, com 73. A Mercedes-Benz aparece em seguida, com 52.

O documento não diz para qual finalidade o Dops usou a lista, ou quais critérios foram usados para selecionar os nomes. O documento também não indica como o Dops obteve as informações.

A advogada Rosa Cardoso, que lidera a subcomissão da CNV que investiga supostos abusos contra trabalhadores, disse que a lista parece ter sido usada para monitorar ativistas sindicais num momento em que os sindicatos da Grande São Paulo foram se tornando mais assertivos em suas demandas por melhores salários e condições de trabalho.

A lista, ou alguma versão dela, também pode ter sido distribuída a empresas para impedir os trabalhadores de conseguir emprego em outro lugar após serem demitidos, disse ela, com base em entrevistas que a comissão realizou.

O documento inclui informações que, segundo Rosa, só podem ter sido fornecidas pelas empresas. Mais da metade dos nomes na lista têm o setor da fábrica onde os funcionários trabalhavam. Esse dado, escrito à mão ao lado dos nomes dos empregados, é altamente específico, denotando a função do departamento (“Manutenção”) ou sua nomenclatura interna (“Setor 4530”).

“É uma prova de que essas empresas conspiraram para reprimir os seus trabalhadores”, disse Rosa.

Alguns estudiosos alertam que é possível que as informações sobre os trabalhadores tenham sido obtidas por outros meios –por exemplo, através de informantes dentro dos sindicatos ou pelo próprio Dops. Questionado sobre as explicações alternativas, Rosa disse: “Não com esse detalhe”.

Alguns documentos descobertos pela comissão indicam mais claramente que as empresas passaram informações para os militares.

Investigadores encontraram uma carta de duas páginas da polícia civil de São Paulo para o Dops, datada de 9 de março de 1981, sobre David Rumel, então um médico para o sindicato dos metalúrgicos.

A carta inclui data de nascimento e endereço residencial do Rumel, mas é mais concentrada em seu passado esquerdista. A carta observa que ele ingressou no Partido Comunista Brasileiro, como estudante, em 1971, e foi preso por cinco meses entre 1975 e 1976.

Na carta, a polícia diz que a informação foi “recolhida pelo serviço de segurança Volkswagen do Brasil”.

O nome de Rumel não aparece na “lista negra”. Os esforços para encontrá-lo foram infrutíferos.

Em resposta a perguntas detalhadas da Reuters sobre se forneceu tais informações aos militares, a Volkswagen do Brasil disse que ainda não foi contactada pela CNV. No entanto, em um desenvolvimento que pode ser o primeiro do tipo no Brasil, a Volkswagen informou que vai iniciar a sua própria investigação.

“Sem o conhecimento dos documentos concretos, não somos capazes de dar respostas a todas as suas perguntas”, disse o porta-voz da Volkswagen Renato Acciarto via e-mail. “Mas a Volkswagen vai investigar todas as indicações para obter mais informações sobre a empresa e as instituições do Estado durante o período (do regime) militar.”

“A Volkswagen lançará luz sobre esse assunto para obter pleno conhecimento (do que aconteceu)”, escreveu ele.

A porta-voz do Dematic Group, com sede em Luxemburgo e que agora controla a Rapistan, Cheryl Falk, disse que a empresa “não tem documentação ou registros” em relação aos empregados em sua unidade brasileira em 1980.

“Valorizamos nossos funcionários e respeitamos sua privacidade, e não iríamos tolerar a conduta alegada (pela comissão da verdade)”, acrescentou ela.

A assessoria de imprensa da Mercedes-Benz no Brasil disse que a empresa “não confirma” que deu informações aos militares, e disse que “tem entre seus valores ser apartidária e zelar pela confidencialidade dos dados cadastrais de seus empregados”.

A Ford se recusou a comentar. A Toyota e a Fiat, que agora é dona da Chrysler, disseram não ter registros de possíveis abusos durante aquela época. “Gostaríamos de lembrar que estamos nos referindo a um período passado há mais de 30 anos”, disse o Departamento de Relações Públicas da Toyota do Brasil.

 

TORNEIRO MECÂNICO NA LISTA

A Reuters entrevistou 10 pessoas cujos nomes apareceram na “lista negra”. A maioria relatou ter sido despedida pelas empresas no início dos anos 1980, na época que o documento apareceu. Alguns disseram que foram presos pelo menos uma vez, às vezes em piquetes. A maioria relatou problemas para encontrar trabalho mais tarde.

Nenhum dos trabalhadores disse ter enfrentado tortura ou prisão prolongada nos anos após o surgimento da lista. Isso condiz com relatos de historiadores de que as táticas mais duras dos militares cessaram em grande parte em meados da década dos anos 1970, com grupos guerrilheiros armados diminuindo em número e generais mais moderados ganhando influência.

Manoel Boni, de 59 anos, disse que foi demitido pela Mercedes-Benz depois de participar de uma greve em 1980. Nos anos que se seguiram, ele aplicou repetidamente para cargos como torneiro mecânico em outras montadoras fora de São Paulo, incluindo algumas fábricas que tinham vagas disponíveis para essa função.

As empresas se recusaram a contratá-lo. Boni disse que dependeu por longos períodos de ajuda da igreja ou da assistência de amigos. Ele finalmente encontrou trabalho em uma pequena fábrica perto do centro de São Paulo.

Quando viu a lista a qual a Reuters teve acesso pela primeira vez, Boni disse: “Meu Deus, meu Deus”.

“Setor 381”, disse ele, lendo em voz alta a anotação manuscrita ao lado de seu nome. “Sim, isso era a inspeção de qualidade, onde eu trabalhava.”

Ele ficou em silêncio por um longo período, lendo outros nomes no documento. “Muitas coisas fazem sentido agora”, disse ele, finalmente.

Keiji Kanashiro, 70, foi assessor econômico para a Mercedes-Bens antes de perder o emprego em 1980. Nos anos seguintes, ele disse que muitas vezes enviou 20 currículos por semana, sem sucesso.

Uma vez, Kanashiro disse que se reuniu com um representante de recursos humanos de uma outra grande montadora estrangeira na Grande São Paulo. “Ele me disse: ‘Você está em uma lista, e você nunca mais vai trabalhar no setor privado de novo'”, afirmou Kanashiro.

Nem todos na lista tiveram essas experiências ruins. Geovaldo Gomes dos Santos, que trabalhou na prevenção de acidentes para a Volkswagen, disse que sentiu como se seus chefes estivessem tentando empurrá-lo para fora da empresa no início dos anos 1980. Ele continuou no trabalho mesmo assim e, finalmente, se aposentou em 2003.

De todo modo, ele tem lembranças vívidas dos anos duros. “Se você apoiou o sindicato, eles trataram você como um inseto”, disse. “Eu gostaria de ver alguma justiça pelo que aconteceu com os outros.”

 

LEI DE ANISTIA COMPLICA AS COISAS

A grande questão que paira sobre o trabalho da comissão da verdade é qual tipo de justiça é possível de ser feita.

Diferentemente de alguns outros países na América do Sul que passaram por ditaduras durante a Guerra Fria, o Brasil nunca tinha visto um esforço assim para investigar abusos graves.

Isso é em parte porque o regime militar do Brasil matou muito menos pessoas do que seus pares regionais. A ditadura na Argentina entre 1976 e 1983 matou até 30 mil pessoas– cerca de 100 vezes o número de mortes no Brasil, em um país com cerca de um quinto da população brasileira. O regime militar do Brasil também foi capaz de negociar uma anistia abrangente para proteger os seus líderes da acusação antes de entregar o poder de volta aos civis em 1985.

Como resultado, alguns juristas são cautelosos sobre as chances de processos judiciais bem-sucedidos.

“Em tese, se uma empresa contribuiu ou se beneficiou da violação de direitos humanos, ela pode ser responsabilizada”, disse o procurador regional da República e especialista em direito internacional de direitos humanos, Marlon Weichert. O Ministério Público é um órgão que poderia iniciar ações judiciais com base em conclusões da CNV.

Ciente do trabalho da comissão da verdade até o momento, Weichert disse por e-mail que os resultados são importantes, mas ressaltou que ele precisa ver a prova completa antes de dizer se e como um processo contra as empresas poderia ser fundamentado.

No ano passado, o Ministério Público da Argentina apresentou acusações criminais contra três ex-executivos da Ford, que supostamente deram nomes, endereços e imagens de trabalhadores para as forças de segurança do país durante a ditadura. Alguns desses trabalhadores foram presos e torturados. Os três homens negam as acusações e se declararam inocentes. O caso ainda está fazendo seu caminho nas instâncias da Justiça argentina.

No Brasil, a comissão da verdade pode convocar ou convidar as empresas que aparecem com mais frequência na “lista negra” para dar a sua versão da história nas próximas semanas, disse Sebastião Neto, que está supervisionando a investigação sobre as companhias.

 

“VOCÊ TEM QUE PROVAR ISSO”

Augusto Portugal, um ex-funcionário da Rolls-Royce que está na lista, está esperando por indenizações das empresas. Mas ele teme que se a comissão solicitar seu testemunho com base em provas inconclusivas, isso poderia fazer com que as empresas se escondam atrás de uma muralha de advogados.

Portugal já entrevistou cerca de 30 pessoas na lista ao escrever uma tese de pós-graduação sobre o tema, e diz que não é completamente claro de onde a informação veio. “É óbvio que as empresas colaboraram (com os militares)”, disse ele. “Mas você tem que provar isso.”

Também não está claro quão ativamente Dilma, apesar de seu passado, apoiaria qualquer esforço de acusação. Alguns em seu partido queriam incluir um apoio para uma “revisão” da lei de anistia de 1979 em seu programa de governo para a reeleição. Mas a proposta encontrou resistência por parte de alguns de seus assessores, que se preocupam com o fato de ela já ter muito trabalho com uma economia estagnada e uma popularidade em queda.

Outros dizem que a atenção pública dada à comissão da verdade tem sido a sua própria recompensa, por despertar um debate mais amplo na sociedade sobre os crimes da época da ditadura.

O jornal O Globo, que defendeu o regime militar, publicou um editorial no ano passado dizendo “que o apoio foi um erro” –o que levou a especulações de que outras empresas possam seguir o mesmo caminho em breve.

Enquanto isso, alguns na lista se confortam por acreditar que no fim venceram.

A agitação sindical nas montadoras instaladas na Grande São Paulo acabou se espalhando, enfraquecendo as forças armadas e levando a uma transição para a democracia em 1985. Do movimento sindical encorajado nasceu um novo partido político: o Partido dos Trabalhadores (PT).

Um de seus fundadores, o ex-líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva, tornou-se presidente do Brasil em 2003. Dilma também é integrante do PT, e o Brasil agora tem algumas das leis trabalhistas mais generosos do mundo.

“Lula sempre nos disse que, para realmente vencer em nossa batalha, tínhamos necessidade de fundar um partido e tentar mudar a sociedade”, disse Kanashiro, o ex-empregado da Mercedes-Benz na lista, que agora é do PT em Brasília . “Nunca pensei que isso iria acontecer tão rápido. Mas isso não muda o fato de que nós queremos justiça para esses abusos.”

 

 

Fonte – Reuters

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