O bairro do Bom Retiro, na região central de São Paulo (SP), recebe de volta em 2014 uma publicação fechada 50 anos atrás pela ditadura militar. Trata-se do Nossa Voz, jornal veiculado pelo centro cultura Casa do Povo, que retorna com uma nova linha editorial e abordagem atual.
Jornal aposta em pautas atuais, com engajamento do passado
O jornal surgiu em 1947 destinado à comunidade judaica, imigrante do leste europeu em São Paulo. Eram oito páginas, sete delas em iídiche – língua falada pelos judeus ortodoxos – e uma em português. Até o título do Nossa Voz tinha uma versão no idioma: “Unzere Schtime”.
A publicação possuía um forte engajamento político e era declaradamente “de esquerda”. Por esse motivo, a ditadura fechou a redação e a gráfica onde era produzido. Quase 30 anos depois do fim do regime militar, o edital Proac Espaços Independentes 2013, da Secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, permitiu à Casa do Povo trazer o Nossa Voz de volta.
“Quando a gente resolveu reativar esse jornal, levamos em conta a forma como trabalhamos hoje na Casa do Povo. Pegamos alguns elementos da nossa história e os articulamos para hoje, trazendo para o momento contemporâneo”, conta Mariana Lorenzi, curadora do projeto ao lado de Benjamin Seroussi.
Nesse retorno, o Nossa Voz ganha distribuição bimestral gratuita em diversos pontos da capital paulista, como no Arquivo Histórico Municipal, na Pinacoteca do Estado, entre outros. Em paralelo à publicação, a Casa do Povo convidou ainda sete artistas e coletivos para produzir ações culturais pelo bairro do Bom Retiro.
O Nossa Voz repercute essas ações em forma de artigos, muitos dos quais escritos pelos próprios artistas. “[A ideia] é reativar esse diálogo da Casa do Povo com o bairro, que sempre foi muito importante e estava um pouco perdido”, explica Mariana.
Mesmo mantendo características de sua versão original, o novo Nossa Voz não é mais um veículo “de esquerda” como no passado. “A gente tenta continuar com um engajamento político, mas não tanto como era no passado. Não no sentido de escolher um lado. Estamos mais interessados em falar de uma ‘micropolítica’, de questões que são urgentes para todo mundo. […] Não dava para continuar falando de comunismo, as pessoas entenderam que as demandas hoje são outras”, acrescenta.
A Casa do Povo
A volta do Nossa Voz está principalmente ligada à nova posição que a Casa do Povo ocupa hoje no Bom Retiro. A instituição foi inaugurada em 1953, reunindo uma escola israelita, um espaço cultural e um teatro, com a intenção de manter viva a tradição judaica no bairro.
No final da década de 1980, após o colégio de primeiro grau fechar as portas, a Casa do Povo viu sua “decadência”. “Ele nunca fechou, mas perdeu a relevância”, conta Mariana. Pouco mais de dois anos atrás, porém, com a criação de um novo conselho formado por ex-alunos, o espaço voltou à cena cultural paulistana.
Crédito:Divulgação
Duas das fundadoras da Casa do Povo leem o “Nossa Voz”
“O jornal vem atrelado a esse movimento. O Nossa Voz é um elemento muito precioso para a memória dessas pessoas. Todo mundo que frequentou a Casa do Povo antigamente, que morava no Bom Retiro, que tem essas raízes, lembram do jornal, o liam, lembram de quando ele foi fechado. E também calhou com o momento, os 50 anos do golpe. […] Mas foram essas novas forças que tornaram isso possível.”
Recepção
Em diversos pontos de distribuição, o jornal já está esgotado. Mesmo sendo produzido por pessoas que não não têm raízes na Casa do Povo, como o público-alvo do Nossa Voz, o novo projeto tem sido bem recebido pela comunidade.
“Estamos bem contentes! A gente tinha um receio que os ex-leitores achassem que estávamos ‘traindo a memória’, que não tivéssemos feito jus a toda essa história. Mas pelo contrário, todo mundo ficou muito contente de ver que o Nossa Voz voltou”, diz Mariana.
Os textos das duas primeiras edições podem sem encontrados no blog do jornal. As duas últimas publicações do ano chegam em setembro e novembro. O futuro do projeto ainda é incerto, mas Mariana diz que a Casa do Povo está tentando conseguir verba para continuar com a produção em 2015, mantendo a mesma periodicidade.
“O Nossa Voz ainda está bem no começo para voltar a representar alguma coisa. Mas ele pode vir a representar uma ferramenta de comunicação para esse bairro, como um jornal interessado em olhar as coisas criticamente, não como um simples comentarista. Ser um jornal de bairro, mas ir um pouco além. E a gente espera muito que o Bom Retiro se abra a isso”, finaliza Mariana.
Fonte – Portal Imprensa